IV


Thessalia é agora a senhora de minha casa, na qual também vivem meu pai e minha irmã. A casa é tão grande que abrigaria mais uma dezena de pessoas, se necessário; mas, para dois recém-casados, até mesmo um castelo é pequeno, se nele houver uma pessoa a mais do que deveria.

São essas inquietudes que me fazem trabalhar cada dia com mais fervor. Todas as manhãs, saio para a redação do jornal onde trabalho, e só retorno ao entardecer, cansado, mas feliz. Sou recebido em casa pelo beijo de Thessalia e por um sorriso de Emilia, esta quase sempre com Shakespeare ou com alguma tragédia grega nas mãos. Nesse horário, o velho Wagner está na varanda, fazendo seu passatempo preferido: fumando ao crepúsculo, enquanto se deixa perder nas memórias da guerra e dos amores perdidos.

Meu casamento trouxe um novo ânimo para essa casa. Antigamente, costumávamos jantar às seis, passávamos a hora seguinte na sala de estar e, às oito, já estávamos em nossos quartos. Com a presença de Thessalia, todavia, isso mudou. Após o jantar, passamos várias horas na sala de estar, divertindo-nos com as danças e os pequenos espetáculos que minha esposa gosta de nos proporcionar, arrancando aplausos entusiasmados de meu pai e de Emilia.

- Sei que você sonha em deixar, o mais rápido possível, a casa de nosso pai – cochicha-me Emilia, numa noite em que assistimos Thessalia fazer seu clássico malabarismo com tochas. Wagner, na poltrona perto da lareira, observa a cigana com apreensão, provavelmente temeroso de que ela ateie fogo na sala.

- Claro que sonho. É a obrigação de todo homem deixar o ninho dos pais.

- Não era bem assim nos tempos antigos...

- Mas não estamos nos tempos antigos, estamos?

- Pois espero que vocês não nos deixem tão cedo. Não sei se posso me acostumar a viver sem isso – ri Emilia, apontando para Thessalia.

- Não seja por isso – brinco. – Quando tivermos nossa própria casa, você pode vir morar conosco.

- E acha que não vou?

Dou uma risada. Seria bem provável mesmo.

- Fico feliz que vocês duas tenham se tornado como irmãs. Quase nunca as vejo longe uma da outra.

Emilia dá de ombros, displicente.

- Isso vem mais da parte dela. Está sempre perto de mim, o dia todo. Deus, como ciganos gostam de conversar!

Caímos no riso. Pensando – corretamente – que rimos dela, Thessalia para o malabarismo e fica nos encarando, com censura.

- Louvado seja! – aplaude o velho Wagner, aliviado. – Eu já estava tendo um ataque de nervos.

- Não gosta do malabarismo, senhor? – Thessalia joga-se no sofá, um pouco arfante.

- Sou muito velho para me entusiasmar com o perigo. Ver essas tochas dançando no ar é como presenciar uma chuva de fogo...

- Se quiser, a partir de hoje não faço mais.

- Não, não! Continue. Danem-se os medos de um velho. O que realmente importa é que Emilia gosta, não é, filha? – Wagner se levanta, bocejante, e passa a mão na bochecha de Emilia.

A moça aquiesce, ainda rindo.

Olho pra Thessalia – e sinto uma pontada de susto. Os olhos dela estão carregados de um brilho frio e cortante, como dois raios numa noite tempestuosa, e parecem faiscar enquanto acompanham meu pai deixar a sala.

- Pobre pai – suspira Emilia, se levantando. – Nem imagina o quanto é desrespeitoso duvidar das habilidades de um artista.

- Dado o meu histórico com acidentes, ele tem certa razão – diz Thessalia, a frieza desaparecendo de seu rosto como se nunca tivesse estado lá, e dando lugar a um sorriso sonolento.

Ainda fico alguns segundos impactado por aquele olhar obscuro; mas então rio de mim mesmo. "Ora, seu tolo! Uma cigana sem olhares misteriosos não é uma cigana!".

Perceber essa obviedade traz uma nova ótica para a coisa; pois, desde então, passei a enxergar nesses olhares fulgurantes – que são recorrentes em Thessalia – uma das características mais atraentes de minha esposa.

Nos finais de semana, é comum Ludovico vir nos visitar e passar a tarde inteira por aqui. E, à noite, todos nos juntamos – à exceção do velho Wagner, que odeia sair de casa – e vamos assistir a alguma peça teatral ou ao filme novo do Charlton Heston. Emilia geralmente sai suspirando do teatro ou cinema, rememorando alguma cena empolgante; mas então Ludovico começa a criticar, com um ar de intelectual, algum ponto da obra, e os dois acabam imergindo numa discussão arrebatada que dura todo o trajeto de volta para casa.

- Sabe o que eu penso, amor? – diz-me Thessalia, num sussurro divertido. Estamos caminhando um pouco mais atrás dos dois debatedores. – Acho que sua amizade não é a única coisa que atrai Ludovico para nossa casa.

Fico reflexivo, observando minha irmã e meu amigo se digladiarem. Seria possível? A ideia me faz rir.

- Ludovico não tem sentimentos – retruco. – Pelo menos é o que Emilia vive dizendo.

E dou uma piscadela pra Thessalia.

- Esse seu amigo passa muito tempo com Emilia... – comenta meu pai, coincidentemente, na mesma noite. Estamos na sala de estar, e minha irmã continua debatendo raivosamente com Ludovico.

- Eu não me preocuparia – falo, achando graça no ciúme do velho. – Ludovico só quer saber de ciência, e Emilia, de arte...

- Você é um jornalista, e sua esposa uma artista de rua. No amor, as diferenças não fazem diferença, filho.

Contemplo a cozinha, onde Thessalia está preparando chá. Realmente, não poderia haver outra pessoa mais diferente de mim. E, ainda assim, não há outra pessoa tão igual a mim nesse mundo.

- Ai, ai. No fim de tudo, quem fica sobrando é o velho aqui – suspira Wagner, tristemente. – É incrível: durante a semana, sua esposa está o tempo inteiro na cola de Emilia, pra lá e pra cá. Nos finais de semana, é Ludovico. E Emilia, minha própria filha, agora não tem mais tempo pra prosear comigo. Ah, os dramas da velhice... Já consigo ver, daqui a pouco, todos vocês deixando a casa e me largando aqui, sozinho com meus demônios.

Abro a boca, mas Wagner me interrompe:

- Não diga nada. Com sorte, um dia você será velho e passará pelos mesmos dramas.

- Assim espero – sorrio, alegre. – Mas relaxa, pai. Nunca vamos te abandonar.

Outro problema crucial da alegria, entretanto, é a sua inconstância. Ela é como uma maré, que hora se sobrepõe, hora é sobreposta. Noto, na medida em que o tempo vai passando, que sentimentos estranhos têm se revelado ao redor de mim, ameaçando quebrar a supremacia da felicidade que tem reinado desde o casamento.

Com o correr das semanas, um clima de abafamento vai crescendo sobre a casa. Não sei o que está causando isso; talvez seja meu pai, cujos dramas da velhice, ultimamente, andam deixando-o cada vez mais rabugento. Resmunga pelos cantos, faz comentários ácidos quando alguém fala com ele, e retira-se pra dormir mais cedo do que o habitual. Contudo, quando o ouço gargalhar de algum comentário de Thessalia, ou o assisto compartilhar conosco algumas de suas memórias da Segunda Guerra, percebo que não é a rabugice dele que está causando aquele clima estranho.

Pode ser que seja Thessalia; noto que os olhares perturbadores estão se tornando sempre mais presentes na face dela. Não se passa um dia, agora, sem que eu a veja olhando fulminantemente para um canto qualquer. Às vezes penso que ela está perdida em algum mundo só dela, um mundo cujos mistérios me parecem cada vez menos atraentes e mais assustadores. Mas, sempre que ela me sorri apaixonadamente, ou nos dança o flamenco ao som do pandeiro no pomar, também deduzo que não é ela a origem do abafamento que aflige a casa.

Pergunto-me se não sou eu. Pode ser que eu, por algum motivo, esteja enxergando o mundo de forma cinzenta, pessimista. Afinal, quando olho para os rostos de Wagner, Emilia ou Thessalia, vejo alegria, estonteante alegria; mas, assim que viro as costas, sinto como se o tempo fechasse subitamente. Após profunda reflexão, porém, concluo que nada num passado próximo me afetou a ponto de alterar minha visão das coisas. Algo está acontecendo, e não sei o que é...

Leva várias semanas até eu descobrir quem é a fonte de todo aquele pesar.

É Emilia.

E só descobri porque, nos últimos dias, ela nem está mais se esforçando para parecer feliz; não sorri com a frequência de antes, e se assusta facilmente ao mero som de um passo.

- O que há com Emilia? – pergunto preocupado a Thessalia, certa tarde. – Ela anda abatida esses dias.

- Você acha? – minha esposa retruca, a voz ligeiramente estridente. – Não reparei.

- Como não? Ela mal sorri!

- O que estou querendo dizer – apressa-se Thessalia – é que isso é normal. Sabe como é a juventude, como nossas emoções ficam sensíveis nessa época... Deve ser alguma coisa do coração.

- Será que ela está apaixonada? – admiro-me.

Thessalia esboça um sorriso.

- Não sei. Talvez.

- Devo falar com ela? Dar algum conselho?

- Você, dar conselhos românticos? Essa eu pago pra ver.

Suspiro, desanimado. Se o que está abatendo Emilia são realmente as mazelas do coração, não há nada que eu possa fazer. Mas ainda não entendo como estar apaixonado deixaria uma pessoa aterrorizada, com medo dos próprios passos, como se em constante estado de alerta...

Numa tempestuosa noite de sexta-feira, Emilia e eu estamos sentados diante da lareira. Ela está com um livro poeirento nas mãos, enquanto eu folheio, preguiçosamente, o jornal da tarde. No canto da sala, o velho Wagner ronca em sua poltrona, murmurando palavras escapadas de algum sonho. A cada crepitar da lareira, Emilia ergue os olhos, assustada; mas, quando percebe que a encaro, dá um sorriso nervoso e volta a mergulhar no livro.

Um trovão sacode o céu e, no mesmo instante, Thessalia entra na sala, com uma faca de prata na mão.

Emilia grita de terror e salta do sofá, como se avistasse o próprio demônio. Meu pai desperta com um palavrão, mas a garota continua recuando e gritando de desespero. Corro até ela, terrivelmente espantado, e agarro seus ombros, tentando apaziguá-la.

Demoram-se vários instantes até conseguirmos acalmá-la. Por fim, Emilia se emudece e enterra a cabeça em meu peito, o coração batendo com tanta força que parece socar o meu.

- O que diabos foi isso, irmã? – pergunto, quando ela está mais recuperada. Conduzo-a até o sofá e a ajudo a se sentar novamente.

Leva algum tempo até ela responder. Então explica que estivera lendo um livro de horror e, por isso, se assustara quando Thessalia apareceu na porta.

- Pela Rainha, nem na Grande Guerra escutei gritos assim! – murmura meu pai, a mão no peito arfante.

- Eu só estava partindo alguns pães! – balbucia Thessalia, tremendo da cabeça aos pés, ainda segurando a faca. – Vim perguntar se vocês também queriam. Não quis assustar ninguém!

- Não foi sua culpa, amor – tranquilizo-a. – Emilia é que anda assustadiça ultimamente.

- Desculpem-me... – repete Emilia, a voz baixando aos poucos. – Desculpem-me... Estou bem.

Mas segue apertando minha mão com tanta força, que fica evidente pra mim que ela continua tão desesperada quanto antes.

Depois daquilo, todos vamos nos deitar. Thessalia é a primeira a deixar a sala, e parece envergonhada de nos olhar nos olhos. O velho Wagner retira-se pouco depois, amaldiçoando os livros que os jovens leem hoje em dia. Ficamos então apenas eu e Emilia; mas, antes que eu possa aproveitar a oportunidade para questioná-la novamente, ela se levanta e, com um rápido "boa noite", desaparece porta afora.

Quando vou para o meu quarto, encontro Thessalia ainda acordada, chorando com a cabeça entre as mãos.

- Ei – subo na cama e a abraço. – Está tudo bem.

- É horrível – murmura ela, soturnamente. – Horrível ver uma pessoa gritando de terror, e saber que você é o motivo...

- A tempestade e o livro foram os motivos.

- Como eles conseguem?

- Eles quem?

- Os assassinos. Os violentadores. Como os gritos não tocam o coração deles?

Beijo a testa de Thessalia, passando a mão nas costas de seus cabelos.

- Durma, meu amor – murmuro. – Não pense nessas coisas.

Ela continua chorando, e compreendo muito bem a razão. O terror de Emilia deve ter reacendido em Thessalia a lembrança de uma noite perdida no passado. Uma noite na qual o terror de uma mulher não a impediu de ser violentada perante a própria filha.

No dia seguinte, bem cedo, desço à biblioteca, onde tenho o pressentimento de que encontrarei Emilia. E, de fato, encontro-a folheando um livro, com cara de que não dormiu um segundo sequer naquela noite.

- Diga-me a verdade, irmã – sento-me ao seu lado.

Ela fica estupefata, e deixa o livro cair sobre o colo.

- Que... verdade...?

- O que está acontecendo contigo?

- Eu... não...

- Sei que você está escondendo alguma coisa. Tem se comportado de maneira estranha nos últimos dias, e isso mudou até o clima da casa. Vamos, pode se abrir comigo.

Não preciso pedir de novo. Emilia olha para os lados e, ao confirmar que estamos sozinhos, volta-se para mim, o rosto subitamente coberto de terror.

- Ela me assusta! – sussurra, aproximando-se de mim. – É como se ela quisesse me matar! E é o que ela fará, sei disso!

- De quem você está falando?

- Thessalia!

Fico em silêncio estupefato, sem saber como reagir àquilo.

- Quando você não está aqui, ela me segue pela casa – prossegue Emilia, aos cochichos. – Está sempre me vigiando pelo canto do olho. Aonde eu vou ela surge atrás de mim, até mesmo quando estou conversando com meu pai!

Emilia agarra meu colarinho.

- No início eu pensava que ela só queria alguém pra conversar, mas não, é obsessão, é ódio! Eu entro no banheiro e, quando saio, ela está me esperando na porta, eu venho pra biblioteca e, quando vejo, ela está atrás de uma estante...

Os olhos de minha irmã agora desaguam como um rio, e ela murmura tão baixo que preciso colar o ouvido em seus lábios.

- E, Keller, ela sempre anda com uma faca entre as vestes. Aquela faca prateada, sempre. Ela me odeia! É como se ela quisesse me matar! E é o que ela fará, sei disso!

E Emilia desata a chorar.

Abraço-a afetuosamente e lhe afago as costas.

- Você está imaginando coisas, Emilia. Thessalia gosta muito de você. Que livros você anda lendo mesmo? Volte para os de Shakespeare. Não, Shakespeare não... Leia Jane Austen.

E, por um bom tempo, ocupo-me em acalmar Emilia.

"É a mais sábia das decisões, Keller. A mais sábia!", um pensamento me diz, talvez me incentivando a continuar apaziguando a garota.

Dentro de mim, porém, sinto-me terrivelmente mal.

Mal por Thessalia.

O que minha esposa pensará, quando souber que seus esforços em ser amigável estão aterrorizando minha irmã?


*********


Obrigado, de todo coração, às pessoas que estão lendo.

Sério, vocês alegram meu dia! <3

Que Deus esteja com todos vocês.

E não sigam as pessoas pela casa, isso é meio macabro.

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