[37] A Teoria de uma teoria comprovada
Estava frio lá dentro.
Lá fora o calor do dia estava capaz de derreter cérebros e os fundos da loja de Jace Lauper se assemelhavam a um típico dia de inverno. As portas davam para um cômodo onde muito provavelmente as pranchas da loja eram produzidas e pintadas. O local era meio bagunçado, com o chão preenchido por uma espessura fina de serragem e algumas pranchas ainda sem cor estavam encostadas na parede. Jace Lauper não parou ali, abrindo uma outra porta simples e lateral.
"Entrem, entrem." Ele fez sinal para que entrássemos primeiro e deu espaço para que passássemos por ele.
Mark e eu trocamos olhares breves antes de passarmos pela porta. O lugar em questão era uma sala de estar. Bom, para mim parecia uma sala, já que haviam sofás, poltronas e praticamente tudo o que remetia a uma sala. A não ser pelos instrumentos. Haviam vários instrumentos espalhados pela sala consideravelmente grande. Havia um piano de calda próximo as janelas enormes que ofereciam vista a um jardim bem tropical, com direito a palmeiras e algumas flores silvestres. Violões, guitarras, contrabaixos, bateria, flautas, violino, violoncelo, ukulele e até uma harpa estavam todos organizados em cantos da sala, muitos pendurados na paredes, outros no chão, apoiados por suportes. A sala toda parecia a loja de instrumentos que meu pai trabalhava. Estava apinhada de instrumentos de todos os tipos, cores e tamanhos.
"Nossa!" Suspirei olhando para Mark que também estava olhando de modo abobalhado para todos aqueles instrumentos musicais.
"Esse lugar parece o paraíso." Os olhos de Mark estavam brilhando. Jace Lauper fechou a porta e parou do nosso lado observando também toda a sala.
"Que bom que vocês gostaram. Essa é apenas uma pequena parte de todo o acervo que eu tenho. Mas pretendo me livrar de todos eles até o final do ano, vou doar todos a quem realmente precisa. Uma sala não foi feita para abrigar e mofar com instrumentos, do mesmo modo que instrumentos não foram feitos para ficarem nas salas, como se fossem míseros móveis. Foram feitos para serem tocados, trazerem estímulos as pessoas. Mas tenho quase certeza que vocês não vieram até aqui para conversar sobre instrumentos." Ele desceu os três pequenos degraus que davam para os sofás e se sentou em uma das duas poltronas, meio ofegante. "Então... Qual é o tema da conversa?"
"É um tema que o senhor conhece bastante eu suponho." Desci os degraus e me sentei no sofá mais próximo da sua poltrona, cruzando as pernas. Mark ficou um tempo estático, mas me imitou, se sentando do meu lado. "Música."
"É meu segundo nome." Ele quase sorriu. "Música é o que me guia, me tornou quem eu sou e bla bla bla." Ele fez uma pausa e nos encarou com os olhos estreitos. "Não me diga que vocês vieram aqui para fazer uma entrevista ou algo assim. Vocês estão escondendo algum gravador nos bolsos?"
"Não." Esbocei uma careta. "Claro que não."
"Como eu vou saber que você não está mentindo mocinha?"
"Ela não está mentindo." Mark disse pela primera vez, o tom da sua voz transbordava rispidez. "E a mocinha tem nome. Ashlyn. E eu sou o Mark, muito prazer."
Jace fitou Mark com surpresa. Ou seria admiração? Não dava para saber. Só sei que havia um brilho nos olhos dele que não me deixavam nem um pouquinho confortável. Limpei a garganta.
"É isso aí. Mark e eu saímos do Arizona pra vir falar exclusivamente com você. Não é para uma entrevista. Estamos aqui para conversar sobre Paco Hernández."
Sua expressão não se alterou nem por um segundo.
"Paco Hernández. Legal. O que vocês querem saber?"
"Não queremos saber nada dele. Mas sim sobre o que ele tinha. Sobre o segredo que vocês dois partilhavam." Fiz uma pausa dramática. "Um estudo sobre faixas musicais."
Seu corpo se inclinou para frente.
"Curioso. Vocês entraram em contato com os Hernández? Ou vocês são Hernández?"
"Não somos Hernández."
Sua expressão antes neutra deu lugar a uma curiosa ou pelo menos interessada.
"Isso é mais curioso ainda. Um momento, por favor." Ele se levantou e foi até um pequeno figrobar vermelho que eu não tinha notado até então. "Querem alguma coisa para beber? Tenho cerveja, suco e água."
"Não obrigada." Eu disse.
"Eu acho que vou querer uma cerveja, por favor." Mark disse me lançando um olhar. "Beber uma cerveja vai ser sempre uma piada pra mim agora."
"Tudo bem." Ele tirou duas garrafas de cerveja do figrobar, arrancou a tampa de ambas com o abridor de latas e entregou uma garrafa a Mark. "Pronto. Agora me sinto pronto para te ouvir."
"Ok." Respirei fundo antes de prosseguir. "Viemos aqui para conversar com o senhor a respeito das faixas. Lemos algumas partes do livro de Paco Hernández, sobre sua experiência com certas faixas de acervos musicais. Confesso que o livro não é lá uma boa obra em termos de técnica, pois ele precisava apresentar um estudo científico, mas conseguimos captar a mensagem."
"Posso saber como vocês tiveram acesso a esse livro e por que tanto interesse nele?"
"Não importa como conseguimos ter acesso, mas sim o porquê de termos tanto interesse nele como o senhor frisou." Disse Mark. "Nesse ponto é fácil ligar os pontos. Olha, acho que dois adolescentes não viriam de longe para questionar o amigo do autor de livro para montar um trabalho escolar, sei lá." Ele bebericou a cerveja. "Isso poderia ser resolvido com um e-mail ou chamada de vídeo. Não temos blogs sobre assuntos inusitados, nem viemos aqui para entrevista-lo. Ah e não somos historiadores em potencial ou algo do tipo. Não queremos respostas técnicas para repassar a uma revista ou a um jornal. Estamos aqui por algo muito maior. Estamos aqui porque achamos que temos algo em comum com você e com Paco Hernández."
"Estamos aqui porque também fomos agraciados com música. Uma faixa em especial para ser mais exata." Completei. "Praticamente a mesma coisa que Paco Hernández narra no seu livro-diário. O livro-diário no qual você foi muito bem mencionado."
Jace estava com a expressão pensativa. Provavelmente estava processando tudo o que dissemos e tentando ligar os pontos. Por nenhum momento ele demostrou surpresa ou pânico. Pelo menos eu não notei nada disso. Ele parecia tranquilo até demais, bebericando sua cerveja. Parecia que adolescentes iam ali o tempo todo revelar segredinhos para ele.
"Eu sabia que vocês viriam." Ele disse após longos segundos. Estreitei os olhos, confusa.
"Como?"
"Não do jeito que a mocinha está pensando. Vocês-" Ele dividiu o olhar entre nós dois. "Acabaram de comprovar minha teoria."
Mark e eu trocamos um olhar rápido e confuso. Sobre o que ele estava falando?
"Hum, e podermos saber que teoria é essa?" Mark não conseguiu disfarçar o nervosismo na voz.
"De que vocês existem. Uma geração mais nova também tem o que Paco e eu experimentamos. Uma completa viagem musical."
"Viagem musical. É assim que você denomina toda a loucura que acontece quando ouvimos uma faixa específica?" Indaguei, meio admirada com sua rapidez em chegar ao ponto. Pensei que ele ia ficar enrolando até não poder mais. Pensei até que ele não ia falar nada e Mark e eu voltaríamos para a casa mais perdidos do que já estávamos. Aquilo realmente era uma surpresa.
"Vai mudando conforme o tempo passa." Ele abriu um pequeno sorriso que me deixou um pouco mais relaxada. "Houve uma época que eu até chamei essa loucura de maldição."
Assenti no automático. Eu estava eufórica. Jace Lauper estava confessando que também era louco que nem a gente. E ele era mais velho, o que de alguma forma, me passava um ar de segurança e maturidade. Eu comecei a me sentir segura ali.
"E o Paco?" Mark se concentrou. "Então vocês dois eram realmente amigos. Ele faleceu há quanto tempo?"
"Muito antes de vocês terem nascido. Acho que já sei como vocês conseguiram o livro dele... Amelia Neri." Assenti, não tendo certeza se deveria fazer isso. "Essa moça causou grandes problemas para Paco. Problemas que levaram à sua morte."
"Morte?"
"Sim. Ele morreu porque o marido dela ficou sabendo dos encontros bem íntimos que eles tinham e o assassinaram alguns meses após sua esposa falecer."
"Meu Deus." Cobri a boca com a palma da mão. "Eu não sabia disso. Que horror."
"Agora já sabe." Ele se ajeitou na poltrona e esboçou uma careta de dor. "Ah, minhas costas estão me matando. Sabe, às vezes acho que ele morreu na hora certa. Se ele estivesse vivo até hoje, teria 78 como eu. Nao sei..." Ele coçou a cabeça. "Tenho a sensação de que ele estaria pior do que estava antes de falecer se estivesse entre nós. Paco era um ser pertubado."
Tremi um pouco com sua última sentença. Mark estava com o rosto tenso.
"Mas vamos falar do que vocês querem falar."
"Bom, queríamos saber o porque disso, sabe." Eu disse. "O porquê de carregarmos esse complexo das faixas. A viagem musical doidona que sempre temos quando ouvimos uma faixa três."
"Com vocês acontece com a faixa 3?" Balançamos a cabeça em um sim. Mark pousou a garrafa vazia na mesa de centro. "Interessante. Muito interessante. Vocês se importariam se eu fizesse algumas anotações durante a nossa conversa? Estou sentido que devo fazer isso."
Mark e eu nos olhamos. Eu dei de ombros. Que mal faria? Ele assentiu com a cabeça e lá foi Jace pegar um papel e uma caneta. Quando estava a posto, eu disse:
"Ah...então. Com Mark e eu a coisa toda acontece quando ouvimos qualquer faixa número 3. Acho que já fazem uns 4 anos mais ou menos que isso acontece comigo. Não me lembro da primeira vez que isso aconteceu, mas sei de vários nos quais fui refém de uma faixa 3."
"Vocês realmente só sentem os efeitos das faixas 3?"
"Até onde sabemos, sim." Mark disse. "Tipo, as coisas começam a acontecer de acordo com a letra da música e até a melodia. Só basta uma pequena amostra de uma faixa 3 e já sei que o dia vai sair do meu mínimo controle. É bizarro. E assustador."
"Sim, esse é o efeito colateral principal." Ele anotou alguma coisa e voltou a nos encarar. "Vocês não devem saber, mas além de trabalhar com música, sou formado em medicina com uma especialização em neurologia."
"Legal." Eu disse, confusa. Por que ele estava falando sobre medicina?
"Eu estava no meio dessa especialização quando Paco faleceu. Nós nos conhecíamos desde pequenos, mas nos afastamos pouco tempo a medida que crescemos. Minha família é do Havaí e eu fui fazer a especialização lá. Foi quando tudo começou. As faixas surgiram nessa época."
"Espera aí." Mark estava com um olhar de cautela. "Você está querendo dizer que as faixas surgiram depois que vocês se afastaram? Que a distância desencadeou A viagem para vocês?"
"Não. Estou dizendo que as faixas surgiram para mim. Para Paco, tudo havia surgido antes, mas ele tinha medo de me contar e eu taxa-lo de louco. Quando eu percebi um padrão estranho após eu escutar certas músicas, não hesitei em contar para ele. Sabia que ele me ouviria apesar de tudo. Eu sempre fazia o mesmo. Nossa relação sempre era assim."
Lancei um olhar cúmplice para Mark. Ele me deu uma piscadela, provavelmente se lembrando daquele dia louco das confissões que tivemos dentro do seu carro.
"Ele ficou de boca aberta quando eu comecei a contar. Se confessou também após eu terminar de falar. Aquele foi o dia mais estranho da minha vida. Eu me sentia sozinho e acompanhando ao mesmo tempo. Podia contar com meu amigo, mas ao mesmo não podia porque ele estava tão perdido quanto eu. Talvez todo aquele problema passasse. Ou não. Então decidimos estuda-lo. Cada um a sua maneira."
"Foi nesse período que o Hernández começou a escrever o livro?" Indagou Mark.
"Aquilo não é um livro." Ele disse. "Não um livro de caráter técnico, científico pelo menos. Se parece mais com um diário, ele escreve em primeira pessoa. Não dá para levar muito a sério o que ele escreveu, mas os registros foram válidos. Todo o registro é válido na minha opinião. O papel geralmente permanece. O ser humano não."
"O senhor escreveu coisas sobre sua viagem?" Questionei, curiosa.
"Mas é claro. Já redigi inúmeros artigos. Todos com viés científico."
"Então dada a sua experiência maior do que nós dois..." Mark começou impreciso. "E em relação a viagem, complexo ou qualquer nome que esse fenômeno tenha, provavelmente o senhor sabe alguma coisa"
"Sim, eu sei várias coisas sobre isso."
"Você sabe como... como tudo isso acaba? Como a viagem se originou e como podemos nos livrar dela?"
Jace cravou um olhar tão intenso em Mark que eu me senti constrangida por ele e não sabia exatamente o porquê.
"Não. Mas de tanto caminhar encontrei algumas coisas. Respostas."
Uma teoria comprovada é em geral uma boa notícia para o criador da teoria. Ou pelo menos o motivo de certo orgulho do teórico por saber que de alguma maneira ele estava certo. Albert Einstein por exemplo, foi um cara que passou a vida criando teorias que foram muitas vezes comprovadas com o passar dos anos. Uma teoria comprovada é como 8 ou 80. Ou será algo maravilhoso ou vai prejudicar muitos. Esses extremos são realmente desesperadores.
Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.
Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.
Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.
Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.
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