[25] A teoria de uma história
"Tem algo que você deveria ver antes."
Olhei para Mark com a testa franzida. Ele apenas pegou minha mão e me puxou em direção a um corredor que ficava depois da sala. Nós entramos em um quarto e ele apontou para um aquário gigante iluminado e lindo localizado em uma das paredes. Ele tinha areia no fundo, plantas, objetos fofos como um mini baú e até uma mini caverna. Na superfície, um monte modesto de terra flutuava calmamente, ninando o que parecia ser uma tartaruga no meio de um cochilo.
"É o Chaplin?" Inclinei o corpo para observar aquela tartaruguinha que parecia estar imersa em outro mundo. "Você ficou com ele!"
"Pois é." Ele se aproximou para observar também e abriu um pequeno sorriso. "A minha tia não era exatamente uma entusiasta de animais e para que meu primo pudesse ter Chaplin, foi necessário mais ou menos 1 ano de muita insistência até que ela perdeu a paciência e simplesmente deixou o garoto ser feliz. Jonas era o melhor pai para o Chaplin. Ele mimava tanto essa tartaruga que ela realmente era como um filho para ele. Mas aí tudo aconteceu e o Chaplin estava prestes a ser doado a um casal que meus tios conheceram no Facebook, quando eu surgi na história, pedindo para ficar com a tartaruga. Eles ficaram meio relutantes no começo, dada a minha inexperiência com tartarugas, mas pesquisei bastante sobre a espécie de Chaplin (que é tartaruga russa) e gastei todo o dinheiro que eu juntava para comprar meu primeiro carro neste aquário. Ele está aqui no andar de baixo porque é o quarto mais gelado da casa, algo que essa espécie aprecia. Chaplin gosta de comer cenouras, alface e às vezes grama seca. Um fitness raiz."
"Ela te faz se sentir mais próximo do Jonas?"
"Também. Com ela eu pude conhecer um pouco mais do meu primo. E as tartarugas são independentes, sabe? Elas gostam de fazer tudo sozinhas e não precisam que você fique olhando elas toda hora como você tem que fazer com os cães. Quando ela acha que precisa se aquecer, ela sobe nessa parte de cima e quando quer dormir mesmo, desce para a água. Sei quando Chaplin está inquieto, irritado e precisa de mais cuidados. Criamos um vínculo bem interessante. Quer dizer, no quesito animais, meu sonho era ter um cão da espécie São Bernado, mas o que a gente quer às vezes não é o que a gente precisa, como diz meu pai. E eu estou bem contente por cuidar de Chaplin. Tenho certeza que ele também está feliz por estar comigo."
"Chaplin é uma tartaruga muito sortuda." Me endiretei. "Não são todas que tem donos tão bons."
"Não, sou eu o sortudo. Não me arrependo de ter ficado com ele. É quase como estar com Jonas. Não sei se é loucura dizer isso, mas é o que eu sinto."
"Acho que entendo." Mordi a bochecha por dentro. "Eu me sinto muito próxima da minha mãe quando estou na minha casa. Não sei, eu me sinto relaxada, como se ela estivesse penteando meu cabelo depois do banho como sempre fazia. É uma sensação tão boa quando estou lá dentro, que em dias difíceis, ficar em casa é uma oportunidade para recarregar as energias."
Ficamos alguns minutos observando Chaplin e sua vida de tartaruga domesticada. Quando ela acordou, Mark me deixou alimentá-la com algumas folhinhas de alface.
"Bom, agora chegamos ao momento inevitável que estamos adiando desde que chegamos." Olhei para ele, quando Chaplin desceu para o fundo do aquário. Balancei as folhas de papel que eu tinha pegado e me sentei no chão em posição de índio. Ele ficou alguns segundos dividindo o olhar entre mim e o papel, mas finalmente acabou se sentando do meu lado. "Você quer ler?"
Ele me fitou com o rosto indeciso, então eu abaixei o olhar para o papel e comecei a dar uma olhada na primeira página.
"Bom, o prefácio é aquela apresentação do livro que fala mais da vida do autor do que a teoria." Respirei fundo. - Francisco (Paco) Hernández nasceu em dia tal de tal ano e blablablá. Ah... Olha, vou ler o que acho que vai nos acrescentar no momento, mas acho que depois temos que fazer uma leitura individual e minuciosa para conseguirmos destrinchar o texto."
"Ok." Ele se sentou do meu lado. Limpei a garganta antes de falar.
"Dia 22 de julho de 1970. Auge do verão para pessoas comuns, sinônimo de pesquisa para mim. Já fazem 6 meses desde que o estudo começou e creio que ele está dando seus primeiros passos. Tenho convicção de que minhas impressões são fatos e que com um pouco mais de tempo e aprofundamento, desenvolverei uma tese rica em detalhes lógicos, em parte para dizer a mim mesmo que não estou enlouquecendo.
Testei vários LPs. Na última semana dividi meu tempo em dois. Ora estava vivendo minha vida em família, comendo junto a mesa de jantar e conversando com minha esposa, ora estava no porão, tocando uma série de LP nas mais variadas ordens que você possa imaginar (ou não). Era como ter uma vida dupla e ambos os lados exigiam de mim dedicação. Formei alguns grupos de faixas com assunto semelhantes e temáticas divergentes. Tinha que testar de tudo para ter uma variedade de resultados nas quais poderei basear minha tese. Comecei a estudar e anotar meus comportamentos após ouvir um grupo de faixas. Não são simples anotações. Nelas, expliquei detalhadamente meu psicológico. Acredito que consigo fazer isso bem, já que quase me formei em psicologia. Pelo menos a faculdade serviu para alguma coisa."
"Não sei você, mas já achei esse cara meio presunçoso, para não falar outra coisa." Mark pegou o papel da minha mão. "Deixa que eu leio o resto."
"Tudo bem." Ajeitei a postura e olhei fixamente para a parte seca do aquário de Chaplin.
"Notei que após ouvir canções de um grupo no qual nomeei como "EC", não consegui notar nenhuma diferença no meu comportamento. Nada inusitado aconteceu, o que foi estranho. Vários grupos também não funcionaram, exceto por dois. O grupo formado por faixas três e oito. Escutei a lista de 4 músicas retiradas da posição três de álbuns variados e foi bizarro o que se sucedeu. Comecei a me sentir leve e zonzo, como se eu tivesse bebido mais do que devia. Saí daquele porão escuro e gelado e subi para cima, para minha casa, viver a minha vida. O resto do dia foi uma loucura. Briguei com minha mulher e meus filhos. Comecei a me sentir preso e limitado, como se eu estivesse dentro de uma jaula na qual eu não tinha a chave. Eu me sentia como a pior pessoa do mundo e não sabia explicar o porquê. Bom, eu sabia que o que eu sentia era claramente ansiedade, mas não era a ansiedade na qual eu estava acostumado a lidar.
Resolvi dar uma volta de carro. Dirigir sempre me acalmava e presumi que uma meia hora rodada por aí, me relaxia. E de fato relaxou. Botei na minha cabeça que devia ir ao Galbone Hill, uma colina desértica que ficava depois de um conjunto habitacional recém construído. A colina não tinha fácil acesso e tive que deixar meu carro para trás e ir até lá a pé. Andei por mais meia hora e subi a colina suado, ofegante, mas realizado. A vista de lá era exuberante. Eu conseguia enxergar o norte da cidade, as casas e alguns prédios baixos, além do mar ao fundo, no horizonte. Foi observando toda essa beleza que considerei em pular. Pular da colina e me dar cabo ali mesmo. Era uma idéia tentadora, já que tudo na minha vida era uma completa bagunça. Nada fazia sentido. O que me fez abandonar a ideia foi me lembrar de A. Ela estava na cidade e passar um tempo com ela era sempre estimulante. "
"Cara, eu não estou conseguindo entender. Isso não se parece com um livro de caráter científico como tinha pensado. Soa mais como um... diário?" Não consegui esconder o desgosto. Mark balançou a cabeça, em concordância. "Um bônus pelo menos são essas partes de experimentos que ele botou no meio das narrações. Não querendo julgar ou me gabar, mas até meu caderno de teorias é mais profissional do que isso. Ele narra tudo de um jeito monótono, fiquei com sono."
"Essa A na qual ele vai se encontrar obviamente é a Amelia Neri." Frisou, apontando para a folha. "Ele traía a mulher com a esposa do nosso prefeito. A novela mexicana do século 19."
"Eu ainda não consigo processar isso. E eu sempre me sinto um pouco zonza depois de ouvir uma faixa três, como ele. Você também se sente assim?"
"Acho que sim. A sensação é mais como se eu tivesse acabado de acordar, fico meio grogue, tentando processar a vida. Mas pelo o que eu entendi, ele se sente assim com as faixas oito também. Estranho. Nada acontece quando escuto faixas oito."
"Não sofro de nenhum efeito colateral com elas também, menos mal." Peguei meu celular para checar o horário e quase dei um pulo para trás. Eram exatas oito da noite e várias chamadas perdidas do meu pai e da Mia preenchiam minha tela de bloqueio. Olhei para a barra superior de ícones. Ah, eu não tinha ouvido nada porque o aparelho estava no modo silencioso. Infelizmente é uma mania minha, porque me dá nervoso ouvir bips de qualquer aparelho. "Caramba! Está muito tarde. Meu pai vai me matar. Vai me matar e depois, me picar em pedacinhos para alimentar os abutres da floresta."
"Não acho que ele chegaria a tanto." Ele se espreguiçou, fazendo alguns centímetros da sua camisa se levantarem. "Qualquer pessoa que trabalhe com música ao redor não seria tão insensível ao ponto de assassinar a própria filha."
"Acho que você está certo." Me levantei e ele fez o mesmo. "Está a fim de me dar uma carona?"
"Eu ia te oferecer mesmo que você não perguntasse, só para constar." Ele me entregou a pilha de papéis. "Melhor você ficar com essas cópias. Tiro outras para mim depois."
Me despedi de Chaplin que parecia dormir e lá fomos nós a mais uma viagem de carro. Eu já estava tão acostumada a entrar naquele automóvel que ele estava se transformando em um espaço seguro e aconchegante, como meu quarto. Era um pouco estranho o modo como eu estava me apegando tão rápido.
Mal eu sabia que o carro não era a única coisa sobre Mark Elliot que eu estranharia me ver ligada. Acho que no fundo, a gente era ligado desde aquele incidente no sexto ano. Enquanto cantávamos uma música conhecida que tocava no rádio e fazíamos piada com a escrita de Paco Hernández, consegui me sentir pela primeira vez no dia relaxada a ponto de rir escandalosamente.
Para algo ser considerado história, devem existir alguns fatos e eles devem coincidir. Essa é a base para levar a sério algo que aconteceu no passado. Diários não são exatamente elementos cem por cento confiáveis. Me arrisco dizer que os escritos de Paco Hernández não são lá coisa para botar muita fé, me baseando apenas por esse comecinho lido. Cornelia também não é exatamente uma pessoa confiável. Ela pode muito bem ter nos enganado dando um diário bobo ao invés do verdadeiro livro. Ou talvez o próprio Paco achou que uma coisa dessa era sim um livro e até fez cópias dele, por mais que elas tenham sido extremamente limitadas. Meu Deus, quantas teorias! E teorias comprovadas não são reais. E se elas não são reais, não são consideradas história. Esse é o ensinamento de hoje garotada.
**Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.
Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.
Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.
Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.
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