[22] A teoria de uma revelação

A biblioteca municipal era uma das construções mais antigas da nossa pequena cidade. Fundada por nosso primeiro prefeito, ela foi dedicada a sua esposa, Amelia Neri. Amelia era uma leitora assídua e também escrevia de vez em quando. Infelizmente ela acabou falecendo um ano depois da inauguração da biblioteca, vítima de um assassinato que envolvia o prefeito e sua dívida com algum Coronel revoltado ou coisa do tipo.

A biblioteca tem o nome dela e a primeira coisa que você vê quando bota os pés lá, é no quadro gigante da propria Amelia sentada em uma poltrona, concentrada na leitura de um livro. Eu amo esse quadro, principalmente porque ela está usando um vestido amarelo com gola redonda e branca que me faz imaginar o tipo de pessoa que ela era. Imagino ela como uma mulher cheia de energia, que adorava dar umas escapadas para caminhar pelo campo, recolher algumas frutas com sua cesta e se sentar debaixo de uma árvore para ler ao entardecer. Se eu tivesse vivido o século 19, com certeza seria bem parecida com Amelia.

"No que está pensando?" Mark passou uma mão na frente do meu rosto. "Parece que está imersa dentro de um universo que não nos pertence ou sei lá, sua alma foi abduzida pelos espíritos das faixas três."

"Deixa de ser bobo. Ei, você acha que a Amelia era uma boa pessoa?"

"Não sei. Olha, a Cornelia ali! Vamos lá."

Cornelia estava na parte de dentro do balcão da biblioteca falando em um telefone fixo. Ela não usava vestidos de verão. Estava com roupas sociais e o cabelo amarrado. Nem parecia a Cornelia na qual fui apresentada dias atrás.

Chegamos no balcão e esperamos ela terminar a chamada. Ela desligou o aparelho e virou a cabeça diretamente para nós, como se já soubesse que estávamos ali.

"Vocês vão ter que aguardar até minha colega voltar do café. Não posso deixar meu posto sem ela ter chegado."

"Ok." Bufei e me sentei em uma das mesinhas de leitura que ficavam espalhadas pelo salão. Mark me imitou e começamos a mexer em nossos celulares. Comecei a assistir uma série de Stories alheiros e aleatórios só para passar o tempo, até que me deparei com um Storie de Astrid Berg. O Storie em questão era uma foto de um chá gelado e um computador. Logo me lembrei da gracinha que fiz quando aceitei ajudá-la, com a matéria do jornal e olhei para Mark. Além das faixas três, acho que ele não parecia ter nenhum segredo obscuro. Não que eu fosse contar algo para Astrid nem se eu soubesse. É que era de certa forma engraçado saber que o elemento mais louco na vida de Mark Elliot era uma realidade minha também. Era como se fôssemos uma parte com defeito de um quebra-cabeça. Uma daquelas peças que são guardadas à parte por não trazerem sentido ao jogo.

Uma moça muito alta surgiu na entrada com dois copos de isopor e um saco de papel pardo, entrando pela portinha que dava acesso a parte interna do balcão. Cornelia e ela conversaram por um minuto, uma conversa levada aos sussurros que me fez revirar os olhos. Cornelia abriu um sorriso que eu julguei ser um sorriso profissional (já que na minha opinião ele não foi dotado de muita emoção) e saiu do balcão, me fazendo levantar em um pulo e guardar meu celular na mochila. Mark se levantou também e ela fez um sinal com a cabeça, caminhando com certa pressa em direção aos degraus que davam para a parte de estudos da biblioteca. Demos de ombros e fomos atrás dela, prestando atenção em cada coisa na qual nossos olhos se deparavam: cadeiras, mesas, livros, uma dezena de computadores e mais livros, nada anormal em uma biblioteca pública. Até que ela caminhou em direção a uma estante de livros velha e esquecida, que pouco conversava com o ambiente mais contemporâneo da biblioteca. Estava prestes a abrir a boca para soltar algo no mínimo sarcástico, quando ela começou a empurrar aquela estante, com certa dificuldade, do nada. Eu só consegui ficar ali, olhando para ela com um ponto de interrogação imaginário em cima da minha cabeça. Mark foi um pouco mais proativo, adicionando um pouco da sua força na "empurração" até que o móvel começou a deslizar e uma entrada duvidosa nos foi revelada.

"Uau." Ele estava de boca aberta. "Se parece com a entrada do anexo secreto da Anne Frank."

"Não, eu acredito que essa passagem é muito mais antiga." Cornelia bateu sujeiras imaginárias de sua roupa e respirou fundo. "Bom, temos que agir rápido. Vamos entrar."

"Espera aí, alguém tem uma lanterna? Eu já assisti vários filmes em que as pessoas se deram mal entrando em lugares escondidos e estranhos com lanternas. Imagina sem uma, então! Não, eu não vou entrar aí sem uma lanterna. Não mesmo."

"Nossos celulares tem lanterna, Ashe." Mark me encarou como seu eu fosse uma biruta.

"Não vamos precisar de lanterna." Interviu Cornelia. "O lugar todo tem luzes, só preciso acionar o interruptor. E já perdemos uns 5 minutos nessa conversa toda. Se vocês não passarem por essa entrada nos próximos segundos, eu juro que vocês não vão ter nada de segredinhos revelados hoje."

"Ei, tudo bem." Levantei as duas mãos "Vamos."

Atravessamos aquela entrada que, ao contrário do anexo secreto da Anne Frank, não tinha escadas, era só uma passagem reta. Cornelia encontrou o interruptor e todo o corredor em que estávamos caminhando se iluminou, revelando paredes brancas e estreitas como as de um hospital, o que me começou a me deixar claustrofóbica. Para o meu alívio, eu tinha a sensação de que de alguma forma, o lugar ia se expandindo a medida em que caminhávamos. Andamos por mais ou menos 2 minutos, quando nos deparamos com uma porta. Cornelia abriu-a  rapidamente e lá estava a coisa mais vintage que meus olhos já tinham se deparado: uma biblioteca particular.

"Meu Deus!" Fiquei tão empolgada que passei na frente, empurrando Cornelia que se desequilibrou em seus saltos e se segurou em uma parede. "Estamos em 1900!"

Todo o lugar tinha um toque absurdamente rústico graças aos móveis de madeira envernizada e as prateleiras extensas de livros de capa dura, que pareciam ser bem antigos. Havia uma lareira linda no centro da sala, quadros emoldurados acima dela, com pinturas francesas que me deixaram de boca aberta. Além disso tudo, havia também um sofá vermelho de couro super clássico, com seus quatro pezinhos em evidência, além das poltronas que mais se pareciam com tronos. Observei cada detalhe com uma emoção tremenda, tanto que mal percebi que estava chorando como uma bobona caipira que nunca tinha visto nada muito legal na vida.

"Você definitivamente devia ter uma biblioteca nesse estilo, Ashe." Mark disse. "Parece que foi feita para você."

"Foi feita para Amelia Neri." Replicou Cornelia. "A biblioteca da frente era apenas uma fachada, já que seus livros favoritos estavam aqui dentro dessa passagem secreta. Muitos desses livros foram adquiridos em viagens que ela e o marido fizeram pelo mundo. Alguns foram adquiridos de maneira duvidosa para não dizer ilícita."

"Como o que? " Mark fez uma careta. "Pode ser um pouquinho mais clara?"

"Fornicação." Ela nos encarou seriamente.  "Ela traía o marido o tempo todo. Ele começou a notar que a esposa estava meio distante dele e resolveu construir a biblioteca para agradá-la um pouco."

"E eu romantizando a construção desde sempre." Cruzei os braços. "Aghr, a verdade é feia na maior parte das vezes."

"Existem relatos de que ele também a traía. Enfim, uma fornicação mútua. Mas voltemos ao foco principal. Os livros sobre música." Ela começou a mexer em uma prateleira, tirando um livro de lá. "Ela tinha vários livros sobre teoria musical, já que ela adorava musica e inclusive sabia tocar piano, violino, violoncelo e harpa. Mais um livro no meio desse mar de teorias trata do complexo de vocês." Ela balançou o livro de capa dura, cor verde musgo. "Um livro escrito por um senhor chamado Paco Hernández, um residente de San Diego conhecido na região por concertos de piano. Ele havia notado algo estranho quando ouvia certas faixas dos concertos que estava acostumado a ouvir todos os dias para estudar. Não vou me estender muito, afinal o tempo é curto." Ela colocou o livro na mesinha de centro e se sentou em uma poltrona. "Vocês não podem levar o livro, mas podem tirar fotos das páginas. Vocês tem exatos 10 minutos para fazer isso. Existem apenas 2 cópias desse livro. Uma delas está aqui, outra com a família Hernández em San Diego. Talvez eles nem tenham mais essa cópia."

"Isso é muito pouco tempo." Peguei meu celular e apertei no ícone da câmera. "Não dá para tirar fotos de todas as páginas de um livro em 10 minutos!"

"Sinto muito, mas não posso fazer nada em relação a isso. Agradeçam por eu ter conseguido traze-los até aqui. Eu poderia ter negado, sabe?"

"Para uma voz doce, você é um tanto ríspida e ardilosa."

"Como você sabe de todas estas coisas?" Mark se ajoelhou e começou a folhear o livro na mesinha. "Você também tem o complexo das faixas três?"

"Me formei em história há dois anos atrás, mas isso não tem nada a ver com essa descoberta. Bom, tirando o lance das traições, não aprendi nada sobre as faixas três na faculdade. Trabalho aqui desde o ensino médio e descobri a passagem no ano da formatura do colegial. Minha colega lá embaixo também ama vir aqui e sempre arrumamos uma maneira de subir para cá, arrumar as coisas, bisbilhotar... Encontrei esse livro ao acaso e comecei a ler. Também trabalho com música e o assunto me interessou muito. No meio da leitura percebi também que algumas faixas afetam o modo como meu dia acontece, caso eu escute elas. De repente as coisas começaram a fazer sentido. Então decidi que para encontrar mais respostas, teria que ir a San Diego. E eu fui. O problema é que ninguém da família Hernández quis me receber. Na verdade, eu fui tratada muito mal por aquela gente. Parecia que falar sobre esse livro era como proferir blasfêmias para eles."

Minha cabeça tentava processar todas aquelas informações novas, enquanto eu tirava com pressa algumas fotos das páginas nas quais Mark me indicava. Minha mão tremia tanto, que por um momento pensei que ia deixar o celular cair e estragar tudo. Cornelia parecia alheira a todo nosso desespero. Para falar bem a verdade, parecia que a jovem estava com os pensamentos distantes daquele lugar secreto, pois olhava fixamente para uma parede. Talvez ela estivesse pensando na história que havia acabado de contar, sobre a hostilidade da família Hernández. Talvez ela estivesse irritada por termos incomodado ela ao ponto dela revelar tudo o que sabia para Mark e eu. Bom, eu não podia ter certeza de nada. Só de que a Teoria da Faixa Três não era algo estritamente restrito o que me deixava muito, muito aliviada.

Parafraseando a Janet Devlin, uma revelação pode estar na ponta da sua língua, mas talvez lhe resta a coragem e/ou momento certo para soltar qualquer bomba. Sim, você não tem que ter apenas coragem. O momento certo vai ditar o modo como a pessoa vai interpretar sua revelação. Então se estiver querendo contar algo muito importante para alguém, pense muito bem e escolha as palavras certas! Assim você terá menos chances de alguém se confundir com o que você está falando e vai poder transmitir sua mensagem com segurança.

**Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.

Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.

Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.

Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.

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