VIII
- Keller! – Ludovico corre até mim. – O que você está fazendo? Está machucando Emilia!
Se estou machucando minha irmã, nem ela e nem eu percebemos isso. Ela continua chorando, como se nem me sentisse a agarrando, e eu continuo lhe encarando, lendo cada linha daquele rosto.
- Preciso partir – balbucio frouxamente, soltando Emilia. – Quando o enterro terminar, leve-a para casa...
- Aonde você vai? – Ludovico indaga, nervoso. Mas não o respondo.
Cambaleando como um bêbado, deixo o cemitério e entro aos tropeços em meu carro. Logo estou dirigindo descompassado pelas ruas de Londres, arrancando retrovisores de carros e, minuto ou outro, quase atropelando algum transeunte. O que fazer, se dirijo no mesmo ritmo do meu coração?
Alguns minutos depois, estaciono diante do sanatório. A impressão que tenho é que deixo o carro aberto, com as chaves dentro; ou apenas não me lembro de ter feito uma coisa tão sem importância quanto fechar uma porta e enfiar uma chave no bolso. Só sei que corro desabalado ao encontro de uma enfermeira e a obrigo a me levar ao quarto de Thessalia.
Minha esposa está deitada, e fica bastante surpresa em me ver entrar pela porta.
- Keller! – exclama, levantando-se da cama, seus olhos de mel faiscando. – Quanto tempo!
Com um gesto, despeço a enfermeira e fecho a porta. Thessalia e eu ficamos a sós. Cambaleio até ela, o mundo girando ao meu redor.
- Pensei que já tinha se esquecido de sua esposa louca e assassina! – Thessalia esboça um sorriso torto.
Paro-me diante dela e, finalmente, minhas pernas fraquejam. Caio sobre meus joelhos.
- Você nunca foi louca ou assassina – digo, murmurante.
- Finalmente! – ela fala cantando, como uma lunática. – Agora que entendeu isso, faz o favor de me tirar daqui?
- Você nunca foi louca ou assassina – repito. – Meu pai era.
As faíscas dos olhos de Thessalia se apagam, e o sorriso torto desaparece de seus lábios.
- Meu pai era o soldado britânico que estuprou sua mãe – prossigo. – Ele era médico no batalhão que libertou o campo em que vocês estavam. Ele era o demônio dentre os anjos.
Thessalia fecha os punhos. Os cabelos dela se arrepiam, como se uma descarga elétrica percorresse o seu corpo naquele instante.
- E quando você e sua mãe vieram para a Inglaterra, e sua mãe descobriu que estava grávida, e precisou ser levada a um hospital para realizar o parto, o médico que a atendeu era o meu pai. Dr. Wagner.
Contemplo Thessalia, esperando, quase esperançosamente, que ela me contradiga. Mas ela se mantém tensa, como uma leoa calculando os movimentos antes de fazer o ataque.
- Sua mãe deve ter contado ao Dr. Wagner que o filho era dele. E o que meu pai fez? Matou sua mãe, e fez parecer uma fatalidade médica. Estou certo?
- Como você descobriu essas coisas? – grunhe Thessalia.
- Deduzi a partir de um pensamento esparso – digo, rouco. "Enfrentar demônios, quando todos pensam que eles são anjos...". Esse pensamento me fizera lembrar de uma outra frase, dita dois anos atrás: "Entre os anjos, havia um demônio..." Um soldado britânico, dos que libertaram o campo de concentração em que Thessalia estivera, fora quem violentara a mãe dela. Meu pai, como bem lembrou o veterano durante o enterro, estivera num batalhão que libertara campos nazistas durante a 2ª Guerra...
Thessalia não compreende o que digo, e continua naquele estado de tensão elétrica, como se fosse explodir a qualquer momento.
- Sua mãe e o bebê morreram naquele dia, não é? – pergunto. – Pelo menos foi isso que te disseram, não é?
Thessalia demora-se um longo tempo antes de abrir a boca; analisa-me de cima a baixo, perfurando-me com seus olhos de mel, tentando entender como cheguei a deduzir tudo aquilo. Mas é notável, no olhar dela, um desejo de se abrir, de finalmente revelar aquilo que esteve escondendo para si mesma desde que me conheceu. Então, enfim, ela cede.
- Minha mãe e o bebê morreram naquele dia – ela conta, voltando a se sentar na cama num movimento lento, mas ferino. – Mas só o corpo de minha mãe foi entregue para o enterro. O hospital pediu pra ficar com o corpo do bebê, para fins de pesquisa. Meu padrinho, que era quem estava cuidando dos arranjos funerários, aceitou doar, até com certo alívio. Quando fui com ele ao hospital e vi, de longe, o médico, reconheci o soldado que violentara minha mãe. Mas não contei a ninguém. Como poderia? Eu era uma criança, a mera figura do médico me aterrorizava, a ameaça que ele fizera na noite em que estuprara minha mãe ainda me causava pesadelos! Apenas guardei aquilo comigo mesma. Depois do enterro de minha mãe, meu padrinho e os outros ciganos foram acampar no interior da Inglaterra e me levaram. E por lá cresci. Quatro anos atrás, voltei para Londres, agora adulta, e disposta a vingar a morte de minha mãe. Mas, quando cheguei aqui, já não sabia mais do paradeiro de Dr. Wagner.
- Ele se aposentou da medicina há mais de dez anos – explico.
- Foi o que ouvi no hospital. Eu não sabia onde ele morava, ou o que ele fazia agora. Passei então vários meses tentando reencontrá-lo, até que, finalmente, descobri que ele estava doente e internado no St. Mary Hospital. Não me deixaram entrar para vê-lo, eu era uma desconhecida. Então decidi que iria me plantar, todos os dias, à porta do hospital. Se a doença não matasse aquele demônio, eu o mataria assim que ele pusesse os pés lá fora.
- Mas, logo no primeiro dia que você se plantou diante do St. Mary, acabou me conhecendo. E, principalmente, acabou conhecendo Emilia.
Thessalia oculta a cabeça entre as mãos e fica assim por vários minutos.
- Foi como ver um fantasma! – murmura. – Foi como se minha mãe estivesse viva, à minha frente! A garota era idêntica a ela! E pela idade que aparentava ter, quinze anos, devia ter nascido à mesma época em que minha mãe morreu.
- E você soube imediatamente o que Emilia era. Por isso se desequilibrou e caiu...
- Sim. Entendi imediatamente quem ela era. A filha do estupro. Minha irmã.
Sinto meu coração afundar na barriga, e a sensação de que o mundo gira em torno de mim só piora. Tudo que estou escutando é mais terrível do que a morte.
- Seu pai não matou o bebê! – Thessalia grunhe, cheia de ira. – Ele matou minha mãe e roubou a criança! Foi fácil pra ele arranjar tudo, dado a influência que ele tinha no hospital...
Lembro-me de Wagner aparecendo em casa, aos meus sete anos, com uma criança nos braços. A filha de uma atriz por quem ele se apaixonara durante a campanha na Alemanha, e que morrera em Londres após o fim da Guerra. Essa foi a história que ele nos contou, e que todos acreditamos.
Mas não. Era um pouquinho diferente disso: Emilia era a filha de uma cigana que ele violentara na Alemanha, e que mais tarde morrera nas mãos dele em Londres, após o fim da Guerra...
Oh, Emilia!
- Conhecer você e Emilia, naquele dia no hospital, acabou inibindo meus planos de vingança – prossegue Thessalia. – Eu fui gostando de você a cada encontro que nós tínhamos, e estava possuída pelo desejo de me aproximar de Emilia. Como eu poderia me vingar do demônio, portanto, sem colocar em risco o relacionamento que eu estava construindo com vocês?
- Então você realmente quis se casar comigo.
- Indiscutivelmente sim. Eu te amo.
Fico vários instantes em silêncio, reverberando aquelas palavras.
- Relutar em se vingar é uma coisa – torno a falar. – Agora, aceitar conviver com o homem que violentou e matou sua mãe é outra. Por que, depois de se casar comigo, você aceitou viver na mesma casa em que Wagner? Aquilo deveria ser um inferno para você!
- E era. Mas eu queria ficar sob o mesmo teto em que o demônio.
Isso não faz nenhum sentido para mim. Mas, como Thessalia se cala, não insisto na questão, talvez por medo do que ela poderá me responder.
- E Emilia? Você tinha uma relação de amor e ódio por ela, não é? Amor por ser sua irmã, ódio por ser filha da violência que matou sua mãe.
Thessalia contrai a face e me olha escandalizada.
- Ódio? – ruge. – Como eu poderia alguém que é a imagem cuspida de minha mãe? Não, não. Foi o contrário: eu me apeguei a Emilia no instante em que a vi.
Aquilo me surpreende.
- Então por que você a aterrorizava? Por que a perseguia pela casa?
- Eu jamais persegui Emilia. Eu estava tentando protegê-la. – Aqui Thessalia faz uma pausa e abaixa a voz. – Keller, no dia em que você me levou para conhecer seu pai, eu reparei na forma como ele encarava a garota. Era o mesmo olhar. O mesmo olhar que ele deu à minha mãe na noite em que a violentou.
Levanto-me imediatamente, tomado de terrível choque, e avanço até Thessalia, agarrando-lhe os ombros.
- O que você está dizendo?! – balbucio, cheio de perturbação. – Está dizendo que meu pai... fazia algum mal à Emilia?
- Não, ele nunca fez. Mas sempre temi que ele um dia fizesse. Porque ele queria, ah se queria! Dava pra ver no rosto dele! O amor que ele sentia por ela era claramente doentio! Por isso, sabendo do que aquele demônio era capaz, percebi que eu só tinha duas opções: ou eu o matava logo, antes que ele colocasse em prática qualquer intento, ou eu o mantinha sempre sob minhas vistas. Não querendo arriscar perder você e Emilia, escolhi a segunda opção. Por isso, aceitei de bom grado me mudar para o Inferno e conviver com o demônio. Assim, eu poderia impedi-lo de tocar em Emilia.
- Isso explica porque você seguia Emilia pela casa... – compreendo. – Porque você estava sempre aparecendo atrás dela... Você queria impedi-la de ficar sozinha, desprotegida perto de meu pai.
- Sim. Eu receava que, nos momentos em que você estivesse trabalhando, o velho poderia aproveitar pra tentar fazer algum mal à garota. Então eu andava sempre com uma faca nas vestes, para poder intervir caso alguma coisa acontecesse. O problema é que Emilia percebeu isso, e entendeu tudo errado. Pensou que eu a estava perseguindo, que eu a odiava.
- E aquele dia em que te apanhei acuando-a contra a estante, na biblioteca?
- Você se lembra da história bíblica de Amnon, que fingiu estar doente só para violentar a própria irmã? II Samuel, capítulo 13. Pois quando Wagner pegou aquele "resfriado" e ficou de cama, e passou a pedir Emilia para subir e lhe tocar piano, eu comecei a achar que o velho estava fingindo a doença. E, temendo o que ele estava planejando fazer à Emilia, decidi que era hora de matá-lo. Uma tarde, apanhei a faca e fui até o quarto dele, determinada a lhe abrir a garganta. Mas Emilia apareceu no corredor, e viu o olhar assassino em meu rosto, e pensou que o olhar era pra ela. Correu de mim. Fui atrás, tentando me justificar, mas ela não quis me ouvir. Como eu fiquei frustrada! Se Emilia tivesse tido mãe, nossa mãe, teria aprendido a reconhecer quando um homem está agindo com intentos malignos...
- Por isso você ficou aliviada quando decidi que iria mandar Emilia para Paris.
- Claro! Em Paris, ela estava a salvo de qualquer investida de Wagner! Como eu fiquei feliz nas semanas seguintes, sabendo que ela estava segura, longe das garras do demônio! Mas, na noite em que ela retornou, alguns meses depois, eu vi a forma como o velho olhou pra ela, e havia tanta cobiça naquele olhar demoníaco que eu entendi que, agora, ele estava realmente resignado ao mal. Eu só o tinha visto olhar com aquela cobiça pra alguém dezoito anos atrás. E o resultado estava ali na frente, sofrendo o mesmo tipo de cobiça. Então, novamente, decidi que iria matá-lo, e faria isso naquela madrugada mesmo. Iria enfim vingar minha mãe e, ao mesmo tempo, livrar minha irmã de ter um destino parecido.
Fico calado, rememorando o momento em que entrei no quarto de Wagner e encontrei Thessalia tentando sufocá-lo... "O jeito com que ele olha!", ela gritava, referindo-se à forma como meu pai olhava para Emilia...
- Por que você não me contou a verdade? – indago. – Por que me deixou te internar? Por que não disse que Wagner era um perigo para minha irmã?
- E você acreditaria? Enfrentar demônios, quando todos pensam que eles são anjos, sempre parece loucura pra quem não conhece a verdade.
Mesmo em meio à dor, não aguento e sorrio. Aqui está. A frase que ecoou na minha cabeça pouco tempo atrás, no velório. A frase que me fez deduzir que, para Thessalia, meu pai era um demônio. A frase que, se a teoria de Ludovico estivesse certa, poderia ser um eco do futuro. E que, aqui agora, estava sendo dita pela boca de Thessalia. Déjà vu. A teoria se revelando outra vez correta.
- Ele morreu, sabia? – falo, minha voz desregulada, meus olhos contemplando o vazio. – Meu pai.... Acabei de vir do enterro.... O demônio finalmente voltou às profundezas.
Vejo as mais diversas expressões eclodirem no rosto de Thessalia. As mais notáveis são o alívio, a alegria, o júbilo. Mas são rapidamente substituídas pela culpa e pelo medo. Medo de eu ter notado as primeiras expressões, suponho. Perco-me na contemplação daquele rosto de emoções conflitas; um rosto que, como percebi ainda há pouco, tinha traços bastante semelhantes ao de Emilia...
Então me ergo, sento-me ao lado de Thessalia e passo um braço em seus ombros. Ambos ficamos em silêncio, cada um vivendo, dentro de si, um turbilhão de sentimentos.
Eu me sinto completamente oco e sem vida. De fato, descobrir que o homem que me acolheu e criou era um monstro é pior do que perdê-lo para a morte. Saber que aquele velho Wagner, tão bonzinho, sempre contando as histórias da guerra, falando muitas vezes de como o destino lhe sorriu, era na verdade um demônio, um homem que cometera coisas terríveis e andara intentando cometer outras igualmente terríveis... Saber disso era como perdê-lo duas vezes; pior, era ver toda a imagem que eu tinha dele em vida se deformar, ser corrompida, aniquilada...
- Perdoe-me por nunca ter te contado a verdade – murmura minha esposa, e há dor em sua voz. – No início, era apenas porque eu não queria perder você e Emilia... E, no final, era porque eu sabia que vocês já não iriam acreditar em mim... Mas, principalmente, perdoe-me por tê-la contado... Pois agora serei, eternamente, a odiosa pessoa que te roubou a visão que você tem de seu pai.
- E se você tiver se enganado? – redarguo, numa última réstia de esperança. – E se o velho nunca, em nenhum instante, viu Emilia com outros olhos, e a amava apenas como um pai ama a uma filha? Talvez Emilia se parecia tanto com sua mãe, Thessalia, que quando Wagner olhava para a garota tudo que sua mente traumatizada via era um violentador olhando para a vítima...
Thessalia dá de ombros e, naquele momento, percebo que ela também já pensou nessa possibilidade. Abre a boca para falar, mas a impeço:
- No fim, tanto faz – digo. – Tanto faz se seus temores estavam certos ou errados. Não muda o fato de que meu pai era um violentador e um assassino, que tirou sua mãe de você. Você só nunca deixou de vê-lo como ele realmente era...
Então me levanto de supetão. Ainda estou me sentindo bêbado, quebrado, desregulado, e ficar em pé requer um esforço hercúleo. Questiono-me se, algum dia, essas sensações irão acabar; se, algum dia, serei capaz de superar as terríveis verdades que ouvi hoje, e tornar a ser alguém feliz; se algum dia terei coragem de contar a Emilia a verdade sobre o pai dela, sobre a mãe dela... E se, após isso, ela um dia voltará a ser feliz...
- Aonde você vai? – pergunta-me Thessalia, alarmada, atrás de mim.
Paro-me e volto-me para ela. Sorrio tristemente.
- Fazer a única coisa certa a se fazer nesse instante. Tirar você daqui.
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Olá, pessoal, tudo bem?
É... O passado de Thessalia e Keller (narrado lá no segundo capítulo) estava mais interligado do que o rapaz poderia imaginar! :(
Ainda não acabou: o conto terá um Epílogo!
Nos vemos lá!
Obrigado a todos pela leitura, e um grande abraço! <3
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