[23] A teoria de um dia caótico

O resto do dia foi um completo desastre. Depois que saímos da passagem secreta, guardei meu celular bem no fundo da minha mochila e tentei esquecer da sua  existência. Mark bem que tentou puxar assunto, mas eu fiquei muda quando voltamos ao carro. Por favor, me entenda. Eu precisava de um tempinho para processar tudo, porque A Teoria da Faixa Três estava se tornando uma coisa tão abrangente para mim que ainda era difícil aceitar que existem ou existiram pessoas que sofreram com ela e uma delas até se deu ao trabalho de escrever um livro sobre isso!

Enquanto nos dirigíamos para as proximidades do Foutman Institute, eu olhava para a paisagem sem notar ela. Cá entre nós, essa coisa de revelação pode explodir a mente de muita gente. Você fica em choque, toda hora pensa no que ouviu, sabe que é real, mas alguma coisa dentro de você entra em negação. Acho que é bem parecido com o processo da morte de alguém próximo. Eu tive algo parecido
quando minha mãe faleceu, apesar de ser bem pequena. Entrei em choque, não queria aceitar, apesar de tudo indicar que ela não ia mais me acordar todos os dias com cócegas na barriga, nem preparar meu café da manhã e me dar um beijo estalado na bochecha antes de eu entrar no ônibus escolar. São coisas que você não vai ter mais, por mais que tente reproduzir a experiência com outras pessoas. Meu pai nunca conseguiu repetir a experiência única de amor, paz e carinho que a minha mãe me proporcionava.

"Pode me deixar aqui." Eu disse.

Mark parou o carro de repente, me fitando com a testa franzida. Abri a porta, já decidida. Eu precisava de algum tempo só para mim.

"Espera aí, você já vai para a lanchonete? São apenas 11 horas da manhã. Tipo, dá tempo para a gente respirar um pouco e não pensar muito nas coisas que acabamos de ouvir."

"Mark, eu quero ficar sozinha." Quando eu disse isso, sua expressão recheada de expectativa deu lugar a uma tensa. "Desculpa, tá? Não é nada com você. Eu só  não quero falar com ninguém pelas próximas horas. Preciso passar um tempo comigo mesma para botar as ideias em ordem. Todas aquelas coisas malucas que acabamos de ver e ouvir. Espero que me entenda."

"Tudo bem, sem problemas. Pensando bem, acho que eu também preciso de um tempo." Ele abriu um pequeno sorriso que iluminou seu rosto. "Vou passear por aí até o horário do treino. Qualquer coisa, é só me ligar."

Sai do carro e fechei a porta, dando um discreto aceno a Mark Elliot. Quando ele se afastou, mirei no pequeno parque que ficava de frente a Lanchonete Foutman e era muito usado pelas crianças, dada a quantidade de brinquedos enferrujados que estava instalada ali. Tenho certeza meus olhos brilharam com o banco vazio que ficava debaixo de uma grande árvore. Se sentar debaixo de árvores com certeza era uma boa maneira de encontrar um pouco de paz.

***

Tudo parecia mais caótico do que nunca. Em 1 ano inteiro de trabalho, eu nunca tinha entrado em pânico com o grande movimento da lanchonete, mas lá estava eu, tremendo como uma boba, do mesmo jeito que eu havia tremido na biblioteca. Tentei disfarçar o nervosismo segurando as duas mãos de frente ao corpo e abrindo o maior sorriso que eu poderia dar, dada as circunstâncias. Tudo parecia uma enorme ameaça para mim, desde minha irmã sentada com Pearl em uma das mesas, até uma senhorinha na companhia de duas crianças que não passavam dos 10 anos.

Peguei um pedido que Marina me entregou e lá fui eu entregá-lo à mesa sete. Bom, digamos que o objetivo era esse, não era? Troprecei com gosto em alguma coisa (que até agora não sei do que se tratava) e levei um tombo daqueles que fazem barulho e todo mundo olha para você. Amassei o Hot Dog que eu segurava de frente a região da  barriga e sujei todo o uniforme. A lanchonete parou por um minuto com todo o espetáculo promovido de minha parte.

"Meu Deus Ashe, você está bem?" Gillian me ajudou a levantar. Meu rosto ficou quente, como se eu estivesse com febre. "Tem um Hot Dog grudado no seu uniforme!"

"Ah Gillian." Me segurei para não chorar. "Eu estraguei tudo!"

"Ashlyn." Sam saiu do seu escritório e me fitou com surpresa. "O que aconteceu?"

"Ela só tropeçou." Gillian disse com calma e um sorriso despreocupado no rosto. Aproveitei para tirar o lanche amassado do meu uniforme.

"Vem comigo." Ele me indicou a porta que dava para o seu escritório e eu comecei a andar com um pouco de hesitação. Joguei o lanche em uma lixeira que estava no meio do caminho e comecei a ficar ainda mais nervosa quando Sam me deixou entrar primeiro no seu escritório minúsculo, porém super organizado.

"Ah... Tudo bem?" Me atrevi a perguntar, depois de me sentar em uma das duas cadeiras que ficavam de frente à sua mesa. Do ângulo que eu estava, conseguia enxergar na mesa um quadro dele  segurando suas gêmeas recém nascidas todo desajeitado, como a grande parte dos pais de primeira viagem costumam ser. A foto tinha uma moldura dourada linda, cheia de detalhes.

"Comigo está tudo ótimo, não sei se posso dizer o mesmo de você." Ele arqueou as sobrancelhas. "Quer me contar alguma coisa sobre o acidente lá fora?"

"Bom, não foi por mal, eu apenas troprecei e..."

"Fazem alguns dias que você está meio avoada, Ashe. Você nunca tinha faltado no trabalho até semana passada e confesso que até agora não entendi exatamente porque você faltou. Me diga, você está muito atarefada no colégio?"

"Não! Eu só... "

"Está dispensada." Juro que quando ele disse isso, eu abri a boca sem querer. Ele soltou uma gargalhada. "Não para sempre! É só por essa tarde. Olha só, você está com uma mancha horrível no seu uniforme. Duvido que algum cliente vai querer ser atendido por uma garçonete com uma mancha duvidosa e evidente na roupa. Isso poderia manchar a imagem da lanchonete."

"Bom, talvez o senhor tenha razão." Me levantei me sentindo envergonhada e balancei a mão que ele esticava na minha direção. "Tudo bem, folga pelo resto da tarde. Acho que eu consigo lidar com isso."

"Faça um bom proveito da sua tarde, garota! Amanhã te quero aqui com pontualidade britânica, ok?"

"Okay! Obrigada Sam."

Saí da sala me sentindo um pouco mais aliviada. Recolhi as minhas coisas, troquei de roupa e sai tentei sair do estabelecimento de uma maneira discreta, mas Gillian me notou e perguntou em movimentos labiais "O QUE ACONTECEU?". Eu apenas fiz um gesto com a mão e disse "DEPOIS", quase me esbarrando com um cara na porta de saída.

Caminhei por poucos minutos até chegar no Foutman Institute. Atravessei as portas e fui em direção ao campo de futebol que estava cheio de caras correndo atrás de um outro cara com uma bola. Nada anormal, quando se trata de futebol americano. Fiquei por um minuto tentando distinguir Mark no meio daqueles garotos, mas não dava para enxergar seu cabelo dentro do capacete e todos pareciam muitos iguais com uniforme.

Me sentei na arquibancada e botei meu headphone, clicando em uma playlist segura. Mini World da Indila começou a tocar e observei o time treinar aquele jogo, não prestando realmente atenção no que acontecia em campo. Na verdade minha concentração estava na música. A letra transmitia exatamente o que eu estava sentindo naquele momento: uma pessoa que se sente sufocada e corre em câmera lenta pelo mundo, que de repente ficou muito pequeno.

Alguns bons minutos depois, notei que o treinador soprou seu apito e todos se dispersaram, cada um indo em uma direção. Guardei meu headphone e olhei para alguns jogadores que estavam na parte "baixa" da arquibancada. Um deles era Mark. Ele tirou o capacete e balançou a cabeça com seu cabelo do mesmo modo que um cão faz quando está molhado. Desci até o chão e dei um pulo bem na sua frente. Pensei que ele ia tomar um susto, mas Mark apenas abriu um pequeno sorriso.

"Ei! E aí, como foi o treino?" Eu disse.

"Foi ótimo... O que você está fazendo aqui? Faltou mais uma vez no trabalho?" Consegui captar a preocupação no seu olhar.

"O dia está sendo um desastre, Mark. É só isso o que posso dizer."

"Para mim também. Quero dizer, eu acabei de dizer que o treino foi ótimo, mas não foi." Ele coçou sua nuca. "Na verdade, minha cabeça não estava aqui no campo. Não paro de pensar por nenhum minuto em tudo o que a Cornelia nos disse."

"Eu também! Parece uma praga psicológica. Isso existe?"

"Não duvido. Depois de tudo o que nós ouvimos hoje, acho vou começar a acreditar em todas as lorotas que me contarem. Tipo, todas mesmo!" Ele pegou uma garrafa d' água e começou a bebericar ela. Seu cabelo voava com a brisa meio gelada da tarde. "O dia foi estranho para não dizer um completo caos."

"O dia não acabou Mark Elliot. Alguma coisa boa ainda pode acontecer."

"Verdade. Mas garanto que nada bom vai acontecer se eu continuar com essa roupa toda suada." Ele apontou para seu uniforme. -"E eu odeio sentir suor no meu cabelo também. Acho que vou ter que dar uma passada no vestiário. Tudo bem para você?"

Olhei para o garoto um pouco confusa. Ok, ele estava dizendo que ia tomar um banho e perguntou se estava tudo bem para mim. Essa parte eu tinha compreendido. Só não entendia como ele havia presumido que eu ia querer passar mais tempo com ele. Não que eu quisesse exatamente. Não era como eu não quisesse também. Eu só tinha ficado um pouco sem rumo e fui para onde as minhas pernas me levaram. Pelo menos era o que eu tentava convencer a mim mesma.

"Tudo bem, te espero na saída." E praticamente corri para entrada do colégio, porque aqueles caras me olhavam como se eu fosse uma criminosa ou intrusa.

Mark apareceu uns 15 minutos depois, com suas roupas normais e o cabelo solto e  úmido. Ele tinha cheiro de sabonete de baunilha e canela.

"Vamos?" Me levantei do degrau da escada e coloquei a mochila nas costas. "Você quer ir para onde?"

"Sei lá." Dei de ombros. "Para onde você quer ir?"

"Também não sei. São apenas 5 e meia. Bom, depois de um treino eu geralmente vou a lanchonete, mas você não está com cara de que quer ir lá, então..."

"Qualquer caminho serve para quem não sabe para onde ir. Acho que é isso o que o gato de Cheshire disse para a Alice. Vamos só andar por aí, tudo bem?"

Entramos no carro e Mark ficou rodando o centro da cidade, enquanto uma música pop preenchia nosso silêncio. Enquanto ele ficava virando quarteirões e cantarolando aquelas músicas com melodia chiclete, me lembrei do meu celular. Abri o zíper da mochila e enfiei a mão no interior acolchoado, o resgatando das horas de desprezo que dei a ele. Mark olhou de relance para o aparelho e parou de cantar.

"Você quer ler tudo isso?" Ele perguntou.  "Quero dizer, ler tudo isso ainda hoje?"

Não respondi de imediato, observando o sol começar a se pôr. Alguma coisa dentro de mim dizia que esperar para ler o livro de Paco Hernández ia me deixar ainda mais pirada.

"Eu preciso. Nós precisamos Mark. Eu não quero ler qualquer coisa relacionada a esse livro sozinha. Quero que você leia comigo. Se você quiser, podemos ler tudo ainda hoje."

"Ok, então está combinado." Ele me deu uma piscadela. "Uma leitura muito estranha está prestes a acontecer."

Muitos dos nossos dias aqui na terra serão caóticos. Vão existir dias em que você ficará tentadx a abandonar tudo e passar o dia inteiro na cama, dentro do seu quarto. Talvez você esteja com uma vontade enorme de chorar e não saiba o que fazer. Bom, o conceito da efemeridade nunca foi tão real nesses momentos. Tudo passa, meu jovem. Apesar de um dia estar sendo um completo caos (ou o próprio inferno na Terra) e você tiver a sensação de que ele nunca acabará, é certo que ele acabará. O segredo está em encontrar forças em você mesmx ou em alguém de confiança e que talvez esteja passando algo semelhante ou tenha certa experiência de vida para lhe aconselhar ou apenas te apoiar. Eu sempre digo que apoio nunca é demais. O dia não será ao todo caótico se você tiver força e apoio suficientes para entendê-lo e enfrentá-lo.

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