[4] A teoria de um ataque do coração
"Então, o que você queria me contar?"
Gillian e eu estávamos subindo uma rua, empurrando nossas bicicletas. Eram cerca de 7 horas da noite e o céu parecia um tapete espesso e estrelado. A garota do meu lado franziu a testa e soltou um suspiro.
"Ah, é uma coisa terrível. Uma coisa que vai estragar minha vida todinha. Algo que com certeza não é bom, não mesmo."
"Tá e o que é essa coisa?"
"Você deve conhecer o Mark, namorado da amiga da sua irmã", ela franziu o nariz. "Senhor, isso pareceu título de uma fanfic. E nem sei porque estou sugerindo isso, todo mundo conhece ele. Bom, a questão é que minha mamãe e o papai dele estão noivos."
"O QUÊ?", interrompi a caminhada. "Isso é sério?"
"Eu nunca brincaria com uma coisa dessa, garota! Olha só, não sei o que fazer. Mesmo. Quero dizer, eu meio que tentei sabotar a relação deles, principalmente porque queria proteger minha mãe de homens psicopatas que matam mulheres e depois as enfiam no porta malas dos seus carros ou as botam em um saco preto de lixo e descartam os restos mortais no meio da floresta. Assisti um monte de casos assim na TV. Mas a questão é que o senhor Elliot é boa gente, o que me alivia e me irrita ao mesmo tempo. Tipo, nós estávamos bem. Eu pelo menos não precisava de um pai postiço."
Os olhos da garota do meu lado estavam apreensivos, como se ela tivesse acabado de presenciar um assassinato bem na sua frente. Senti empatia, porque uma das piores coisas na minha humilde opinião de adolescente era ficar assim, toda sem rumo e ansiosa, sem saber como proceder.
"Acho que o jeito é aceitar, Gillian. Tem coisas que a gente não pode ficar interferindo não, até porque não é da nossa conta. Levanta a cabeça e não deixa que esse incômodo afete a sua vida. O que sempre conta nesses casos é a sua atitude. A sua reação. Reaja de um jeito maduro que eu tenho certeza que as coisas vão melhorar."
"Hahaha. Bem fácil falar. Mas obrigada pelo conselho. De verdade. Eu precisava contar isso pra alguém. A professora Lilian é uma ótima ouvinte, mas tem coisas que só pessoas que têm a mesma idade ou uma realidade parecida compreendem. O seu pai por acaso tem namorada?"
"Que eu saiba não."
"Minha mãe devia saber disso, sabe. Acho que ela precisa ter opções no caso de algo dar errado."
"Você sempre está pensando no pior ou é apenas impressão minha?"
"Não é pensar no pior. É se precaver, o que é bem diferente. Sou uma pessoa extremamente precavida. E daríamos muito bem se morássemos juntas. Claro, tirando a sua irmã que é uma chata, a vida seria perfeita, entende o que quero dizer?"
***
Deixei Gillian na sua casa, que era bem mais perto que a minha e segui solitária pelas ruas residenciais quietas demais e que me davam arrepios no braço. Era como estar no meio de um filme de terror, um Halloween dos anos 2020. Pelo menos se alguma coisa louca acontecesse, eu jogaria um belo jato do spray de pimenta que eu sempre carregava na mochila. Meu Deus, credo. Eu estava parecendo uma Gillian, simulando situações que pelo bem da sanidade mental não deveriam ser pensadas de uma maneira séria.
Mas foi exatamente isso o que aconteceu. Lá estava euzinha andando bem tranquila, empurrando a minha bike amarela, quando de repente, um carro apareceu do nada e começou a desacelerar, para me acompanhar na caminhada. Por instinto, botei uma mão no meu spray que estava em um cantinho bem estratégico e acessível da minha mochila e olhei com desconfiança para a pessoa que estava no volante. Temos que reconhecer nossos possíveis sequestradores, certo? Retratos falados são de grande ajuda para localizar um criminoso. Depois, olhei para os lados, à procura de alguém para gritar por ajuda. Nesse meio tempo, o possível criminoso poderia disparar contra a mim ali mesmo, ou me agarrar e forçar a entrar no seu carro, mas caso uma coisa dessas acontecesse, pelo menos eu teria cumprido com o meu papel de cidadã consciente. Mas voltemos à cena. Depois de fazer isso, olhei novamente com atenção para o motorista e quase dei um pulo para trás.
Era Mark Elliot.
Não sei como não o identifiquei de primeira. Não que eu estivesse treinada para reconhecer o seu rosto em qualquer canto e ainda mais no meio da penumbra. O carro dele – um outro conversível como o da minha irmã, só que vermelho – era a sua marca. Nem sei como não pensei nisso na hora. Também nem sei como não o reconheci pelo sorriso típico, aquele que ele dava para todas os seres humanos que foram agraciados com uma vagina e que ele também usava para as fotos do jornal colégio. E o cabelo? Essa era realmente a sua marca! O cabelo do cara era da altura dos ombros e levemente ondulado. Bom, missão fracassada. Realmente, eu era péssima em reconhecer as pessoas.
"Ashe Reed?", foi o que ele perguntou, sentadinho confortavelmente no banco do motorista e me encarando de uma maneira típica dos populares: como se não me conhecesse. O que era puro fingimento claro, porque nos conhecíamos desde o jardim de infância. E ele sabia muito bem disso.
"Ashlyn pra você.", cuspi, com um tom mais seco que pretendia. Ah, por favor, eu queria ir embora logo. Aquele era o dia da Mia fazer algo para o jantar e eu queria assistir ela se estressando porque era muito engraçado. Além disso, eu tinha um trabalho para terminar e outras pendências muito mais importantes do que ficar batendo papinho com Mark Elliot.
"Tá, Ashe, Ashlyn, Alison, tanto faz", quando ele disse isso, eu virei as costas e comecei a caminhar para bem longe do ser humano. Quem ele achava que era? Nem meu patrão falava desse jeito todo desdenhoso comigo! "Ei, espera aí! Eu preciso falar com você!"
"Comigo?", gritei sem me virar. "Desde quando nos falamos?"
"Desde que minha namorada ficou uma fera porque eu não liguei pra ela como combinado. Estou vindo da casa dela. Pearl não quer me ver nem pintado a ouro."
Me virei e coloquei as mãos nos quadris, esperando que aquele garoto petulante e convencido estivesse vendo a minha expressão de escárnio. Qual era a desse panaca? Por que ele veio procurar por mim?
"Bom eu sinto muito, mas cada um com os seus problemas, não é? Isso não é da minha conta."
Minha patada profissional de nada funcionou, já que ele não se desfez da sua expressão de Olá estranha que estava estampada no seu rostinho de garoto barra homem. Populares pareciam ser imunes a insultos dirigidos à sua pessoa e isso com certeza é uma das coisas que mais me irritam neles. Notando que eu estava prestes a fugir, o sujeito saiu com pressa do carro e seu cabelo longo se moveu de um jeito todo pomposo, graças a brisa leve da noite que havia chegado para quebrar o calor do dia.
"Mas você é irmã da Mia!", exclamou, como se essa fosse a resposta divina. "Será que não pode dizer para ela conversar com a Pearl e dizer que eu apenas esqueci de ligar? Tive que fazer uma viagem rápida para resolver um assunto pessoal e esqueci o celular desligado o dia inteiro."
"Ah, deixe-me ver... Não. Se quiser, vá por conta própria e faça o que lhe der na telha. E conhecendo bem a minha irmã, ela também não vai te dar ouvidos, porque ela é leal com a sua namorada como um cachorrinho é pelo seu dono."
Ele me fitou como se eu tivesse acabado de dizer que o Papai Noel não existisse. Como se eu tivesse massacrado algum sonho seu, o que não era verdade. Não podia fazer nada se ele não conseguia ouvir a verdade. Ela dói na maior parte das vezes.
"Um simples não já bastava."
"Olha, eu preciso voltar para casa, tá? Espero que dê tudo certo com você e Pearl, mas isso realmente não é da minha conta. Faça alguma coisa que vá amenizar o seu deslize como mandar uma cartinha de amor, uma serenata no meio da aula de educação física ala 10 Coisas Que Odeio em Você ou simplesmente tente conversar novamente com ela. É isso. Tchauzinho."
Me virei novamente para ir embora, mas ele segurou o meu braço.
"Uma serenata? Mas não é uma coisa muito utrapassada?"
"Acho que nada é utrapassado quando o que você faz é de coração, Mark Elliot", me soltei da sua mão. "Nunca me toque mais assim e tenha uma boa noite."
Sem mais cerimônias, montei na minha bike e pedalei com tanto vigor que quando pisquei, já me encontrava na porta de casa. Suspirei em alívio por ter me livrado daquele pé no saco e pelo horário cheguei a conclusão de que o tal do ataque do coração que Freddie Mercury cantava possivelmente era sobre a notícia que Gillian havia me contado e a surpresa desagradável de Mark Elliot no meio da rua. Eu fiquei meio assustada com essas coisas, principalmente porque as duas envolviam alguém que eu nem tinha contato, nem em sala de aula. Era meio que bizarro. Mas melhor isso do que um ataque literal.
Quando abri a porta que dava para a minha sala de estar, fui surpreendida por uma Mia sonolenta e rodeada por papéis grampeados no nosso grande tapete felpudo. Meu pai estava deitado no sofá ainda com as roupas do trabalho e seu olhar de trabalhador cansado encarava a TV que passava um reality show de reformas. Senti um leve fedor de fumaça e mesmo conhecendo Mia como o desastre total na cozinha, me joguei na poltrona e soltei um suspiro, me permitindo respirar um pouquinho.
"Tudo bem no colégio, filha? Te chamei hoje mais cedo pra te dar uma carona, mas você não me respondeu."
"Eu estava com os fones. De novo. E tudo vai bem no colégio pai. Estamos fechando as notas do semestre."
"Estou morta!", choramingou Mia, botando uma mão na testa num ato de dramaticidade. "Grêmio, trabalhos, teatro, inscrições para as faculdades e ainda sou obrigada a cozinhar! Como vocês podem ser tão insensíveis? Sou uma mulher completamente atarefada e que também tem que conciliar tudo isso com minha vida social!"
"Espera aí... Você já está cozinhando?"
"Claro, dãã."
"Há quanto tempo exatamente? Você deixou alguma coisa no fogão?", me levantei num pulo. "Ai meu Deus! Estou sentindo fedor de fumaça!"
Meu pai também deu um pulo incomum e nós dois corremos para a cozinha, que de fato estava cheia de fumaça. Meu coração começou acelerar tanto, que eu sentia ele pulsando nos meus ouvidos. Uma fumaça espessa saia de uma frigideira e tomava conta do cômodo com propriedade. Entreguei o extintor que sempre estava pregado em uma das paredes da cozinha como um quadro a um Senhor Elliot em alerta que fechou o registro do gás e direcionou um generoso jato branco em direção ao fogão. Quando nos certificamos que o fogo havia sumido, abri a janela e deixei aquela poluição ir embora.
"Meu Deus! Isso realmente foi um Sheer Heart Attack!"
"O que disse?"
"Ah... O que houve com os detectores de incêndio?"
"Tirei-os na última semana, porque estavam antigos demais. Ia mandar instalar outros na próxima semana, mas amanhã mesmo eu já ligo."
Mia surgiu na entrada da cozinha com a testa franzida.
"Mas... Eu jurava que tinha deixado no fogo baixo!", fez um biquinho. "Acho, vou ter que cozinhar um macarrão agora."
"Chega de fogão por hoje, garotas. Vamos pedir uma pizza."
Assenti, aliviada. Mia fez uma careta, porque não gostava muito de pizza, mas ela devia saber que aquela era uma opção melhor do que ela começar a mexer no fogão. E aqui vai minha teoria sobre ataques repentinos: eles são repentinos! Então não desperdice o seu dia cogitando a possibilidade de ter um, porque eles sempre vão ser surpresa e você não tem bola de cristal pra prever nada assim. Então só relaxe e se deixe levar pelos dramas do momento, que convenhamos, são catastróficos por si só.
Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.
Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.
Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.
Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.
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