V


- É uma situação curiosa, filho.

O velho Wagner e eu estamos recostados nas poltronas da varanda. O céu noturno está sem vida, e o ar está sobrecarregado de impurezas, fazendo meu pai tossir a cada dois minutos.

Acabo de lhe contar sobre os terrores de Emilia, e de externar minha preocupação para com o ambiente aqui em casa. Ainda não sei como lidar com essa situação e, nesses momentos, só me resta recorrer ao conselho paterno.

- Thessalia é uma cigana, pai. O comportamento dela é diferente do de uma dama londrina. Ela é, por natureza, mais impulsiva – inclusive na hora de demonstrar apego. Ciganos são mais calorosos nas manifestações de afeto, e Emilia, como a perfeita britânica que é, não compreende isso.

Mas meu pai meneia a cabeça, reflexivamente.

- Filho, você uma vez me disse que a Sra. Keller passou por um campo de concentração na infância, não é verdade?

Dou um suspiro melancólico.

- Sim. Thessalia viveu alguns horrores. Perdeu o pai, sofreu seis meses num campo nazista, viu a mãe ser estuprada e posteriormente assassinada...

Os olhos de meu pai focam o vazio e viajam na escuridão.

- Se você visse o que os nazistas faziam naqueles campos, filho! – diz ele, soturno. – A pessoa pensa que sabe o que é crueldade até entrar num campo de extermínio. É ali, ao ver aqueles corpos secos amontoados uns sobre os outros, corpos de crianças, mulheres, homens e idosos, todos exibindo as marcas do sofrimento... É ali que você vê a verdadeira face do demônio. É ali que você tem um vislumbre de como o inferno deve ser. Imagine viver seis meses em meio àquilo? Afetaria a sanidade de qualquer um.

- Você acha que a de Thessalia foi afetada?

Wagner coloca os olhos tristes e enrugados em mim.

- Você não faz ideia do estrago que as tragédias podem fazer à mente de uma pessoa. Tenho amigos que lutaram ao meu lado na guerra e que, hoje, enxergam demônios em portas e fadas em esquinas... Eu mesmo só nunca enlouqueci porque o sorriso de minha Emilia nunca deixou.

Aquelas palavras me deixam profundamente inquieto.

- Então você acredita que os terrores de Emilia têm fundamento, que Thessalia é um perigo?

- Não, jamais! – meu pai estende a mão e me toca o ombro. – O que digo, filho, é que a Sra. Keller tem motivos de sobra para não agir como uma pessoa comum. Isso não significa que ela é insana. Ambos sabemos que não! Ela apenas sente mais carência de amor, talvez.

E as palavras do velho Wagner, em vez de me acalmarem, deixam meu espírito ainda mais pesado.

Onde está a alegria de pouco tempo atrás?

Algo que Emilia me disse, contudo, precisa ser verificado. E por isso, à hora de dormir, quando Thessalia e eu subimos para o quarto, peço que minha esposa revele o que tem sob o vestido.

Ela demonstra surpresa, mas não nega o pedido. E, aos meus olhos, vai se despindo rapidamente, deixando-me em seguida revistar suas vestes. Mas não encontro nenhuma faca.

- O que significou isso? – pergunta ela, numa voz rascante e ofendida, quando termino.

- Sinto muito, amor – suspiro, sentindo-me velho. – Principalmente pelo que vou lhe dizer.

Ela retira os brincos de argolas com certa ferocidade, mantendo os olhos arregalados em mim.

- Você está me assustando.

- E você está assustando Emilia. A pobre moça morre de medo de você.

Emilia ontem dividiu um drama comigo, e agora devo estar com um pouco dos terrores dela impregnados em mim. Digo isso porque, assim que termino de falar, vejo uma estranha sombra passar pelo rosto de Thessalia – uma sombra que lembra, inconfundivelmente, ao ódio e à frustração.

Mas, quando minha esposa cai sentada na cama e começa a chorar, concluo que foi só minha imaginação.

- Por que eu a a-assusto? O q-que fiz a ela?

- Nada, meu bem! A questão é que você aprecia muito a companhia de Emilia; mas a garota não está habituada à proximidade constante. Nós britânicos, em geral, não estamos...

- Minha companhia a assusta, é isso? – por trás dos soluços, a voz de Thessalia demonstra mais curiosidade do que lamento.

- Apenas... dê mais espaço a ela – confirmo, abraçando-a. – Não é sua culpa. Emilia é esperta, e aos poucos vai perceber o quanto está sendo tola. Só lhe dê um pouco mais de espaço.

Nos dias que se seguem, Thessalia passa a evitar ficar perto de Emilia. A princípio, isso me deixa ainda mais preocupado, pois minha esposa inverteu completamente o comportamento e agora trata a garota com uma formalidade fria, quase como se mal a conhecesse. Temo que isso, em vez de aplacar os temores de Emilia, apenas faça com que eles atinjam um novo grau.

Mas o comportamento surte efeito, pois, aos poucos, o clima de abafamento começa a evaporar da casa. Emilia recupera a naturalidade cotidiana, e deixa de ser a garota assustadiça em que se tornara; volta a sorrir com frequência, e logo já anda pela casa com Shakespeare na mão, recitando falas de personagens como se ensaiasse para alguma peça.

A rabugice do velho Wagner também desaparece, talvez porque agora sobre algum tempo da atenção de Emilia para ele. Geralmente, quando chego do trabalho, encontro-o na sala de estar, ouvindo, com um sorriso no rosto, Emilia ler-lhe em voz alta a passagem preferida dela de algum livro.

Thessalia não parece muito satisfeita; não me escapam os olhares furtivos que ela lança na direção da Emilia e, pra falar a verdade, ela passou a tratar a todos da casa com certo rancor. Chega mesmo a grunhir, às vezes, quando alguém fala com ela, como a vi fazer em mais de uma ocasião com meu pai. Mas, por outro lado, é bem visível o quanto ela está aliviada por não causar mais terror à cunhada; e, em defesa dela, eu confesso que também ficaria rancoroso se soubesse que minha presença e amizade assustam alguém.

Mas, de qualquer forma, esse rancor de Thessalia é tão sutil que apenas eu, por conhecê-la bem, o noto; e a sensação geral que tenho, ao término de duas semanas, é que a maré de alegria tornou a se sobrepor sobre o resto.

Tudo voltou ao normal.

Mas já não reclamei eu sobre as inconstâncias da alegria?

Quando tudo parece bem, meu pai é acometido por uma nova fraqueza e cai de cama. Mas se recusa terminantemente a ir ao hospital. Afirma que, dessa vez, trata-se apenas de um resfriado. Fica o tempo todo em seu quarto e, às vezes, pede para Emilia subir e lhe tocar um pouco de piano. Encho-me de temor pela vida do velho, mas ele me tranquiliza:

- Ora, se nem duas guerras mundiais me mataram, você acha que um resfriado conseguirá?

O adoecimento do velho causa uma onda de tristeza. Emilia carrega no rosto a mesma preocupação que sempre temos quando nosso pai recai: a de que, dessa vez, ele não escape. E até Thessalia aparenta estar melancólica; tanto que, certa noite, ao entrar em meu quarto, surpreendentemente encontro-a lendo a Bíblia.

- Faz tempo que não te vejo abri-la! – sorrio, aproximando-me e espiando a página. O topo marca "2º Samuel 12 a 13".

Thessalia se sobressalta ao me ver.

- Ah... certas ocasiões nos fazem lembrar do quanto é importante lê-la – responde, fechando a Bíblia.

- O velho vai ficar bem – digo, acalentador. – Ele sempre fica.

- É verdade. Ele sempre fica...

Eu nunca imaginei que minha esposa estimasse tanto o velho Wagner. Afinal, de todos nós, ela é a que mais se mostra impactada pelo adoecimento; seu humor está ouriço e inflamável, e ela vive em estado de constante tensão, como se com medo de que a morte visite nossa casa. Além do mais, Thessalia está sempre rodeando a porta do quarto do velho, e parece acreditar que sua proximidade é a única coisa que pode mantê-lo vivo.

Eu sou o menos preocupado. Já tem quinze anos que lido com os problemas de saúde de Wagner, e acredito piamente que ele sairá desse mais forte do que nunca. Até porque dessa vez é diferente; ao contrário das outras vezes, ele continua com a aparência boa e saudável, tem a voz firme e come com mais apetite do que nunca. Se não fosse sua afirmação de que se sente muito fraco para levantar da cama, ninguém poderia dizer que ele estava doente.

Mas, se pra mim isso é um bom sinal, para Emilia é o oposto.

- Essa fraqueza dele não é como as anteriores – externa para mim, preocupada. – E se estivermos enfrentando algo completamente novo? Algo... fatal?

Como se não bastasse esse clima agourento, um dia chego mais cedo em casa e escuto berros horrorosos vindos da biblioteca. Meu peito salta ao reconhecer a voz de minha irmã, e corro desabalado até o recinto.

E não estou preparado para o que vejo.

Thessalia está com uma faca na mão, e acua Emilia contra uma das estantes. Está com a aparência mais ensandecida do que nunca, e seus olhos faíscam daquele jeito perturbador que me tira o sono. Minha irmã grita e vai escorregando de costas, protegendo o rosto com os braços.

- Você está sendo tola!grita Thessalia, histérica. – Se você tivesse uma mãe pra cuidar de ti, isso seria tão mais fácil!

Tenho um estranho déjà vu ao ouvir aquilo e, por um mínimo segundo, fico paralisado.

Então salto, arranco Thessalia pra longe de Emilia e a pressiono contra a parede, furioso.

- Qual é o seu problema?! – exclamo, com a mão no pescoço dela. – Que loucura é essa?

Os olhos de Thessalia parecem girar em torno de si mesmos. Deixa a faca cair no chão.

- Eu não estava... fazendo... nada...

- O que aconteceu, Emilia? – pergunto, sem soltar Thessalia.

Leva vários minutos até a garota se recompor dos soluços e começar a falar.

- Eu... – ela soluça. – Eu estava subindo pra tocar piano pro nosso pai, quando esbarro com ela, vindo em meu rumo com essa faca... Com cara de quem vai me matar... Então corri pra cá, mas ela me perseguiu...

Torno a encarar Thessalia, cujo rosto está coberto de lágrimas.

- Ela me entendeu errado, amor, eu juro. Eu só estava indo cortar batatas! Mas ela pensa que eu sou um monstro! Foi só me ver e saiu correndo, como se eu fosse o capeta! Corri atrás pra tentar me explicar, só isso...

- Tentar se explicar ou gritar-lhe ofensas, como te encontrei fazendo?

- Eu não estava tentando ofendê-la!

- Você estava apontando uma faca pra ela!

- Eu não estava! Eu não estava! Eu não estava!

E fica repetindo essas palavras sem parar, enquanto passa a chorar como uma criança.

- Ela vai me matar... – funga Emilia, de seu canto. – Me odeia... Ela vai me matar... Vai matar a todos nós...

Oh, Deus.

Estou preso em um emblema, num inferno na terra.

Não sei o que pensar; que dirá o que fazer.

Parte de mim rememora as palavras de meu pai, sobre tragédias e insanidade, e lembro-me até mesmo do aviso que Ludovico um dia me deu. Será que minha esposa não pertence mais ao mundo dos sãos?

Mas outra parte diz que tudo pode ser um grande engano; um choque cultural, talvez. É possível que Emilia, o tempo inteiro, esteja realmente interpretando Thessalia de forma errada, que esteja se predispondo a ver perigo em cada pequeno ato da cigana. Um grande desentendimento.

Dessa vez, não vou buscar conselhos com meu pai. Volto-me ao meu bom amigo Ludovico, a pessoa de pensamentos mais objetivos que já conheci.

- De fato, pode ser que sua esposa esteja ensandecida, e realmente ande perseguindo Emilia – ele pondera. Estamos caminhando pelo pomar, os olhos atentos a Emilia na varanda. – Mas também pode ser que Emilia esteja prejulgando a Sra. Keller, interpretando errado cada gesto dela. Um britânico educado em nessa sociedade fria não é capaz de entender o calor de um cigano...

- O que você sugere que eu faça, Ludovico?

Ele reflete por vários instantes, sem desviar jamais o olhar de minha irmã.

"O jeito com que ele olha...", penso subitamente, distraindo-me. "Acha mesmo que não consigo ler?"

- Emilia não tem uma tia em Paris? – Ludovico enfim responde. – Mande-a para lá por algum tempo. Assim, ela ficará livre do terror que Thessalia lhe impõe. E, enquanto isso, você poderá analisar melhor o comportamento de sua esposa, ver se ela é de fato perturbada.

Então, depois de refletir bem naquilo, é o que enfim decido fazer.


*********

Hey, pessoal, tudo bem?

Qual a opinião de vocês: Emilia está cometendo um erro de julgamento, por não compreender bem o jeito e os costumes de Thessalia; ou a cigana realmente não bate bem das ideias, e tá querendo matar a coitada?

Obrigado a todos pela leitura!

Me atrasei nas postagens, pois passei a semana passada viajando (sim! um pobre viajando! \o/), e em Caldas Novas a internet não é lá grande coisa.

Mas, nessa semana, termino a postagem dos três capítulos restantes.

Um grande abraço a todos!


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