[5]
É estranho ouvir uma playlist recheada de faixas três. Mais estranho do que isso, é caminhar até a biblioteca pública após as aulas. Pelo menos tomei uma atitude sensata durante a caminhada: comprei um belo iorgute gelado. Estou saboreando pedacinhos de morango no céu da minha boca, enquanto ouço uma faixa três de um álbum da Faye Webster.
É esquisito ter as tardes livres para começo de conversa. Sem trabalho e com uma nova peça que está na fase das ideias e planejamento, eu me encontrava com tempo livre. Pelo menos esse tempo não seria usado de modo vão.
Quando entro na biblioteca, sinto o ar gelado e seco do ambiente e os pelinhos dos meus braços se arrepiam. A última vez que eu tinha pisado ali tinha sido bem inusitada, com direto a uma abertura secreta e fofocas de quase um século atrás. Naquele dia eu estava nervosa, mas me sentia corajosa pra ouvir qualquer coisa.
Hoje eu me sinto metade confiante, metade conformada. Não estou nervosa. É como se os botãozinhos da ansiedade e surpresa tivessem sido desativados dentro de mim.
Caminho até o balcão da recepção e meus passos produzem um som oco cada vez que meus mocassins entram em contato com o piso de madeira. O interior da biblioteca está do mesmo jeitinho de sempre: pinturas penduradas nas paredes, um lustre esplêndido localizado no meio do salão, andares e mais andares abarrotados de livros, mesas para estudo e computadores antigos. Aquele ambiente era muito lindo, mas eu gostava muito mais da biblioteca do Foutman que não chegava a glória de uma biblioteca construída para a esposa de um prefeito, mas era muito mais aconchegante.
Jogo a embalagem do iorgute no lixo mais próximo antes de me aproximar do balcão.
Meu celular resolve tocar e algunas pessoas sentadas nas mesas com seus laptops viram suas cabeças na minha direção. Um garoto de óculos sentado em uma das mesas redondas, aponta para o grande cartaz avisando que é proibido o som de aparelhos eletrônicos. Tenho vontade de levantar o dedo do meio para ele, mas acho mais prudente pegar o celular que está no bolso do meu casaco.
"Ashe", Diz Mark. Dou passos para trás, até chegar a entrada da biblioteca, que ostenta o fabuloso quadro da Amelia Neri usando seu vestido amarelo. "Onde você está?"
"Onde estou?"
"É, onde você se meteu? Eu te procurei na sala da sua última aula. E pela escola inteira. Pensei que nós íamos passar um tempo juntos."
Mordo o lado interno da minha bochecha direita. Ok, eu estou disposta a mergulhar de cabeça em pesquisas, teorias sobre a Faixa Três. Não me conformo em aceitar tudo o que Jace Lauper me disse como de fosse verdade absoluta. Eu era uma garota com senso de criticidade. Precisava correr e entender vários, lados, indagar o que ainda não tinha sido indagado, encontrar explicações plausíveis e convicentes o bastante para acalmar meu intelecto e principalmente meu coração. Eu precisava de tudo isso.
Será que Mark estava tão sedento por respostas tanto quanto eu?
"Estou na biblioteca pública", eu falo de uma maneira casual, atenta para sua reação.
"Ok. Biblioteca. Por que isso é tão suspeito para mim?"
"Porque você sabe que vim aqui em busca da Cornelia e não para pegar um livrinho ou coisa assim."
"É, exatamente", ele fez uma pausa e ouvi barulho de vento. "Estou indo aí."
"Estou te esperando", replico, finalizando a chamada. Que bom, pelo menos ele não surtou. Aparentemente não surtou.
Me aproximo do balcão, à procura de Cornelia, mas a única pessoa na qual me deparo é Gutto, o que me deixa surpresa.
"Você trabalha aqui?", é a primeira coisa que sai da minha boca. Ele desvia o olhar do computador a sua frente e me encara, arqueando sutilmente suas sombrancelhas.
"Oi Ashe. Trabalho aqui sim. Tudo bem?", seu tom de voz é aveludado. Sem as roupas medievais e seus poemas fofos barra engraçados, Gutto se torna um cara normal. Ele usa óculos e uma blusa de manga comprida, que realça de maneira sutil seus braços musculosos. Ele tem um nariz arrebitado e seu cabelo é castanho, com as pontas levemente onduladas. Para mim, o namorado da minha irmã se parece um pouquinho com o ator e cantor Joshua Bassett.
"Estou ótima! Nunca te vi por aqui. Não, quero dizer, eu quase nunca apareço aqui, mas teria me lembrado de você se tivesse te visto antes", no momento que as palavras saem da minha boca eu me sinto constrangida. "Uh, isso soou um pouco estranho né? Não foi uma cantada nem nada assim porque você é o namorado da minha irmã e eu tenho namorado e nós dois somos comprometidos e é claro que eu não disse o que acabei de dizer em tom de flerte, então por favor, não pense que estou te paquerando ou coisa assim."
"Tudo bem", Gutto me lança um olhar de divertimento. Ele está quase sorrindo. Estou me segurando para não sorrir também. "Mas é normal você nunca ter me visto por aqui. Comecei a trabalhar na biblioteca semana passada. Na verdade não é bem um trabalho, é um estágio. Curso biblioteconomia na faculdade."
"Ah sim, agora entendi. Escuta, você não conhece uma moça chamada Cornélia? Ela trabalha aqui e eu queria bater um papo com ela."
"Sim, conheço. Ela está ali no último andar se não me engano. Organizando prateleiras ou algo assim."
"Muito obrigada!"
"Disponha", ele me dá uma piscadela cúmplice. Uma pré adolescente se aproxima do balcão e pergunta algo a ele. Dou as costas e ando em direção ao lance de escadas, começando a subir os degraus com determinação.
Quando chego ao último andar (ofegante, preciso salientar), avisto Cornélia em cima de uma escada, limpando o topo de uma prateleira com um pano de flanela. Ela está usando fones de ouvido e cantarola uma música baixinho. Me aproximo, mas não faço nenhuma abordagem. Ao contrário, eu puxo um livro de uma das prateleiras e começo a folheá-lo até que ela me note.
"O que você está fazendo aqui?" Indaga ela ainda em cima da escada quando finalmente me nota ali. "Meu Deus, que susto!"
"Me desculpa se te assustei. Você parecia imersa na sua tarefa, não queria incomodar", fecho o livro que seguro e o devolvo à prateleira correspondente. Ela desce da escada e me encara.
"Você não subiu aqui à toa né", seu olhar é uma mistura de desinteresse e irritação.
"Claro que não. Eu quero dar um pulinho biblioteca secreta da digníssima Amelia Neri."
"Eu já te emprestei o livro naquele dia. Não acha que eu já fiz muito?"
"Não, você não emprestou. Você jogou ele pra mim por uns 10 minutos. Isso não é emprestar", cruzo os braços e troco o peso das pernas. Ela também cruza os braços. "Mas aqui estou eu novamente te dando uma chance de consertar as coisas."
"Mas é muito abusadinha mesmo", ela solta uma risadinha de escárnio. "De onde você tirou que eu sou obrigada a te emprestar o livro de novo? Existe alguma lei federal que me obrigue a fazer isso?"
"Não, mas já passou pela sua bela cabecinha que eu posso de alguma maneira expor toda essa biblioteca secreta para, não sei, o prefeito da cidade?" Joguei a ameaça disfarçada de sugestão no ar, como quem não quer nada. "Tenho certeza que alguma autoridade vai se interessar com todo o acervo de livros e os móveis que pertenceram a uma figura ilustre da nossa pequenina cidade."
"Você só pode estar brincando."
"Não brincaria com uma coisa séria, Cornélia. Se você não me entregar esse livro, acho que não me restam muitas opções."
"Bom, a biblioteca está abarrotada de gente esta tarde. Não posso te puxar para uma passagem secreta sem que ninguém note a nossa movimentação", o tom de sua voz é seco.
"Sem problemas, apareço aqui amanhã. Ou em qualquer outro dia ou horário no qual você possa me atender sem levantar suspeitas", me forço a abrir um sorriso educado. "Quando se sentir livre, me manda mensagem"
"Mas é claro", ela retribui com um sorriso totalmente forçado. "Tenha um bom dia."
"Igualmente."
Volto às escadas e noto a presença de Mark no balcão de atendimento. Ele está conversando distraidamente com Gutto, então eu me aproximo deles.
"Aí está ela", Gutto indica minha presença com a cabeça. Mark gira o corpo para mim.
"Aqui está ela", ele diz com um sorrisinho e eu jogo meus braços envolta da sua cintura brevemente, como um cumprimento. Ele beija o topo da minha cabeça. "Você quer ir embora?"
"Acho que sim"
"Seu pedido é uma ordem", ele tira a mochila que carrego das minhas costas e a coloca nas suas. Minhas costas agradecem instantaneamente pela gentileza. Sinto leveza e alívio ao me livrar daquele troço pesado. "Nos vemos por aí cara", seu olhar recai rapidamente em Gutto. O namorado da minha irmã acena com a cabeça.
"Com certeza"
"Boa sorte no seu estágio", eu digo a Gutto.
"Obrigado, Ashe", ele acena mais uma vez.
Saímos da biblioteca caminhando lentamente de mãos entrelaçadas. Só soltamos as mãos quando ele precisa destrancar seu carro.
"Vamos lá", ele diz quando estamos dentro do veículo."Você conversou com a Cornélia?"
"Sim. Exigi que ela me concedesse uma visita àquela passagem secreta e o livro do Paco Hernández"
"Ok. Mas por quê? Por que você fez isso?"
"Porque eu quero estudar um pouco mais sobre isso", olho para ele, à procura do mínimo sinal que demonstre contrariedade ou desaprovação. Ele parece apenas um pouco confuso. Pego sua mão direita que está caída no seu colo e passeio meu dedo indicador sob a palma dela. Alguns pontos dela são calejados. "Eu não me sinto satisfeita com o que ouvimos e lemos até agora Mark. Eu... eu preciso disso, sabe? Algumas coisas que o Lauper disse até que fazem sentido, tipo as faixas três que perdem a intensidade se forem muito ouvidas e tal. Mas eu quero saber a origem, quero conhecer a raíz do nosso problema."
"Ah", é o que ele diz, com a testa franzida.
"Você não precisa embarcar nessa se não quiser. É só uma coisa minha sabe? Eu não estou convencida de tudo. Na verdade, estou com mais perguntas do que respostas."
"Olha, confesso que algumas coisas que aprendemos até agora sobre as Faixas Três não fazem muito sentido para mim, mas não é como se eu não sentisse que elas não fossem verdade", eu assinto para o que ele diz. "Estou cansado dessa merda sabe? Para mim, dane-se faixas três e todas essas coisas. Quero viver minha vida, poder ter um relacionamento com a garota que eu amo, fazer o que eu gosto e só crescer. Passei anos sendo acorrentado a esse complexo maluco. Já me conformei que não vou me livrar dele, uma verdade que é difícil de engolir, mas que estou me obrigando a aceitar. Acho que aceitar é meu jeito de me sentir mais livre. Isso soa estranho para você?"
"Não, de modo algum", aperto sua mão.
"Você é corajoso na verdade. Aceitar uma verdade requer coragem. Se você acredita no que ouviu até agora e se sente bem com isso, quem sou eu para te contrariar?"
Ele me olha por alguns segundos, com o olhar cheio de algo que eu não sei explicar direito. Ansiedade? Medo? Angústia? Não sei definir com exatidão. E isso me deixa tensa.
"E se você não conseguir encontrar nada?", seu tom de voz é recheado preocupação. "Se você realmente ir procurar mais alguma coisa e não encontrar nada? Ou encontrar e isso te prejudicar? Te conheço Ashe. Conheço sua ansiedade. E se toda essa movimentação te deixar mal, mal de verdade? A ponto de te fazer perder o sono e precisar se medicar? Eu me preocupo muito com a sua saúde."
"Você está dizendo isso por causa daquele episódio lá na Califórnia né?", disparo rapidamente. "Eu tenho sim meus momentos de ansiedade como todo mundo, Mark. Nunca tive uma crise antes daquele dia e depois. Foi só uma vez. Estou mentalmente bem e quero que você confie no que estou te afirmando."
"Se você diz eu acredito. Mas se você precisa se cuidar, precisa-"
"Mark, por favor para com isso. Eu estou bem, ok? Estou ótima na verdade. É como se eu estivesse tomando as rédeas da situação, sabe? Estou cansada de me sentir vulnerável", me endireito e coloco a mão dele no meu peito para que ele sinta meu coração. "Meu coração bate com determinação, Mark. Eu não quero viver mais a minha vida passando por situações estranhas e constrangedoras. Eu quero ser livre para... para não sei, fazer o que me der na telha. Para crescer com você, ir pra faculdade, sei lá. Trabalhar em uma coisa que eu gosto, contar os dias para sairmos da casa dos nossos pais, esse tipo de coisa. Você também quer isso, certo? Vamos então buscar nossas metas, cada um de um modo diferente, mas vamos cruzar a linha de chegada juntos."
"Vamos", ele pega minha mão e pressiona minha mão no lado esquerdo do seu peito para que eu também possa sentir sua frequência cardíaca. "Acho que estamos batendo no mesmo ritmo. Estou sentindo isso."
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top