[9] A teoria da cumplicidade


Me desvencilhei de Mark Elliot no mesmo segundo em que fechamos a porta da sala do figurino e acendemos as luzes. Tentei apagar o cheiro do seu desodorante  extremamente perfumado que estava impregnado minhas roupas dando  batidinhas nos ombros, algo que não passava de um gesto inútil, já que é impossível se desfazer de um cheiro dessa maneira. Mark fez questão de alargar ainda mais seu sorriso de vencedor e caminhou com tranquilidade em direção as fileiras e fileiras de araras lotadas de roupas, como se conhecesse aquele lugar e viesse ali todos os dias.

Eu pelo contrário, nunca tinha botado os pés naquele lugar e comecei a perguntar a mim mesma porque eu não tinha feito aquilo antes, pois a sala dos figurinos soava como um oásis no meio do caos que era o ensino médio. Meus olhos provavelmente brilharam no segundo em que foquei nas araras de vestidos vintage. Corri para passar as mãos, sentir as texturas e me imaginar dentro de todos eles, parada no topo de uma escada construída durante a Era Vitoriana, com o cabelo devidamente domado em um penteado elegantíssimo, luvas que cobriam meus braços e saltos que me deixavam pelo menos dez centímetros mais alta. Se mal perceber, acabei pegando um vestido da cor do meu blazer, colocando-o na frente do meu corpo e começado a rodopiar como se estivesse dentro de um baile promovido pela realeza.

"Esse vestido combina com você", Mark me fitava com um brilho no olhar que eu não conseguia identificar como deboche, falsidade ou se ele estava sendo sincero mesmo. Parei de rodopiar no mesmo instante. "Por que você não pega ele?"

"O que? Não!", abri e fechei a boca, chocada com sua ideia criminosa. "Ele é maravilhoso, mas já estou comprometendo a minha alma roubando o seu figurino. Você por acaso acha que eu tenho cara de ladra? Você não sabe que os maus hábitos, começam com atitudes como esta pergunta que acabou de me fazer? É tipo, por que não fazer um pouco mais disso? Aumentar a proporção? Já estou cometendo um delito mesmo, vai dar na mesma. Mas é aí que você se engana, porque a justiça americana não tem pena de criminosos, tá? Eu não quero passar o final da minha adolescência presa a serviços comunitários e redigindo redações sobre o meu mau comportamento. Não mesmo."

"Nossa tudo bem. Foi só uma sugestão, você é muito estranha", ele respondeu, depois de me fitar por alguns segundos e eu começar rir de nervoso. "Tá, ok. Você não quer o vestido, mas eu quero minhas roupas de Patrick Verona. Então vamos à caçada, garota."

Começamos a vasculhar cada uma das araras meticulosamente, em busca de roupas que se pareciam com as do nosso personagem principal e nos atentando a qualquer barulho suspeito da nossa parte, que pudesse nos delatar aos superiores. Cerca de meia hora depois, eu finalmente consegui juntar peças praticamente idênticas as de Patrick, no meio daquele mar de figurinos extravagantes, protegidos por suas capas de plástico. Dei um gritinho inconsciente, que logo tapei com uma mão. Mark que estava na última fileira do corredor de araras, veio correndo na minha direção.

"Você achou?"

"Sim!" Entreguei as peças que estavam descansando no meu antebraço. "Se prepare para encorporar a coragem de Patrick Verona e passar mico no meio de todo mundo, Mark Elliot."

"Uau, eu curti", seu olhar estava repleto de admiração. "Pearl não vai resistir quando me ver nessas roupas. Ela vai se arrepender de ter brigado comigo por uma bobeira qualquer. Ela vai esquecer de qualquer briga de qualquer dia, quando ver a minha apresentação."

"Admiro a sua confiança, Mark Elliot. Mas ela também me irrita. Agora me passe as roupas. Eu vou ficar com elas, porque preciso passar um ferro nelas, estão meio amassadas."

"Ei, mas eu nem experimentei. Como você vai saber que elas cabem em mim?"

Olhei para ele com irritação. O sujeito estava certo. Coloquei o blazer na frente do seu corpo para estudar o seu tamanho, mas ele simplesmente raptou as roupas de mim e começou a tirar o seu casaco do time, botando o blazer que lhe caiu perfeitamente. Ele posou com certa elegância na frente de um espelho gigante que o pessoal que participava do grupo de teatro vivia tirando fotos pra postar no Instagram.

"Ficou perfeito."

"É, ficou mesmo. Sou ótima de medidas por dedução, você devia saber disso", ele me fitou de um modo sugestivo." E estou me referindo a roupas e todas essas coisas que compõem o estilo de vestir, antes que você pense em qualquer outra coisa. Você devia saber disso por causa do meu Instagram e..."

"Tá, entendi. Você fala muito, sabia?"

"Bom, os incomodados que se mudem."

"Não, não quis dizer isso como uma crítica. Na verdade eu meio que admiro os tagarelas. Bom, pelo menos uma parte deles. Tem gente que fala, fala, fala e não diz nada. Mas você é realmente boa com as palavras, os professores gostam da sua falação."

"Ah... Isso é estranho. Você admira os meus discursos só porque os professores gostam deles?"

"Bom, eu gosto deles porque eu sempre estou com matéria atrasada e aí quando você começa a falar sem parar, eu agarro a oportunidade pra começar fazer toda a tarefa que deixei de terminar em casa", ele deu de ombros. "E depois, ainda sobra um tempinho pra bater um papo com o pessoal que se senta do meu lado."

"Ah então eu te ajudo muito mais do que imaginava. E você é mais presunçoso do que eu pensava também."

"Sou muito mais do que todo mundo pensa. Todo mundo acha que sou um idiota por ser um atleta", revirou os olhos.  "Estereótipo clássico."

"Mas você é um idiota. Se não fosse, não estaria aqui neste exato momento procurando roupas pra reconquistar a sua namorada. E ela não estaria atrás da lanchonete com..."

"Atrás da lanchonete?", ele arregalou ligeramente os olhos e eu praguejei em pensamento. "Você disse que ela estava atrás da lanchonete? O que ela estava fazendo lá? Com quem ela estava?"

"Ei, são muitas perguntas. E eu confundi as palavras. Claro, aquela parte de que você é um idiota continua sendo uma verdade, mas o lance da lanchonete apenas foi uma confusão mental", fiz uma pausa para inventar qualquer coisa e senti o olhar dele queimando no meu rosto. "Estou com muito sono, sabe. E quando eu fico sonolenta, começo a falar coisas sem sentido como um bêbado ou algo assim."

"Pessoas sob os efeitos do álcool muitas vezes fazem confissões até que coerentes, Ashlyn", ele intensificou seu olhar desconfiado eu me esforcei para manter uma expressão neutra. "Quer me contar alguma coisa? Talvez desmentir esse lance de que eu sou um idiota? Porque eu sei que não sou."

"Cada um tem sua opinião própria, não acha? Não posso fazer nada se te acho um idiota."

"Eu te acho uma tagarela. Fala mais do que a sua boca permite. É a minha opinião e você também não pode fazer nada."

"Grande coisa. Não me importo", suspirei, irritada e ao mesmo tempo aliviada por escapar de uma saia justa. "Você se beneficia da minhas palavras. Estou praticamente te abençoando em todos os dias úteis."

Ele sorriu e me puxou para perto, dando um beijo estalado no topo da minha cabeça. Me desvencilhei mais uma vez daquele garoto, que começou a rir da minha expressão desgostosa.

"Você tem que parar com esses constrangimentos. Nós nunca fomos amigos, Mark Elliot."

"Mas podemos ser. Qual é o problema? O que te impede de ser minha amiga?"

Suas perguntas me forçaram a pensar. Tá, eu meio que achava aquele garoto um idiota presunçoso, todo estereotipado que tinha um cabelo estilo Taylor Hanson na adolescência, no qual eu mantinha certa inveja e que namorava a insuportável amiga da minha irmã, mas isso tudo não era impedimento para que nos entendêssemos. Na verdade, ele até que era uma companhia interessante. Esquisita, sem dúvidas. Um pouco irritante também.

"Olha, isso é verdade. Não vejo motivos pra não começarmos uma era de cumplicidade. Você tem um jeito muito pré fabricado. Muito previsível, diria que até entediante. Você tem que tentar mudar, nem que seja um pouquinho a sua maneira de se vestir e eu acho que posso te ajudar nisso", apontei para suas roupas. "Não acha?"

****

Alguns minutos depois, estávamos dentro do carro de Mark, ouvindo repetidamente Can't Take My Eyes Off You e repassando cada passo que ele teria que realizar na manhã seguinte. Era estranho estar dentro de um carro de um garoto que para início de conversa mal falava comigo há 3 dias atrás, mas eu tentava relevar toda a situação instruindo a ele cada movimento que ele teria que realizar, o jeito que devia segurar o microfone e como nós levaríamos Pearl para o campo de lacrosse sem que ela suspeitasse de qualquer coisa.

"Ela só confia na Mia, então vou ter que arrumar um jeito da minha irmã levar ela na quadra ou seja, vou ter que contar todo o plano pra ela."

"Mas você não me disse no outro dia que a Mia é muito fiel a Pearl? Tipo, se você contar à ela sobre o nosso plano, existe alguma chance dela cooperar?"

"Expondo os fatos, não", balancei a cabeça e sua testa ficou levemente franzida. "Mas eu sou uma garota cheia de táticas e vou conseguir fazer com que ela nos ajude. Não esquenta a cabeça. Nós estamos juntos nessa, cara."

Ele assentiu e virou uma rua. Era a mesma rua da Lanchonete Foutman, a rua na qual eu havia flagrado Pearl e Theo se agarrando como se suas vidas dependessem daquilo. Fiquei enjoada no mesmo instante.

"Ei, tudo bem? Você ficou de repente com uma cara estranha."

"Não, não. Eu só preciso trocar essa música, está me deixando irritada." Estiquei o braço e mudei para a estação de rádio pop. Eu gostava de rádios assim, porque era muito raro elas reproduzirem músicas de álbuns ou EPs; geralmente o que predominava eram os singles. Quando o interior do automóvel mudou de clima, instantaneamente fiquei mais calma. "Uh,  bem melhor."

"Não!", Mark freou o carro de um modo tão brusco que eu quase bati o nariz no porta luvas. "Muda isso. Agora!"

"O que? Por que está pedindo isso?" Fiz uma careta. "É uma boa música, melhor do que ficar ouvindo uma por várias vezes. E por que parou o carro assim? Parece um louco!"

"Não, eu não sou louco. É só que...", ele esticou o braço e mudou para uma estação country. "Ok, vou tentar explicar. É que a Pearl gosta muito dessa cantora. E as músicas dela me fazem pensar nela e quando penso muito nela, eu começo a pensar em cada merda que fiz na vida e..."

"Tá. Agora é você quem está falando muito. Qual é o nome da cantora? Gostei muito da voz dela."

"É Ashlyn. Seu nome artístico é Ashe. Como você."

"Você só pode estar blefando."

"Não estou. Dá um Google e confirme isso mais tarde."

Ele voltou a andar e durante o caminho fui obrigada a ouvir canções melosas do tipo que só o meu pai gosta de ouvir na companhia de uma taça de vinho. Quando ele estacionou de frente a minha casa e pulei do seu carro com o figurino cuidadosamente equilibrado no meu braço  direito, ele também desceu e bloqueou a passagem.

"Boa noite, Mark Elliot", disse, tentando desviar dele e entrar na pequena varanda da minha casa. Ele não me deixava passar. "Quer parar de ser um babaca?"

"Só quero dizer obrigado. Obrigado por topar me ajudar, apesar de eu ser um idiota, nas suas palavras", ele me olhou nos olhos e pude enxergar sinceridade dentro deles. "Sim, eu sei que ainda não concluímos todo o plano, mas sinto que posso confiar em você. E você pode confiar em mim, é claro. Qualquer coisa é só chamar. Você nunca estará sozinha, Ashlyn Reed."

"Ok, sósia do Shawn Mendes com cabelo comprido. Você pode mesmo confiar em mim. Você é um idiota, mas é menos idiota que todos os atletas do colégio", dei um tapinha consolador nos seus ombros. "Durma pensando nisso. Tenha uma boa noite, durma com os anjinhos e tudo mais."

Finalmente consegui subir na varanda e entrar em casa. Foi estranho, porque no momento em que entrei na sala de estar e fechei a porta, corri para a janela e observei Mark caminhar de volta ao carro e dar a partida. Meus lábios se curvaram em um sorriso. Eu não entendia porque estava sorrindo, muito menos porque estava ali na janela. As únicas certezas que eu tinha naquele momento era que eu estava morrendo de fome e que Mark deveria pelo menos ter me oferecido um lanche depois que saímos do colégio.

A teoria de uma cumplicidade pode ser formada de inúmeras maneiras. Geralmente para que duas pessoas ou mais possam ser cúmplices, é essencial que exista um elemento ou objetivo em comum entre elas. Muitas podem se tornar cúmplices apenas por um período, o período em que seus desejos forem alcançados. Outras podem transformar essa parceria temporaria em uma que vai durar a vida toda. Tudo pode soar bonito e perfeito, mas nada é o que parece. Muitas parcerias podem acabar em desastre total. Com direito a choro, vingança e tudo o que remete à catástrofe.

**Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.

Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.

Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.

Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.

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