[8] A teoria de um flagra
Eu estava servindo mesas na Lanchonete Foutman e pensando na roubada que eu tinha acabado de me meter por vontade própria. Concordei em ajudar Mark Elliot no horário de intervalo e aí ele começou a me enviar mensagens nas próximas aulas como se fôssemos próximos, uma completa mentira, claro. As únicas vezes que nós trocamos uma palavra fora há cinco anos atrás e cinco anos depois.
"Garota, você realmente tá vivendo em outro planeta", Rupert me olhou de relance quando entrei na cozinha. "Acho que já te chamei umas três vezes e você não me respondeu."
"Ah, foi mal. Estou com alguns dramas particulares nos quais eu nem queria participar."
"Infelizmente a vida é assim, querida", ele passou um braço envolta dos meus ombros. "O jeito é transformar os limões em uma limonada ou no meu caso, passar o limão na ferida do imbecil que te jogou os limões."
"Ashe, eu vou te matar", Gillian surgiu, me fitando com cara de poucos amigos. "Te vi hoje, de papinho com o Elliot. Não me diga que vocês estão ficando!"
"O quê? Claro que não! Quem te disse isso?"
"Ninguém, tirei minhas próprias conclusões. Ele estava sorrindo pra você. Vi com meus próprios olhos."
"Ah e só por isso você achou que a gente estava junto? Teoria com grandes fundamentos. Eu mal suporto ficar do lado dele e você teria notado isso se tivesse olhado direito."
"Você está insinuando que eu sou cega?"
"Se a carapuça serviu..."
"Meninas", Rupert se colocou entre nós duas. Gillian só faltava soltar fumaça pelo nariz de tanta raiva que aparentava estar. "O que é isso? Se esqueceram que estamos no nosso local de trabalho, hein? Resolvam suas pendências do lado de fora. Nosso patrão não gostaria nem um pouquinho de saber que duas funcionárias estavam prestes a se matarem na sua cozinha."
Virei a cabeça para o outro lado. Eu não ia matar ninguém, Rupert era dramático demais. Era Gillian que havia começado. E como eu nunca fui de levar desaforo pra casa, eu continuei com a provocação, com intenção deixá-la um pouquinho irritada, só isso.
"Eu tenho um par de olhos que funcionam muito bem, Ashe. Sei muito bem o que eu vi e se você está andando com Mark Elliot, então acho que não podemos ser mais amigas."
Fiquei de queixo caído. Ela achava que nós éramos amigas? Eu não a considerava uma amiga. Mas pelo jeito, ela me considerava. Abri a boca para jogar um insulto em cima dela, mas no último segundo, fechei a boca e a comprimi em uma linha fina. Bom, problema dela se não queria mais falar comigo ou coisa do tipo. Eu sempre fui uma solitária mesmo, não era como se meu mundo estivesse se desmoronando.
Mas o que aconteceu um pouco mais tarde desmoronou um pouquinho sim.
Terminei o meu serviço tão rápido como um raio e atravessei com pressa as portas de entrada/saída da lanchonete. O céu já estava escurecendo e eu mandei uma mensagem para meu pai, avisando que chegaria um pouco mais tarde, pois estava na casa de uma amiga. Rá, como se eu tivesse uma. Em seguida mandei uma mensagem para o Elliot, pedindo para me encontrar em quinze minutos na frente do Foutman Institute. Nós iríamos juntos, invadir o colégio.
Quando botei o pé na calçada e comecei a caminhar, ouvi risadas. Estavam vindo da parte de trás da lanchonete, a mesma parte em que às vezes Theo e eu ficávamos após nossos expedientes. Estreitei os olhos, tentando focar nas duas figuras que ali estavam tomando espaço de um lugar que eu conhecia muito bem e não acreditei no que vi. Uma garota se agarrava no pescoço de uma figura maior que ela, como se fosse um colar. Era Pearl. Consegui identificar pelo cabelo longo e sedoso como o da minha irmã. A outra figura se tratava de Theo. Ele estava usando a sua típica jaqueta de couro e segurava Pearl com uma firmeza que me deixou estupefata por alguns segundos. Sufoquei o grito de surpresa e acelerei os passos, atravessando a rua e fugindo daquela cena. O que os olhos não vêem, o coração não sente, não é o que sempre dizem?
Cheguei no Foutman em um tempo recorde e comecei a admirar o imponente prédio de tijolos construído na década de 70 e que me abrigava durante as aulas. O prédio estava com algumas luzes acessas e pessoas entravam com bolsas, cadernos e fones de ouvidos. O colégio oferecia cursos noturnos e aulas de reforço, um fato que eu fiquei sabendo só na hora que cheguei ali e que me deixou instantaneamente aliviada, já que eu não tinha intenções nem vontade de literalmente invadi-lo.
"Boa noite, Ashlyn Reed. Está pronta pra praticar crimes contra uma instituição educacional?"
Olhei para o lado. Mark Elliot estava com as mãos enfiadas no bolso do seu agasalho do time de futebol azul escuro e ele havia amarrado o cabelo, o que deixava em evidência seu rosto anguloso. Por um segundo a imagem de Pearl se agarrando a Theo explodiu na minha mente e fiquei ali, parada como uma tonta, me relembrando de algo que não deveria ser relembrado. Como eu devia agir diante esta situação? Contar o que eu tinha acabado de presenciar seria a escolha correta, mas talvez não a mais sensata. O cara do meu lado poderia achar que eu estava boicotando de algum modo a relação dele, o que não era verdade, mas que eu sabia que era uma grande possibilidade graças a todos os seriados adolescentes que assisti durante todos os meus 16 anos.
"Ashlyn? Seja qual for o lugar onde você está, por favor, retorne à Terra imediatamente."
"Ah", coloquei uma mão na testa e tentei apagar todos aqueles pensamentos. "Vamos entrar logo. Meu pai vai surtar se eu não aparecer em casa até às 9. O sono está batendo também. Deus sabe que eu nunca fui uma garota noturna."
"É, eu reparei", ele apontou para o meu blazer amarelo que com o contraste da noite me fazia sentir de alguma forma como a Mia de La La Land. Dei uma voltinha, toda serelepe. Ele riu em um tom de deboche. "Agrh. Você parece um abacaxi néon."
"Olha só, se quiser me ver do seu lado é melhor nem começar com essas comparações de fruta, certo?"
"Ok", ele levantou as duas mãos e arregalou os olhos com o meu tom grosso. "Isso foi um comentário idiota mesmo, me desculpe."
Subimos as escadas e entramos no prédio. Era estranho perambular em um lugar que conhecíamos tão bem, só que em um horário não incluído nas nossas rotinas. Algumas pessoas ali pareciam mais velhas que nós, com um jeito todo adulto e exausto no qual eu temi encarar. Dei um aceninho para a professora de biologia que estava parada ao lado de uma fileira de armários que para a minha não-surpresa, me ignorou por completo, pois estava concentrada no seu celular. Eu sempre era ignorada pelos professores e confesso que tentar chamar atenção de algum professor que para princípio de conversa, não estava nem aí para minha existência, era no mínimo uma burrice.
"Ok", parei na esquina entre o corredor do teatro e o corredor da secretaria barra sala dos professores e olhei para os dois lados antes de me concentrar em Mark. "Já que agora você é um peão do seu próprio plano, você entra primeiro e vê se a barra tá limpa. Daí eu entro e o senhor fica do lado de fora vigiando enquanto eu encontro algo apropriado para que você use no seu remake de filme adolescente, tá certo? Vamos."
"Ei, ei, ei. Não acha que eu também tenho direito de dar palpite em uma coisa que vou vestir? E se eu achar sua escolha ridícula?"
"É um risco que você corre. Mas eu estou no controle e essa parte é indiscutível. Então que tal a gente deixar de ficar perdendo tempo aqui e irmos..."
"Posso saber aonde vocês vão?"
Nos viramos para trás. A professora de biologia estava nos fitando com os olhos semicerrados e as duas mãos posicionadas nos quadris. Minha espinha gelou na hora.
"Ah...", soltei uma risadinha ridícula. "Boa noite professora. Eu te dei um aceninho quase agora, mas a senhora não retribuiu, o que foi até justificável porque você estava olhando pro celular e não dá... Não dá..."
Fiquei gaguejando como uma idiota. A professora franzia a testa um pouco mais, a cada segundo que se passava, esperando uma resposta. Mark revirou os olhos.
"Nós estávamos procurando um lugar para, você sabe o quê", ele passou um braço pelos meus ombros, me fazendo ficar praticamente agarrada a ele. Arregalei os olhos.
"Não, eu não sei. Podem me explicar?"
"Ensaiar a apresentação de um trabalho", sorriu com todos os dentes. "Como não sabe disso, senhora? Um trabalho apresentado, merece ser ensaiado nos mínimos detalhes, para garantirmos uma boa nota. Não concorda?"
A professora me fitou. Assenti a cabeça exageradamente, o que foi um erro em vários níveis, mas que por sorte não foi algo notado pela professora que apenas bufou.
"Bom, isso é verdade. Mas vocês sabem que devem pedir permissão na secretaria, certo?" ela apontou para a sala da secretaria. "Já fizeram isso?"
"Mas é claro. Acabamos de sair de lá, professora. Por acaso, a senhora está tentando insinuar que somos adolescentes antiéticos? Conhecemos as regras do colégio. Sabemos que temos que pedir permissão para usar qualquer lugar do prédio para ensaiar. Acho que todos os alunos sabem disso."
"Aprecio seu otimismo, senhor Elliot. Bom, já que vocês vão estar aparentemente ocupados, é melhor eu deixar os dois trabalharem. Boa sorte nessa apresentação de vocês."
"Muito orbigada, professora", respondi, ostentando a maior parte dos meus dentes também. Ela apenas deu as costas e caminhou para longe de nós. Murchei os ombros. "Mark, você já pode se soltar de mim agora."
"Não, vamos a sala de figurino assim, juntinhos. Acho que você pode mandar na maior parte do plano, mas eu também tenho direito de opinar pelo menos nos itens que vão vestir esse meu corpinho maravilhoso."
Ele pegou minha mão delicadamente e bateu de leve na sua barriga que estava coberta pelo agasalho, mas que parecia ser firme graças a todos os exercícios que o idiota fazia diariamente. Olhei para ele e fiquei com uma vontade enorme de fechar a mão em punho e lhe dar um soco no estômago.
"Olha, só digo que eu tenho a palavra final agora, ou seja, você pode até vir e comentar, mas acho que isso não vai fazer nenhuma diferença."
"Você disse acha, então não vou perder as esperanças", ele me puxou mais perto. "Vamos."
A teoria de um flagra obviamente parte de uma surpresa. O comportamento de uma pessoa pega em um flagra é semelhante em todos os flagras, ou seja, ela vai arregalar os olhos (nem que seja por um milésimo de segundo), sua fala pode vacilar e as mãos tremerem. Em alguns casos, ela pode estar acompanhada de uma outra pessoa que você não imaginaria estar junto com ela e as perguntas "o que você está fazendo aqui?" e/ou "que p*rra é essa?" sairão da sua boca antes mesmo de você processar a cena. Tudo isso é claro, se você estiver no papel de pessoa-que-descobriu-uma-verdade-inconveniente, que pelo rótulo é uma coisa bombástica por si só. Aí caro astronauta, é melhor você ter uma boa inteligência emocional ou pelo menos imaginar o que faria caso uma situação meio "saia justa" acontecesse na sua vida. No meu caso, eu encarei a coisa toda atravessando a rua e fingindo que nada havia acontecido,
mas eu tenho certeza que você terá uma reação mais sensata do que a minha. A chave é reagir a situação da maneira mais criteriosa possível, tomando atitudes que condizem com os seus valores como pessoa e transformando um momento pesado em algo mais leve para se carregar.
**Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.
Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.
Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.
Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.
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