VI
Emilia, a princípio, mostra bastante resistência à ideia de ir para Paris.
- O que vou ficar fazendo perto de uma tia que mal conheço? E, sinceramente, nem de Paris eu gosto!
Apenas quando Ludovico diz que também tem alguns parentes na Cidade Luz e que, em breve, aparecerá por lá para lhe fazer companhia, a garota aceita partir.
Thessalia recebe a notícia da viagem com um indisfarçável júbilo:
- É a mais sábia das decisões, Keller! – ela me abraça, quando lhe conto. – A mais sábia!
Essa reação me deixa muito atormentado. "Então ela quer mesmo se livrar de Emilia?", questiono-me. "Ou só está aliviada por que se preocupa com a garota?"
Já meu pai fica arrasado com a novidade. Tanto que ele consegue se levantar da cama, com algum esforço, e descer para dar um abraço de despedida na filha da guerra.
- Agora sim eu morro! – fala, cheio de dor. – Estão tirando minha filha de mim...
- Não faça dramas, pai! Logo estou de volta.
- É bom voltar! Senão eu vou te buscar, eu ou o meu fantasma, mas vou!
Meu coração se comprime com aquela cena. E se, de fato, tudo isso fizer o velho piorar ainda mais?
Mas, felizmente, poucos dias após a partida de Emilia meu pai melhora e se cura do resfriado. Mostra-se melancólico, é verdade, com o espírito todo amargurado, mas fisicamente fica melhor do que nunca. A Guerra perdeu de novo.
Outra pessoa que parece melhor do que nunca é Thessalia; ela agora desfila pela casa com um inexplicável triunfo no rosto, como se fosse a rainha do universo, e seu novo passatempo preferido é cantarolar pelos cantos. A felicidade dela é quase imoral perto da amargura de Wagner, e noto que isso faz com que ele olhe cada vez mais desgostosamente para ela.
- Não que eu queira perturbar seu casamento, filho – desabafa meu pai, duas semanas depois –, mas o comportamento recente da Sra. Keller tem sido intrigante. Estive me perguntando se a razão de tanta alegria não é a ausência de Emilia...
- Eu sei – suspiro, mais abatido que um jogador da seleção após perder uma final de goleada. – Estou com medo, pai. Medo de que, no fim de tudo, os temores de Emilia não eram tão infundados assim...
- Talvez sua esposa apenas não goste da ideia de outra mulher na casa. Ciganas são ciumentas, é o que todo mundo diz.
- O que devo fazer então? Manter Emilia em Paris até eu ter condições de me mudar daqui?
- Não – o velho retruca, taxativamente. – Emilia volta.
E, com aquilo, meu pai deixa bem claro o que eu sempre soube: que é Thessalia e eu quem estamos sobrando nessa casa. Este ninho não é meu.
Seguindo à risca o conselho de Ludovico, passo as semanas seguintes analisando o comportamento de Thessalia, à procura de sinais que atestem alguma possível loucura. Mas não consigo ver, naquele sorriso malicioso que ela tem, naqueles olhares misteriosos, naqueles gestos dançantes, não consigo ver nada que lembre o monstro que Emilia vê, que revele alguma perturbação mental profunda. Tudo que vejo é a cigana por quem me apaixonei. A artista capaz de arrancar aplausos do mais carrancudo britânico, mas que fraqueja ante a expectativa de saber se está agradando ou não...
Não, Thessalia não está louca. A verdade pode ser bem mais simples do que isso. "Ela é uma cigana, e cigana são ciumentas.". Sim, é claro. Minha esposa não odeia Emilia, nunca odiou! Apenas não quer conviver no mesmo ambiente em que a garota. Que esposa não deseja ser a senhora de seu próprio lar, a única mulher da casa? Que mulher, nos primeiros dias do casamento, não anseia pela atenção integral do marido? Sim, é disso que se trata. É um clássico caso de ciúme de atenção.
Não ódio, não loucura. Apenas ciúmes. É o que me repito, é o que me convenço, é o "diagnóstico" a que vou chegando.
E a ideia de que a coisa é simples assim parece ser confirmada numa tarde de sábado, dois meses depois. Thessalia e eu estamos na sala, lendo alguns jornais, quando ela me diz subitamente:
- Sinto falta de Emilia.
Olho-a, surpreso.
- Ãh?
- Sinto falta dela. Até mesmo da forma aterrorizada com que ela me olha...
Sorri tristemente, seus olhos transparecendo um sentimento genuíno de saudade.
- Ela já está quase voltando, amor – digo, ainda admirado.
- Ela pensava que eu tinha ciúmes dela, tenho certeza. Por isso me temia tanto.
- E você... tinha? – pergunto, quase imediatamente.
Thessalia continua nostálgica demais pra notar meu interesse repentino.
- Ela é a vida dessa casa, não é? – responde, com um sorriso vago. – É incrível como o humor dela afeta o ambiente daqui. Um poder que eu nunca tive... Minha mãe era assim...
- Você também é! Eu já não te disse que você tem o mesmo efeito em mim que uma canção italiana tem em você?
- Sim...
- Pois então! – puxo-a para um abraço. – Você, Emilia, sua mãe... Todos nós somos, para alguém, a vida do ambiente.
Thessalia ri, mais descontraída.
- Emilia já está quase voltando – repito, exultante. – E, quando ela voltar... Tente não demonstrar muito ciúme, nem empunhar uma faca perto dela, pode ser?
Ela revira os olhos.
Sim, apenas ciúmes, penso aliviado. Um ciúme que, quando enfraquecido, revela o sentimento genuíno que minha esposa tem pela cunhada.
Emilia retorna algum tempo depois, à altura de seu aniversário de dezessete anos. Vem acompanhada da tia – que aproveita a ocasião para visitar Londres – e de Ludovico. Meu amigo também passou todo esse tempo em Paris, confirmando minhas suspeitas de que ele não é tão desprovido de sentimentos quanto minha irmã o acusa. Principalmente em relação a ela.
- Keller! – grita Emilia, jogando-se em meu pescoço. – Pai! – ela corre para o velho, que treme de emoção. – Thessalia! – e, para minha surpresa, até Thessalia recebe um abraço.
Naquela noite, enquanto comemoramos o retorno e o aniversário de Emilia, vejo que a estadia em Paris foi tão efetiva quanto Ludovico sugeriu. Minha irmã não só parece mais alegre, como aparenta ter esquecido todo o medo que Thessalia lhe causa. De fato, após o jantar, vejo as duas se encaminhando para a varanda, e julgo ler nos lábios de Emilia um pedido de desculpa.
- Ah, minha filha, quanto orgulho você me dá! – diz o velho Wagner, os olhos brilhando de uma maneira como nunca vi antes, quando estamos todos reunidos diante da lareira. – E, pela rainha! Como é possível que você possa ter ficado ainda mais linda? – e dá uma risada entrecortada por tosses.
- Tirou alguma conclusão sobre sua esposa, Keller? – pergunta-me Ludovico, baixinho, enquanto os outros conversam.
- Várias – coço a garganta, calmamente. – E loucura não está entre elas.
Ludovico arqueia as sobrancelhas, cético.
- É um simples caso de ciúme, amigo – explico. – Acredito que Thessalia deseja aquilo que toda mulher recém-casada quer: a atenção integral do marido.
- Mas Emy não é a única pessoa nessa casa que te rouba a atenção! Tem seu pai, tem até mesmo eu. Por que então ela se enciúma apenas de Emy?
- Emy? – sorrio.
Ludovico fica mais vermelho que a bandeira do partido comunista.
- Emilia é mulher – prossigo. – Mulheres tem o péssimo costume de enxergar umas às outras como inimigas.
Meu amigo balbucia alguma coisa qualquer e se cala, ainda corado.
É feliz que vou me deitar. Tudo está voltando ao normal. Inclusive minhas preocupações. Posso até não me preocupar mais com a sanidade de Thessalia, mas uma coisa é certa: agora que Emilia voltou, eu e minha esposa precisamos nos mudar desta casa o mais rápido possível. Antes que tudo comece a se repetir.
Antes de fechar os olhos, faço um pedido para o céu:
"Rogo para que o impossível logo se torne possível. E que, enquanto isso não acontece, o desentendimento não volte a habitar esta casa. Amém."
E, cheio de esperança, durmo.
Acordo no meio da madrugada, com o som de algo se quebrando. Olho para meu lado: Thessalia não está na cama. Ouço gritos abafados. Ponho-me de pé no mesmo instante, já levando a mão à escrivaninha, e apanho o revólver.
Saio em disparada pela casa, os ouvidos atentos. Um novo grito corta o silêncio, e agora consigo identificar sua origem: vem do quarto de meu pai.
Chego derrapando até a porta e descubro-a escancarada, mostrando um quarto em trevas. Entro e tateio a parede, à procura do interruptor, e levo alguns instantes até conseguir acender a luz.
Thessalia está em pé ao lado da cama, pressionando um travesseiro contra o rosto do velho Wagner. O homem tenta se livrar, debatendo braços e pernas, mas a cigana tem uma força incrivelmente superior à dele. No chão, estão os pedaços do abajur, cuja queda me acordou.
Thessalia vira o rosto e me vê entrar. Mas, em vez de parar o que está fazendo, passa a sufocar Wagner ainda com mais força.
- O jeito com que ele olha! – ela grunhe, a voz fora de si, os olhos saltados de insanidade. Não sei se está se dirigindo a mim ou a algum espírito invisível. – Acha mesmo que não consigo ler?
Deixo o revólver cair e me jogo contra Thessalia, agarrando-a por trás e tirando-a de cima do velho. Assim que a toco, ela deixa de oferecer resistência.
- Pai! – grito, contendo Thessalia. – O senhor está bem? Pai!
O velho Wagner está trêmulo sobre a cama, e consegue se livrar do travesseiro. Sua respiração está pesada, e seu peito sobe e desce como um balão.
Escuto soluços. Thessalia começou a chorar.
E eu também choro. Em silêncio, mas choro. Meu maior medo acabou de ser confirmado.
Viro Thessalia, e o aperto se torna um abraço. Acaricio o rosto lacrimejante dela.
- Eu sinto muito – digo, a voz embargada. – Tentei não ver, mas agora está tudo muito claro... Você não está bem, nunca esteve.
- Keller...
- Não é sua culpa. Isso é o que as tragédias fizeram com você. Eu sinto muito.
- Não me tire do inferno, Keller!
- Você precisa de tratamento, amor... Eu sinto tanto...
- Você não vai me internar! Você não pode fazer isso. Você não pode! – e começa a gritar e a esmurrar o meu peito.
Emilia, a tia e Ludovico entram no quarto. Não demoram muito a compreender o que está acontecendo. Emilia grita.
Com um aceno, dou um sinal a Ludovico, e ele deixa o recinto.
Meia hora mais tarde, ele retorna acompanhado pela Scotland Yard.
- Eu sinto muito, amor... – repito, baixinho, minhas lágrimas encharcando os cabelos de Thessalia. – Eu sinto muito... Eu te amo...
E a alegria, a inconstante alegria, encontra o seu fim enquanto vejo minha esposa ser levada para o interrogatório e, depois, ser encaminhada para um sanatório.
E, com a alegria, cessa-se também toda minha razão de viver.
Malditos sejam os homens. Malditas sejam as guerras. Malditos sejam os nazistas.
Malditos sejam todos!
*********
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top