[33] A teoria de uma viagem pt.1
Meu primeiro ônibus partiria às 7 horas da manhã. Só de pensar que eu entraria em um ônibus e ficaria trancada por horas até descer em uma rodoviária suja para pegar outro, eu já ficava meio enjoada. Nunca fui fã de ônibus (muito menos de ficar fazendo baldeação), mas todo esse processo era muito mais barato que uma simples passagem de avião.
Às 6 horas eu já tinha saído de casa. Antes, peguei um post-it e escrevi um bilhete ao meu pai, avisando que eu tinha saído mais cedo para me encontrar com Gillian e o colei na bancada da cozinha. Joguei minha mochila velha de camping nas costas e chamei um carro para me levar a rodoviária da minha cidade que não era muito longe de onde eu morava. No carro, me sentei meio encolhida e preparada para qualquer coisa. Vou confessar que eu estava com um pouquinho de medo sim. Medo de viajar sozinha, de encarar o velho das pranchas e tudo mais. Mas minha vontade de fazer tudo isso era maior que o medo. Muito, muito maior. A minha vontade me fez acordar e ir pegar a droga do ônibus.
A motorista (que era muito simpática e bem humorada) me deixou na frente da rodoviária. Quando entreguei o dinheiro da corrida para ela, saí do carro um pouco assustada com o aspecto desértico do lugar. Haviam poucos ônibus estacionados nas vagas e o fedor de combustível começou a me deixar levemente enjoada. Caminhei para os guichês que ficavam na parte interna da rodoviária para retirar minha passagem já comprada. A moça que me atendeu pediu minha identidade com uma voz entediada, quase robótica. Fucei a bolsa à procura dela e entreguei. Meus olhos focaram no copo de café ao seu lado, enquanto ela fazia todo o trâmite no computador para liberar minha passagem.
"Tenha uma boa viagem." Ela me entregou a passagem. "Seu ônibus vai embarcar em 40 minutos, vaga 5, saída sul da rodoviária."
"Obrigada."
Andei até o outro lado, parando na frente da vaga 5 na qual a moça tinha indicado. Já haviam duas pessoas ali, de pé. Uma senhora com o cabelo grisalho perolado e um cara que parecia estar na casa dos 20 anos, fumado um cigarro. Me sentei em um dos bancos azuis duros de plástico, abrindo a mochila para checar minhas coisas. O ônibus encostou na vaga uns 10 minutos depois. Um casal com uma criança de colo surgiu, ocupando o terceiro lugar da fila.
O motorista desceu do ônibus e deu uma olhada nos pneus antes de olhar para os passageiros.
"Partiremos em 30 minutos. Quem está com a passagem em mãos já pode entrar." Quando ele disse isso, mais pessoas surgiram e ele começou checar as passagens. Me levantei para ir a fila com o coração batendo como nunca, cheio de adrenalina e esperança.
Esperança de que Mark viesse junto comigo.
Toda hora eu ficava olhando para trás como uma criancinha procurando por sua mãe que saiu para fazer alguma coisa e disse para ela permanecer na fila. A fila do ônibus não era muito grande, então dentro de poucos minutos eu já estava entregando minha passagem ao motorista que destacou a parte pontilhada e me entregou uma espécie de recibo. Não subi no ônibus. Caminhei um pouco para trás para não atrapalhar a entrada dos passageiros e fiquei olhando para a fila e por toda a rodoviária a procura dele. Era bobo eu sei, mas minha teimosia misturada a esperança era coisa de louco.
Quando o última pessoa da fila teve permissão para subir ao ônibus o motorista se virou e arqueou as sombrancelhas quando me viu ali, atrás dele com os braços cruzados, olhando para a rodoviária.
"Desistiu de embarcar, mocinha?"
"Estou esperando alguém."
"Bom, acredito que esse alguém vai perder o ônibus. Vamos sair daqui 1 minuto." Ele começou a subir os degraus do automóvel.
Suspirei, balançando a cabeça e aceitando de vez a minha derrota. Boba. Sim, eu era uma estúpida, a boba mais boba do planeta Terra. Por que eu achei que Mark ia aparecer de última hora como nos filmes?
Por que eu cismava em achar que a vida era como um filme?
Subi os poucos degraus, aceitando que teria que fazer essa viagem sozinha mesmo. Estava pelo menos torcendo para que eu encontrasse um bom lugar, mesmo que todos estivessem...
"ASHE!"
Meus olhos focaram na janela. Mark corria em direção ao ônibus com uma rapidez impressionante. Não estava acreditando no que tinha acabado de ver. Desci do ônibus tropeçando como uma bêbada.
"Mark?!"
"Ashe!" Ele fez um aceno desajeitado para o motorista que já tinha ligado o ônibus. "Motorista, eu tenho uma passagem. E eu vou embarcar!"
O motorista deixou seu posto no volante à contragosto e pegou a passagem meio amassada das mãos de Mark que finalmente tinha terminado sua corrida e respirava ofegante. Eu estava boquiaberta. E feliz. Animada também. E com vontade de chorar. E de dar um soco nele. Tudo isso junto e misturado. Ele ganhou o recibo e pôde entrar no ônibus. Não pensei duas vezes em pular em cima dele em um abraço.
"Caramba, você veio!"
"Você acha que eu ia te deixar sozinha nessa?" Ele disse com uma risada. Nos desvencilhamos quando ouvimos alguém raspar a garganta ao lado. O motorista maneou a cabeça em direção ao ônibus com uma expressão nada paciente no seu rosto cansado. "Ah. Acho melhor a gente entrar se quisermos chegar a Califórnia ainda hoje."
Assenti, subindo as escadas, colocando minha mochila no bagageiro de mão acima dos assentos, e me sentando no único par de bancos vazio do ônibus. Mark veio atrás de mim e também colocou sua mochila no bagageiro, se sentando do meu lado. O ônibus finalmente foi ligado e eu senti uma vontade insana de segurar a mão de Mark. Ele olhou para mim e arqueou as sobrancelhas.
"Preparada para essa viagem Ashe Reed?"
"Não." Peguei sua mão esquerda de repente e entrelacei com a minha. Ela estava estava quentinha e aconchegante. Consegui sentir alguns calos também. Ela praticamente e engolia a minha mão. Ele estava com os olhos fixos em mim. "Mas estou animada, isso basta? Nem acredito que você está aqui e que tudo isso está acontecendo. Obrigada por ter vindo."
"Você não tem que agradecer. Claro que eu não estou totalmente de acordo com essa loucura toda, mas acho que se eu resolvesse partir sozinho pras Ilhas Maldivas hoje mesmo você ia me seguir também."
"Claro que não. É muito longe. Além disso, por que Ilhas Maldivas? É um bocado distante da nossa cidade. Do nosso país."
"E por que não?" Ele abaixou o olhar e começou a acariciar a palma da minha mão com seu polegar. Meu coração começou a acelerar. "E não adianta fingir tá? Eu tenho certeza que você iria me seguir."
"Certeza absoluta?" Estreitei os olhos achando aquela conversa interessante para os parâmetros de conversa de Ashe e Mark.
"Bom, me diga você." Ele me olhou de um modo gentil. "Me contrarie Ashe Reed ou cale-se para sempre."
"Bom, eu..." Seus lábios começaram a se desmanchar em um sorriso e foi impossível não sorrir também. "Tá. Eu ia te seguir. Você se tornou uma pessoa importante para mim, tabóm? Eu não ia ter coragem de te deixar morrer sozinho em terras estrangeiras. É isso. Por favor, para com esse sorriso."
"Que sorriso?"
"Esse sorriso... Esse sorriso! Pronto, para com isso, ok? Você está me deixando constrangida."
"Mas você também está sorrindo. Pare de sorrir também, então."
"Não, mas eu só comecei a sorrir porque você está sorrindo."
"E eu só comecei a sorrir porque sabia que você não faria objeções contra meu argumento. E eu estou feliz porque sou uma pessoa importante para você."
"Hmm... Espero que eu também seja uma pessoa importante para você."
"Não tenha dúvidas disso. - Ele me deu uma piscadela que alargou ainda mais o meu sorriso."
O ônibus saiu da rodoviária e pouco tempo depois já estava na rodovia estadual que ligava nossa pequena cidade à Phoenix, capital do nosso estado. Nesse meio tempo, soltei a contragosto a mão de Mark da minha e ajustei o meu banco para não sentir dor nas costas. Mark por sua vez se levantou, mexeu em um compartimento da sua bolsa no bagageiro e arrancou um livro de lá. Olhei para ele um pouco enjoada.
"Um livro? Você consegue ler em movimento?"
"Super. É um dom no qual me orgulho. Só não gosto de ler ebooks quando estou dentro de um automóvel. Aí sim fico enjoado. Mas o papel com letras é inofensivo para mim."
"Por que você não tenta ouvir um audiobook? Me soa mais relaxante para uma viagem."
"Não consigo me acostumar com esse tipo de leitura. Mas você? O que você faz quando está viajando?"
"Eu não faço nada. Só fico observando as paisagens e aí quando fico entediada pra valer boto os fones e escuto uma música. Ah! É claro que eu como alguma coisa também. De preferência chocolate ou um mix de frutas secas e castanhas. Falando nisso..." Mexi na minha bolsa de ombro e arranquei de lá meu saquinho selado por um vácuo. "Quer experimentar?"
"Não, obrigado. Não gosto muito de frutas secas." Ele estava olhando com atenção para meu saquinho. "Você come uva passa?"
Assenti e ele encostou a cabeça na poltrona, fazendo uma careta.
"Aghr, como você está viva? Isso é ruim pra caramba."
"Que bom então. Sobra mais para mim." Abri o saquinho com pressa e tratei de pegar apenas as uvas passas e enfia-las na boca. A expressão desgostosa que Mark fez foi impagável. "Hmm, que delícia de uvas."
"Essa é a primeira coisa real que odeio em você, Ashe Reed. Será que até o final dessa viagem vou ter um poema pautando 10 coisas que eu odeio em você?"
"Duvido. Mas acho que eu conseguiria pautar 10 coisas que eu odeio em você, Mark Elliot. Tipo, agora. Com muita facilidade, inclusive."
"Ah é?" Ele arqueou as sombrancelhas. "Então me fala."
"Bom, eu odeio como você acha que o mundo gira ao seu redor..."
"Isso é mentira." Replicou ele levantando o indicador. Revirei os olhos, sabendo que ele ia me contrariar.
"Já que é mentira, não vou contar as outras nove." Enfiei mais frutas na minha boca. "Tem certeza que não quer? Eu já comi todas as temidas uvas passas."
"Ah, tabóm." Estiquei o saquinho e ele pegou algumas castanhas.
A viagem seguiu um ritmo estranho. Nós não falamos sobre muita coisa nesse meio tempo. A viagem até Phoenix era de 2 horas, então eu meio que fiquei revirando minha mente em busca de assuntos para conversar com Mark (que parecia bem concentrado no seu livro da Agatha Christie), mas eu só conseguia me lembrar da sensação das nossas mãos se tocando. De como um gesto tão simples havia provocado uma combustão dentro de mim.
Eu dividi meu olhar entre a janela e ele. Quando Mark levantava a cabeça do livro eu disfarçava. Foi a primeira vez que consegui e me permiti observa-lo de perto e com detalhes. O cabelo dele estava solto e brilhante como sempre. Eu conseguia enxergar algumas luzes mais claras em alguns fios, ocasionadas pela exposição do sol. Seu olhar percorria com afinco cada sentença do seu livro, o que lhe dava um ar intelectual. Sua pele era livre de qualquer marca de espinha ou manchas (que infelizmente não era realidade para a maioria de nós adolescentes). Seu olhos de repente focaram em mim sem prelúdio nenhum, me pegando de surpresa.
"Ai que susto!"
"Você estava olhando para mim." Ele começou a sorrir.
"Não estava não. Foi impressão sua. Eu estava olhando para aquele casal do lado." Abaixei a voz. "Só observe."
O tal casal na qual eu indicava discretamente com a cabeça estava no meio de uns amassos urgentes, eu diria. Eles mexiam a cabeça do mesmo jeito em que as mulheres balançavam o corpinho dançando ventre.
"Uau." Foi o que ele disse. "Eles parecem bem empenhados em praticamente engolir a cabeça um do outro."
Assenti aliviada por ter fugido daquela indagação.
Quando o ônibus finalmente estacionou em uma vaga na rodoviária de Phoenix me levantei sem pensar muito, batendo o topo da cabeça no teto. Mark começou a rir.
"Qual é a graça?" Friccionei a palma da mão no local dolorido. Ele esperou um casal passar pelo corredor para que pudesse se levantar.
"A graça é que eu tenho impressão que você vai fazer isso nos próximos ônibus também." Explicou ele, tirando nossas mochilas do bagageiro. Coloquei minha bolsa em um ombro e a mochila nas costas, pronta para descer na cidade de Phoenix.
"Pode ter certeza que vou prestar um pouco mais de atenção da próxima vez em que eu for me levantar de um assento."
Fomos os últimos a sair do ônibus. Fomos recibidos por um céu nublado e um clima abafado. Pessoas perambulavam com suas malas, telefones colados nas orelhas e bebidas nas mãos. Aquela rodoviária era bem maior do que a da minha cidade e definitivamente menos suja.
"Preciso ir ao banheiro." Eu avisei para Mark.
"Tudo bem. Quer que eu segure a sua mochila?"
"Ah sim." Eu disse surpreendida pelo ato de cavalherismo. Tirei a mochila das costas e entreguei para ele. "Eu já volto."
Enquanto eu me dirigia ao sanitário feminino, não podia acreditar que tudo aquilo estava acontecendo.
Eu e Mark. A caminho da Califórnia, quando devíamos estar presentes em mais um dia de aula.
De repente me lembrei do celular. Quando entrei em uma cabine vazia do banheiro, fisguei-o da bolsa e chequei as mensagens. Havia várias de Gillian, perguntando onde eu estava. Respondi minha amiga ativando meu GPS e compartilhando minha localização exata à ela. Havia também uma mensagem do meu pai perguntando se eu estava bem. Respondi com um emoji de jóia e guardei o aparelho novamente.
Quando voltei, Mark estava sentado em um banco vigiando nossas mochilas e falando no celular.
"Tá.... Mas eu não quero fazer isso. Eu não quero." Ele fez uma pausa, bufando. Quando me notou, se remexeu no banco. "Depois a gente se fala, ok? Tchau."
"Quem era?" Peguei minha mochila do banco e me sentei no lugar onde ela estava. Ele esfregou as mãos no rosto.
"Era o meu pai, ligando no meio do seu horário de almoço para dizer que vou me arrepender por ter largado o time e blablabla." Ele me encarou. "Por que os pais acham que sempre estão certos em relação ao nosso futuro?"
"Experiência é a resposta." Estiquei as pernas. "Eles acham que são muito mais sábios porque já viveram um bocado pra entender as merdas que acontecem no nosso planeta. Ah e eles querem proteger a gente, sabe? Acho que ser pai e mãe é isso. Querer sempre o melhor para o seu filho."
"Só sei que para o time eu não volto." Ele bufou mais uma vez. "E tenho certeza que se minha mãe estivesse com a gente ela ia me apoiar. Sei que ela ia. Mas.... Mas não quero falar sobre nada disso. Estamos indo pra Califórnia, caramba. A terra do verão sem fim! Animação devia ser sinônimo dessa viagem."
"E é! Eu fiz uma playlist com todas as músicas sobre a Califórnia que eu me lembrei." Eu disse. "Posso compartilhar com você depois. Talvez isso comece a nos animar."
"Combinado. Agora acho melhor a gente ir comprar passagens para a nossa próxima parada." Ele se levantou e esticou a mão para mim. "E comer alguma coisa que não sejam frutas secas."
Minha teoria sobre viagem é que ela é a oportunidade perfeita para você se desprender da sua realidade. Viajar envolve encarar um leque de paisagens, sensações e possibilidades. Dá pra viajar nos livros, pegando um ônibus, um carro um avião, sua bicicleta. Você só precisa fechar os olhos e se permitir sentir o que a brisa do dia quer te dar. Não é necessário que você vá muito longe. Expulse tudo o que não for bom e se permita viver coisas novas. Tente não criar expectativas, elas podem te impedir de se mover. Só foca no novo. O novo pode ser bom. O novo é uma viagem.
Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.
Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.
Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.
Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.
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