I

Londres, 1960.

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Estamos indo fazer mais uma visita ao nosso pai. Depois da Segunda Guerra, a saúde dele nunca faz foi a mesma e, pelo menos uma vez por ano, ele cede à fraqueza e precisa ser internado no Hospital de St. Mary.

A distância entre nossa casa e o hospital é de apenas algumas quadras, o que leva Emilia e eu a optarmos por sempre fazer o trajeto a pé. E, hoje, meu amigo Ludovico decidiu vir conosco. Dr. Wagner também lhe é como um pai, explica-se.

Emilia apressa os passos, mas agarro seu ombro e a contenho.

- Calma, irmã! O hospital não vai fugir da Praed Street.

- Se continuarmos nessa lerdeza, o hospital já vai ter virado ruínas quando chegarmos lá.

Dou uma risada que vibra pelos ares frios da cidade. Do meu outro lado, Ludovico não esboça reação alguma; caminha em passos lentos, com o olhar baixo, as mãos enfiadas nos bolsos da calça.

- Em que você tanto pensa? - pergunto a ele, intrigado. Os comentários de Emilia sempre lhe provocam divertimento.

Ludovico demora a perceber que falo com ele. Então ergue os olhos negros e carregados de surpresa, como se apenas agora lembrasse que está nos acompanhando.

- Ah... Teorias, Keller - responde, franzindo o cenho. - Ontem, durante um quase atropelamento, notei a existência de um fenômeno curioso. Agora não consigo parar de teorizar nesse fenômeno. Está martelando minha cabeça.

- Jesus, você poderia ser mais entediante? - Emilia vira-se para ele, desgostosa. - Não sei por que meu irmão insiste em ter um amigo cientista!

Ludovico perde imediatamente a introspecção e dá uma gargalhada. O riso dele chama a atenção de alguns transeuntes, que nos envia olhares de censura. O pós-guerra deixou os britânicos muito sisudos.

"E se soubessem que estamos indo visitar um doente?", pergunto-me, irônico. Achariam ainda mais desrespeitoso rir nessas condições.

- E você é muito insolente para uma moça de quinze anos - devolve Ludovico. - Não sei por que Keller insiste em ter uma irmã assim.

- Não dou a ele muita escolha - ela ri. - Qual o nome da teoria que você está inventando?

- Teorias não são inventadas! - Ludovico fica sério, quase ofendido. - Elas são minunciosamente formuladas, a partir de observações feitas ao longo...

- Tanto faz. Qual o nome?

- Por conta de sua insolência, jamais te contarei.

Emilia para de sorrir, e seus olhos faíscam com tal intensidade que expulsam todo o cinza dos ares da Grã-Bretanha.

- Estou brincando! - Ludovico apressa-se em dizer, acuado. - Ainda não dei um nome à teoria.

Emilia dá um sorriso vitorioso. Encaro meu amigo e dou de ombros.

- Você não é páreo para a "filha da guerra" - digo, dando-lhe um tapa nas costas.

"Filha da guerra" é o apelido carinhoso de meu pai para Emilia, e possui um significado quase literal, visto que ela lhe nasceu em plena Segunda Grande Guerra. Durante uma campanha na Alemanha, o velho Wagner se apaixonou por uma atriz, que veio a morrer em Londres pouco após o fim do conflito. Eu tinha sete anos quando ele chegou em casa trazendo uma criança nos braços. A única coisa boa que aqueles anos de terror lhe deram.

Em silêncio, prosseguimos caminhando pelas ruas cinzentas e abotoadas de Londres. Ludovico, à minha esquerda, volta a imergir nos próprios pensamentos, e Emilia se preocupa unicamente em nos forçar a andar mais rápido. Deixo escapar um bocejo. Devíamos ter pegado um táxi.

"Todos têm uma tragédia a contar. Qual é a sua?".

A frase salta em minha mente sonolenta, e me pergunto onde a ouvi. Na verdade, devo ter lido-a nalgum livro que concluí recentemente. Decido que não vou tentar lembrar qual: a experiência me ensinou que isso só acontece quando o acaso nos faz pegar no livro novamente.

Entramos pela Praed Street e vemos o grande Hospital de St. Mary surgir adiante. Imediatamente, notamos um movimento incomum na calçada à frente do edifício. Ao que parece, está acontecendo um espetáculo de rua. Vários londrinos, a maioria visitantes que acabaram de deixar o hospital, fecham um grupo em torno de algum artista e aplaudem modestamente.

- Ciganos! - exclama Ludovico, seu rosto jovem se iluminando.

De fato, é uma cigana quem está fazendo malabarismo com tochas e arrancando aplausos dos espectadores. Aproximo-me da calçada e contemplo aquela jovem de pele morena, olhos de mel e brincos de argola que tilintam ao ritmo de seus movimentos.

Meu coração para.

É a mulher mais linda que meus olhos já contemplaram.

Nós três nos juntamos aos espectadores. Ficamos assistindo a artista lançar tochas no ar e apará-las de volta, enquanto seus pés desenham uma dança exótica pelo chão. É fascinante a forma como os olhos dela se movem rapidamente, pululando, cheios de expectativa, das tochas para a plateia.

Ludovico aplaude com vigor. Nem parece um rapaz de vinte e dois anos, mas um moleque de quinze. A cigana o nota - como se fosse possível não notá-lo! - e sorri, sem vacilar um gesto no malabarismo. Em seguida, a atenção dela passa para mim.

Bom Deus, como são lindos aqueles olhos! Como me enchem de vinda, ao entrarem em contato com os meus! Desejo contemplá-los por toda eternidade, alimentar-me de seus mistérios, flutuar para sempre no torpor daquela magia...

"Esse é o irresistível poder de uma melodia alegre, de uma dança saltitante!", penso tolamente.

Estou, sem sombra de dúvidas, apaixonado pela melodia daquele olhar.

Não resisto e dou um passo inconsciente em direção à cigana, atraído por seus olhos e pela sensualidade de seu sorriso. Mas então, auspiciosamente, como uma feiticeira que sabe o momento certo de cessar o encanto, ela tira os olhos de mim e passa-os para Emilia, que está aplaudindo com entusiasmo idêntico ao de Ludovico. Meu coração se entristece, subitamente faminto do magnetismo daquele olhar.

O momento de distração que passa nos encarando, todavia, custa caro à cigana. Ouvem-se vários murmúrios de espanto quando ela tropeça em si mesma e vai ao chão. As tochas caem ao seu redor, e uma delas aterrissa na barra de seu vestido vermelho.

Salto imediatamente ao seu socorro. Chuto as tochas pra longe de seu vestido, acertando um dos espectadores, e a ajudo a se levantar.

- Obrigada, gadjo! - agradece ela, as mãos sustentando-se nas minhas. Seus olhos de mel, agora tão próximos, fazem derreter meu coração. - Eu não devia ter me distraído! Minha curiosidade em ver a reação da plateia é meu maior defeito...

- Duvido que você tenha algum defeito, senhorita! - discordo, meu rosto a alguns centímetros do dela. - É graciosa até na forma de cair.

Ela me encara analiticamente por um minuto. Então, enfim, sorri, seus olhos luzindo mais que os brincos em suas orelhas.

- Não sei o que deixa mais encantada: se sua gentileza ou seu senso de humor, senhor!

- Não me chame de senhor, não sou rico o suficiente.

- Vê? - ela amplia o sorriso. - Está a caminho do hospital?

- Sim. Viemos visitar nosso pai.

- O que ele tem?

- É um veterano da guerra. Os alemães não conseguiram matá-lo, mas fragilizaram a saúde dele. Desculpe-me a ousadia, senhorita, mas posso saber o seu nome?

Ela solta minhas mãos, leva as dela aos cabelos e os ajeita, com um sorriso enlevado.

- Thessalia.

- Prazer, srta. Thessalia. Meu nome é Keller.

Ao ver que a cigana está bem e que o espetáculo acabou, os espectadores começam a se dispersar; alguns deles se dirigem à entrada do hospital, e a maioria parte rumo à saída da Praed Street.

Emilia cutuca meu braço discretamente, dando a entender que quer entrar logo no St. Mary.

- Ludovico - chamo, procurando meu amigo. - Acompanhe Emilia lá dentro. Daqui a pouco alcanço vocês. Vou, ãh... Conferir se a Srta. Thessalia está bem.

Ludovico assente, com um meio sorriso. Sabe bem que só quero ficar mais algum tempo com a cigana. Leva a mão à aba do chapéu, cumprimentando Thessalia, e então some com Emilia rumo à recepção do St. Mary.

- Não se detenha por minha conta, Sr. Keller - diz Thessalia, abaixando-se e começando a apanhar as tochas. - Já me sinto recomposta...

Agacho-me ao lado dela.

- Vai realmente me negar o prazer de te ajudar?

Thessalia vira suavemente o rosto para mim.

Então abre um sorriso que me faz perceber, no mesmo instante, que acabei de encontrar a mulher com quem um dia vou me casar.


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Gadjo: não-cigano.


***

Hey, pessoal!

Vou estar postando às quartas e domingos. São apenas oito capítulos, e só não posto de uma vez porque dificulta a divulgação.

Obrigado a todos por sua leitura!

Um grande abraço, e que Deus esteja com vocês! <3

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