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São cinco horas da tarde de uma quinta-feira e eu estou praticamente me esfregando no meu forno que está assando alguns legumes picados. É o dia mais frio de outubro até agora e mesmo com o aquecedor ligado na sala, sinto meus joelhos gelados debaixo da calça de moletom. Hoje é meu dia de fazer o jantar, o que me deixa animada, apesar de todo o frio e preguiça. Neve na minha cidade é um evento raríssimo (a última vez que isso aconteceu foi na década de 70), mas sua ausência não implica na falta de frio. Na verdade, os invernos aqui são rigorosos, com direito a ar extremamente seco e ventos tão gelados que você precisa usar agasalhos corta vento praticamente por toda a estação.
"Precisa de ajuda?", Mia grita da sala, caminhando até a nossa cozinha.
"Ah... acho que não, estou quase terminando", eu digo, saindo da frente do forno e dando uma mexida no purê de batata que está no fogão. Mia também se aproxima do forno e suspira. Ela consegue ser mais friorenta que eu, com sua touca cinza com um pompom no topo, cachecol rosa e um sobretudo.
"Senhor, nossa casa é muito fria", ela coloca uma das mãos nas bordas do forno, tirando-a dali em poucos segundos. "Fico pensando nos desabrigados que precisam enfrentar esse frio nas ruas. Ainda bem que nosso grêmio sempre abre a campanha do agasalho no finalzinho do verão. O volume de doações está sendo o mais alto em 2 anos, graças a Deus."
"Sério? Fico feliz em saber disso. Ainda bem que você comentou... preciso separar algumas roupas para a doação, mas sempre me esqueço", desligo o purê e tampo a panela. "O papai ainda está no chuveiro?"
"No chuveiro não sei, mas já faz uma hora que o homem está trancado no banheiro", ela solta uma risadinha. "Provavelmente vai sair com sua pretendente super secreta."
"Uhm. Você tem algum palpite de quem seja essa tal pretendente secreta?"
"Uh, não. Ah! Na verdade eu acho que tenho sim", ela olha para mim, sua expressão é empolgada. "A carteira do bairro, a senhora Nigro. Anteontem ela deixou uma entrega aqui na porta e conversou um pouco com papai. Não foi um olá, boa tarde, muito obrigado, foi uma conversa longa para os padrões de um carteiro. Eles ficaram uns 10 minutos conversando e eu ouvi a risada dos dois!"
"Mia, a senhora Nigro deve ter uns 60 anos", precisei pressionar os lábios para não começar a rir. "Eu acho improvável"
"Ah é? Mas não é impossível, apesar de eu achar que eles não combinam", ela dá de ombros. "Você tem algum palpite? Papai não é o rei das interações sociais. Ele só conversa com o pessoal da loja de instrumentos e ainda mantém algum contato com os amigos que fez na faculdade"
"O único palpite que tenho no momento é que nosso pai provavelmente não vai encostar o garfo neste purê de batatas. De qualquer maneira vou fazer um prato para ele comer quando voltar do seu encontro"
"Falando de mim?", Meu pai surge tão repente que por um segundo penso que ele estava ali o tempo todo ouvindo a conversa. Ele está muito perfumado, com o cabelo domado por um pouco de gel, barba feita e roupas formais e bem alinhadas. Ele parece ter saído de algum comercial no qual já vi , mas não consigo definir na minha mente.
"Hum, que cheiro delicioso. Você fez purê de batatas?"
"Sim. E aparentemente você vai jantar fora, não é senhorzinho?"
"Vou sim", ele balança a cabeça em um sim culpado. "Me desculpem meninas, esqueci de avisá-las com antecedência"
"Estamos sendo deixadas em segundo plano, pai?", Mia indaga com o olhar estreito. Ele é rápido em negar com a cabeça. Sua expressão serena dá lugar a um rosto chocado.
"Não, claro que não! Vocês são minhas filhas e-"
"Tudo bem pai. Era brincadeira", Mia começa a gargalhar com seu desespero. Ele a puxa na direção do seu peito.
"Quer me matar mocinha? Olha só, vocês duas são minhas pessoas favoritas do planeta Terra", me aproximo dele e passo um braço sobre seu ombro. "Sua mãe me deu os dois melhores presentes que ganhei na minha vida. Ela também tirou sorte grande de ter duas garotas maravilhosas. Tenho certeza que Annelise ficaria orgulhosa se estivesse aqui"
É estranho ouvir meu pai pronunciar o nome da minha mãe de um jeito tão casual. Seu tom é firme e calmo. É como se ela ainda tivesse aqui, fazendo compras ou algo assim. Consigo cair na ilusão por uns três segundos.
"Sinto muita falta da mamãe", eu digo e de praxe sinto meus olhos começarem a aguar. "Foi tão injusto ela partir tão cedo."
"Realmente, foi injusto", meu pai me aperta um pouco mais e me encara. Seu olhar entristecido é de partir o coração. "A maior das injustiças, minha filha."
"Você me lembra a mamãe, Ashe", Mia comenta, seus olhos me encaram com uma espécie de gentileza na qual não estou acostumada a ver na minha irmã mais velha. "Vocês se parecem demais. Toda vez que te olho... é como se ela estivesse aqui."
"As duas me lembram sua mãe" Meu pai divide o olhar entre nós. Seu tom de voz é embargado."Tanto fora como dentro. Vocês são lindas, destemidas, inteligentes, gentis, simpáticas, empáticas e ousadas como a mulher que eu mais amei nesse mundo foi"
Pronto. Sinto as lágrimas deslizando com pressa pelas minhas bochechas. Mamãe faz tanta falta! Não dá para fingir, não mesmo. As pessoas costumam dizer que nada dura para sempre e as coisas passam. Para mim essa é uma meia verdade. O sentimento de vazio, desorientação e saudade que sinto é diário e realmente vai ter um fim quando eu também morrer, porque enquanto meu coração bater, vou sentir falta da mãe e vou viver achando que o mundo está meio "errado". Para mim não dá superar em vida, a morte de uma pessoa na qual você ama. É como forçar uma peça redonda em um encaixe quadrado. É inútil tentar.
"Pai, você acha que um dia vai conseguir amar outra mulher como amou mamãe?" Indaga Mia com um tom cauteloso.
"Nunca. Nosso amor foi único. Aquela mulher me deixava louco. Já contei a vocês como nos conhecemos?"
"Não e acho isso um completo absurdo!", me afasto um pouco dele e cruzo os braços. Ele ri.
"Não vamos adiar mais este evento então. Bem, nos conhecemos no primeiro ano da faculdade. Ela fazia o mesmo curso que o meu, administração. Annelise era a aluna mais irritante da minha turma e isso era unânime, sabe? Todo mundo achava ela meio arrogante. Sempre era a primeira a tecer algum comentário para complementar algo que o professor dizia e andava pelos corredores da universidade com o narizinho empinado. Não falava com ninguém e sempre tinha aquela aura de sabe tudo."
"Mamãe, de nariz empinado? Eu acho que o senhor está falando de outra pessoa" Mia estava olhando para papai com certa incredulidade. Tenho certeza que estava fazendo alguma careta.
Nossa mãe era o oposto. Ela sempre foi muito educada e atenciosa com as pessoas ao redor. Sempre estava disposta a ajudar qualquer um se estivesse em condições.
"Não, a sua mãe era basicamente odiada e acho que com razão. Bom, menos por mim. Não é como se não tivesse motivos para não odiá-la também. Uma vez eu estava tocando uma música fora do prédio do nosso curso e ela estava lendo algo em um banco bem próximo. Acredita que ela se levantou do banco, veio até a mim e disse que eu estava tocando algum acorde desafinado? Depois pegou o violão da minha mão, me indicou como o acorde deveria ser feito e saiu como se estivesse em um dia comum. O pessoal que estava me ouvindo começou a gargalhar, tiraram muito sarro de mim."
"Meu Deus!", balanço a cabeça, imaginando toda situação.
"Aquilo me fisgou. Se ela tinha identificado o acorde desafinado, então tinha alguma noção de música. Tentei me aproximar dela perguntando coisas relacionadas a violão. Ela não era exatamente aberta, mas me respondia. Acabei descobrindo que o pai dela e avô falecido de vocês, era um multi instrumentista. Ela também tocava vários instrumentos, mas seu favorito era o piano"
"Não me lembro de ver mamãe tocando piano. Na verdade não me lembro de ver ela tocando nada", disse Mia.
"Ela tocava de vez em quando, mas tocava e muito bem. Quando começamos a sair, ela me ensinou algumas coisas que aprendeu com o seu pai. Ela parecia bastante segura e prepotente para muita gente, mas eu fui descascando aos pouquinhos suas camadas e acabei me apaixonando. Ela era tinha um humor inteligente, gostava de cantar e tocar baladas românticas e era um tanto teimosa. Na verdade, não sei bem o que ela viu em mim, mas fiquei feliz por ser correspondido"
"Que história linda", eu suspirei. "Vocês dois... Eu acredito que vocês estavam ligados de alguma forma desde sempre. É como se tivesse uma linha invisível conectando dois extremos não tão extremos assim"
"Também acho", Mia balançou a cabeça. "É como aquela música da Taylor Swift, Invisible String."
"Bom, linha invisível ou não, acredito que a mãe de vocês e eu estávamos conectados de uma maneira única. Eu sacrificaria minha vida se isso pudesse trazê-la de volta", seu sorriso era triste. "Ainda bem que tenho vocês meninas. Presentes nos quais agradeço a Deus todo o dia. Eu consigo ver a Annelise em vocês e isso me faz pensar que ela está presente de alguma forma aqui."
"Ela está presente nos nossos corações papai", eu digo. "No seu, no da Mia, no meu. Ela está presente nas nossas memórias, está presente em cada pedacinho desta casa. Eu sinto ela quando estou perto de vocês."
Meu pai puxou mais uma vez Mia e eu para um abraço.
"Ah, tudo muito lindo e nostálgico, mas vamos mudar de humor", Mia disse em um tom empolgado. "Mamãe deixou coisas fantásticas aqui. E o senhor precisa ir para o seu encontro! Meu Deus, não podemos saber mesmo com quem o senhor está saindo? Estamos morrendo de curiosidade."
"Vocês vão saber no momento certo. Não quero apresentar alguém se não tiver a certeza que as coisas são pra valer", ele abre um pequeno sorriso. "A vida adulta é assim meninas. Principalmente para um homem viúvo com duas filhas moças. Não quero trazer alguém para a casa se não for para ter um relacionamento sério."
"Ai, o senhor é um chato! Mas está certo. Não quero me apegar a sua pretendente e depois descobrir que ela é uma serial killer procurada na Europa que está usando documentos falsos no nosso país."
"Ela não é uma serial killer", ele dá tapinhas nos meus ombros. "Já vou indo meninas, estou atrasadíssimo. Me desculpem por não ter avisando antes sobre o compromisso de hoje"
"Vamos guardar um prato para você", Mia dá um beijo no lado direito do seu rosto. "Ashe fez um purê de batata cheiroso. Vai cometer um tipo especial de pecado capital se não provar."
"Não quero pecar, então por favor não se esqueçam mesmo desse prato", ele ajeita sua roupa, caminha até a sala e pega as chaves do carro que estão penduradas. "Me desejem boa sorte."
"Boa sorte!", Mia e eu dizemos em uníssono. Ele nos dá uma última olhada antes de abrir a porta e desparecer com seu ar perfumado.
"Isso foi um momento", digo. "Gosto quando ficamos juntos e conversamos."
"Idem", minha irmã tira a touca que está usando. "Ficou até mais quentinho aqui. Sinto que algo acontece toda vez que nos reunimos. Mesmo sem a mamãe aqui, as coisas ficam melhores quando estamos os três juntos."
"Estar juntos, a sensação de quentinho... É isso o que chamam de família", comento, enquanto boto luvas térmicas. "Acho que os legumes estão prontos. Vamos jantar."
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