[20] A teoria de um passeio ao desconhecido

Antes de pensar em ir a qualquer lugar, eu tinha que conversar com Gillian. Mandei uma mensagem para ela escapei por alguns minutos de uma aula para encontra-la no banheiro feminino.

"Ok, você acabou de mandar uma mensagem, dizendo que é um assunto urgente." Ela apareceu instantes depois, mostrando a tela do celular. "Pode resumir a urgência, por favor? Eu tenho que apresentar um seminário e vou perder alguns pontos na média se não estiver presente."

"Quero que avise ao Sam que não vou trabalhar hoje. Já tentei ligar para ele, mas a ligação fica dando fora de área. Pode me fazer esse favor?"

"Mas por que você não vai trabalhar? Está se sentindo mal?" Balancei a cabeça em negativo. "Tem alguma consulta médica marcada?" Fiz que não novamente. "Então por que raios você vai faltar? Acho que nunca te vi faltar em um dia de trabalho. Isso é um pouco estranho."

"Só dê esse recado a ele, tabóm?" Suspirei, olhando para os lados. "Era só isso. Se quiser pode voltar para a sua aula."

"Sim senhorita." Gillian disse em um tom carregado de ironia e me deu as costas. Bom, a parte mais fácil do processo estava feita.

O sinal tocou cerca de uma hora depois e uma multidão de estudantes cansados atravessaram as portas de saída do Foutman Institute. Eu estava incluída nesta estatística, doida para chegar em casa, tomar um bom banho, me jogar na cama e adormecer nos primeiros 30 minutos do filme que eu botaria para assistir. Tá, toda essa fantasia teria que ser concebida mais tarde, de preferência à noite (e foi concebida, de fato). Meu foco às exatas 15 horas e 45 minutos da tarde, era entrar no carro de um dos jogadores de basquete mais populares do meu colégio e ir a casa de uma moça tão estranha quanto eu.

"Então você não vai trabalhar hoje mesmo, não é?" Gillian apareceu no meu campo de visão, fazendo sombra com uma mão para me encarar.

"Não, Gillian. Hoje não vai dar."

"Olha, eu vou inventar uma historinha pro Sam, mas espero que me conte depois o motivo pelo qual está escapando de um dia de trabalho, ok? É isso o que as amigas fazem. Independente de achar que vou gostar ou não, me conta depois. Qualquer coisa." Ela deu um beijo na minha bochecha. "Boa sorte na sua aventura."

Dei um aceno desajeitado para ela, quando ela pegou a sua bike azul e começou a pedalar. Minha irmã passou do meu lado, mas graças a Deus não me viu, imersa em seu próprio mundinho que envolvia uma conversa com Pearl e uma garota ruiva que estava caminhando com elas em direção ao estacionamento. Mark foi uma das últimas pessoas a atravessar as portas do Foutman, segurando seu moletom do time e soprando alguns fios de cabelo rebeldes do rosto.

"Me desculpe pela demora, mas eu estava terminando o teste de literatura na sala da professora. Estava meio difícil, não é?"

"Ah nem me fale." Fiz uma pausa. Ele começou a amarrar o cabelo. "Então, você está pronto para a nosso passeio ao desconhecido?"

"Qualquer um que esteja pronto para o desconhecido com certeza é um alien." Ele arqueou as sombrancelhas. "Vamos tentar, ok?"

"Sim, mas você me prometeu um lanche. Então..."

Corremos como loucos em direção ao conversível vermelho, entrando nele como se tudo ao nosso redor fosse desmoronar a qualquer segundo e a nossa única opção fosse entrar no carro e se afastar o mais rápido possível. Mark pisou no acelerador e saímos do estacionamento rindo como duas crianças que haviam acabado de inventar uma brincadeira muito legal. Paramos no Dunkin' e eu me permiti o prazer de saborear um café gelado e rosquinhas que derretiam na boca. Quando entramos no carro novamente e eu botei um pedaço daquele pão fofinho e doce que derretia na boca, deixando escapar um suspiro satisfação, Mark soltou uma gargalhada.

"O que foi? Nunca comeu uma rosquinha boa antes? Pode pegar uma aqui, eu deixo."

"Me promete, uma coisa Ashe Reed?" Ele olhou de relance para mim.

"Esse campo da promessa é meio perigoso. Depende do que a promessa se trata."

"Você é hilária. Nunca mude, ok?"

"Impossível. Eu vou mudar, todos mudam. Mês passado eu gostava de usar jeans, agora não gosto mais. Hoje eu sei bem mais do que ontem e estou um dia mais velha também. Então não prometo nada. Não dá para prometer coisas nas quais você não tem um controle. E nessa vida a gente tem pouco controle das coisas. Uma vez meu pai me disse que..."

"Ok, nunca faça uma mudança drástica. Você é a pessoa mais autêntica que eu já conheci na vida. E não é só pelas faixas três que por si só te tornam diferente. É o conjunto todo, sabe? A tagarelice, as roupas, o bom humor, as ironias, tudo isso junto e misturado. Você é muito Ashe Reed."

"Jura? Que descoberta incrível!" Bati palmas e ele riu. "Você é mais estranho que eu. Por que está falando tudo isso?"

"Bom, por nada. Só fiquei com vontade de falar, é isso." Ele abaixou o olhar para o GPS. "O endereço é esse mesmo que você botou aí?"

"É o endereço que me deram." Respondi, me lembrando daquele encontro no mercado com Cornelia e da sua pressa em querer ir embora. Se ela não tinha o mesmo complexo que Mark e eu, com certeza ela sabia de algo. Ninguém ficaria nervoso com um interrogatório de uma adolescente dentro de um estabelecimento em uma noite de sábado. E eu estava usando uma roupa fofa! Se ela fosse inocente não teria fugido. Essa era a minha teoria. "É um pouco longe."

"Conheço esse lugar. É um pouco afastado, uns 15 quilômetros daqui. Muita gente mora em trailers. Por que você quer tanto ir lá?"

"Desconfio de uma pessoa que mora lá, Mark. Acho que ela também tem o complexo das faixas três."

"Tá falando sério?" Seu olhos ficaram arregalados. "Por favor, não me diga que você abriu a boca e começou a tagarelar sobre as faixas para um desconhecido qualquer." Abaixei o olhar e suspirei.  "Ashe, você disse algo para alguém?"

"Não. Na verdade eu meio que fiquei interrogando a garota em questão e ela me disse pra eu ir visitá-la, o que é claramente um sinal que ela sabe alguma coisa."

"Você acha certo irmos até lá? Aquele lugar é um pouco perigoso."

"Você está com medo Mark Elliot?"

"Claro que não. Só estou deixando bem claro o tipo de lugar que estamos prestes a pisar. É sempre bom ter conhecimento de algo, mesmo que artificialmente, não acha?"

Assenti, terminando de beber meu café gelado. Tudo bem, aquela descrição havia me deixado nervosa. Conectei o meu celular no aparelho de som dele e me encostei no banco quando as batidas iniciais de uma música da Jillian Jacqueline começaram a preencher cada cantinho do carro. Mark olhou para mim por um milésimo de segundo e eu dei de ombros. Uma trilha sonora durante o trajeto não faria algum mal... Ou faria?

***

"Ok, se você pudesse ser um animal, qual seria?" Perguntei, após 5 minutos. O que podia fazer? Me entedio fácil "Não é inseto, é animal. Muita gente confunde as duas coisas, pode crer nisso."

"Confesso que não esperava essa pergunta, mas acho que eu seria uma gaivota."

"Gaivota?"

"Sim, como o Fernão Capelo Gaivota. Você não conhece a história?" Balancei a cabeça lentamente. "Bom, é basicamente sobre uma gaivota que quer ir além, apesar das demais duvidarem das suas ambições. É uma história bonita, como O Pequeno Príncipe. Mas e você? Qual animal Ashlyn Reed gostaria de ser?"

"Hmm... Eu acho que seria um Suricato." Só foi eu terminar a frase e ele começou a rir. "Ah pode rir a vontade! Eles são fofinhos, espertos e sabem dividir bem as tarefas, coisa que sou expert. Ah e eles também são ótimos vigias. Não sei porque acabei de dizer isso, porque eu sou uma péssima vigia, mas foi o que saiu."

"Ok. Uma boa escolha. O que você prefere? Ficar perdida em uma ilha deserta sozinha ou com a pessoa que você mais odeia no mundo? Te dou 10 segundos pra você responder essa."

"Com a pessoa que eu mais odeio no mundo. Assim tenho a oportunidade de conhecê-la melhor e fazer uma análise precisa. Talvez eu possa odiá-la ainda mais, talvez eu mesma comece a me odiar. As duas opções são um pouco chatas, não concorda?"

"Sim. Acho que eu também faria a mesma escolha que você. Um ser humano taxado como mal não é mal em seu todo. Eu tentaria encontrar pelo menos alguma coisinha que me indicasse um sinal de boa índole nessa pessoa."

E a conversa seguiu esse clima de perguntas aleatórias, que por mais que não pareça, te dão abertura para você conhecer uma pessoa melhor. A medida que íamos nos afastando do centro da cidade, o  ambiente de prédios baixos e galpões começou dar lugar a muitos pinheiros, trilhas, lanchonetes à beira da estrada e fileiras de trailers.

"Acho que é por aqui." Apontei para uma fileira com dezenas de trailers posicionados paralelamente em um terreno gramado com algumas árvores. "Vamos parar?"

Mark estacionou o carro em uma pequena loja de conveniência e nós começamos a caminhar, a procura do trailer do número 333. Aliás, um pouco irônico esse número, não acha?

"Aqui estamos!" Mark apontou com a cabeça para o trailer de número 333. "Você quer que eu chame?"

Fiz que não com a cabeça e bati palmas, chamando atenção de várias outras pessoas  em seus trailers, que apareçam em suas janelas. A porta do 333 se abriu e o irmão de Cornelia surgiu, com uma guitarra na mão.

"A Cornelia saiu, mas já volta. Se quiserem, podem esperar aqui dentro." E entrou novamente na sua casa, deixando a porta aberta. Olhei para Mark.

"Então, vamos?"

"Você só pode estar delirando." Ele colocou seu braço na frente, me impedindo de passar. "Nós não conhecemos esse cara. Vamos esperar a garota aqui fora."

Bufei, um pouco brava comigo mesma porque ele tinha razão. Cerca de 15 minutos depois, Cornelia apareceu com duas sacolas, caminhando com certa distração, com fones de ouvidos. Ela não se mostrou muito surpresa quando me viu.

"Olá Ashlyn, como vai? Veio ter uma aula introdutória da Flauta de Pan?"

"Oi Cornelia, eu nem trouxe a minha flauta. Na verdade vim conversar sobre um outro assunto. Um assunto que nós duas sabemos muito bem do que de trata." Apontei para Mark. "Esse é meu amigo, Mark Elliot."

"Muito prazer Cornelia." Ele estendeu uma mão e Cornelia cumprimentou com hesitação.

"Nós não podemos conversar com ele ouvindo, Ashlyn."

"Ele é tão estranho quanto eu e possivelmente você. Pode crer nisso."

"Eu nunca achei que concordaria com uma frase que me rotulasse como estranho, mas é isso aí." Mark sorriu sem mostrar os dentes e Cornelia diminuiu drasticamente o olhar de desconfiança. "Aquele lá dentro é o seu irmão?"

"Sim, ele não convidou vocês para entrarem?" Ela subiu os três degrauzinhos que davam para o interior do trailer. "Vamos, entrem por favor. Ao contrário do que muitos pensam, nosso recinto de trailers é uma localidade até que pacífica. Até onde eu sei, por aqui não habitam nada além de alguns bêbados. As pessoas são capazes de inventar grandes calúnias."

Entramos no trailer e Cornelia nos indicou a mesa retangular com bancos seguindo o estilo de cabine de lanchonete, enquanto pousava as sacolas na pequena bancada da cozinha. Isso me deu algum tempo para olhar ao redor. O trailer era até que espaçoso, nada parecido com o que eu imaginara. Cada cantinho daquele lugar era customizado com alguma coisinha, de Origamis à cortinas de miçangas. O ar tinha aroma de madeira envernizada e pinheiro silvestre. Mark e eu nos sentamos lado a lado, enquanto ela ficou do outro lado da mesa, como se fosse uma advogada em um escritório, atendendo seus clientes.

"Querem alguma coisa para beber? Tenho água, suco e chá. Não bebemos refrigerantes ou café."

"Onde seu irmão está?" Mark perguntou, ignorando totalmente a fala dela. Quis dar uma pisada no pé dele, mas me contive. "Ele está aqui dentro?"

"Sim, mas está no quarto." Ela apontou para portas de arrastar, que estavam fechadas. "Provavelmente treinando alguma coisa na guitarra. Não se preocupem, ele não está ouvindo nada."

"Como você pode ter tanta certeza?"

"Eu tenho certeza. Mas vocês não estão aqui para falar do meu irmão... ou estão?"

"Estamos aqui pelas faixas três, Cornelia." Eu disse. "Tenho certeza que você sabe de alguma coisa, então pode começar a falar. Eu não saio daqui enquanto você não me contar alguma coisa."

Ela se levantou de repente, abrindo a geladeira e despejando um conteúdo de cor laranja em um copo.

"Vocês não querem beber nada, mas eu quero, eu preciso. Caminhei por 2 quilômetros, estou morrendo de sede." Ela se sentou novamente, bebericando o líquido do seu copo. "É suco de laranja com acerola. Muito rico em antioxidantes e eficaz na proteção de doenças respiratórias. Nunca se sabe quando um vírus estará por aí infernizando alguma região."

"Faixas Três, Cornelia. " Mark disse, com o olhar fixo nela. "Estamos aqui para discutir sobre as faixas três. Não vamos perder o foco."

"Sim, claro." Ela deu de ombros. "Mas antes de qualquer coisa, quero saber a história de vocês com as faixas três. Acredito que uma breve introdução não vai fazer nada mal."

Ficamos nos encarando por algum tempo até que houvesse alguma coragem de começarmos a contar alguma coisa. Finalmente o primeiro a tomar partido foi Mark, que contou tudo o que ele havia me dito naquele dia no carro, ficando com o rosto corado por estar segurando tantas emoções e lágrimas. Eu fui mais breve que ele, contando a ela exatamente o que eu contei a você na introdução do caderno. Parando para pensar agora, é um pouco chato não se lembrar da primeira vez em que tive meu o futuro premeditado por escutar uma faixa Três. Não que isso fosse me deixar mais confortável. Na verdade,  seria bem provável que isso fosse me deixar ainda mais paranóica do que já sou.

"Interessante." A garota cruzou os braços na mesa, dividindo o olhar entre nós dois. "Muito interessante."

"É só isso que você tem a dizer?" Minha voz tinha uma nota de revolta. "Interessante? E você não vai contar nada sobre você? Pensei que isso fosse pelo menos uma troca de histórias." 

"Espero os dois na biblioteca, depois de amanhã, às nove em ponto. Se vocês querem respostas, vão encontrar respostas. Só não posso dizer que serão as mais positivas."

Mark e eu nos encaramos com rostos surpresos. Aquilo era uma novidade, talvez tudo o que estávamos procurando. Essa era a primeira vez que estávamos recebendo oportunidade de ganhar repostas.

"Estamos num nível em que tanto faz." Respondi. "Só queremos as malditas respostas. Não importa se sejam boas ou não. É muito ruim conviver com uma coisa que não tem uma explicação lógica, sabia?"

"Combinado então." Ela se levantou e começou a guardar suas compras no armário. "Conversa encerrada."

"Curta e grossa ela, não acha?" Mark sussurrou, enquanto nos levantávamos e íamos em direção a saída. "Tchau pra você também Cornelia!"

"A cavalo dado não se olha os dentes.  Nunca ouviu o ditado?" Suspirei. "Não estamos em condições de impor nada agora, Mark. Mas podemos afogar um pouco da ansiedade em um belo sorvete, o que acha?"

"Eu estou considerando."

A teoria de um passeio ao desconhecido tem que feito de preferência com mais uma pessoa além de você. É meio arriscado ir a um lugar que você não conhece completamente sozinho. Não aceite entrar em qualquer lugar e ah, pelo menos tente se portar como uma pessoa confiante, porque as pessoas percebem quando você está com medo. Se estiver desconfiado demais, não coma nem beba qualquer coisa que te oferecerem. Quanto mais breve o passeio, melhor. Não revele muitas informações pessoais e se possível, mascare algumas verdades.

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