[2] A teoria dentro de uma lanchonete
O bom de trabalhar quando você ainda tem uma pessoa para te bancar nas necessidades básicas como comida e abrigo (olá pai), é que você pode gastar sua grana do jeito que bem entender, sem hesitações. Não sou uma pessoa super hiper mega consumista, mas também não sou daquelas que deixa algo que me prendeu totalmente a atenção passar simplesmente batido.
E isso incluí exclusivamente qualquer coisa vintage.
Pois é, supro as minhas necessidades de estilo trabalhando em uma lanchonete depois do colégio, de segunda à sexta. Ela fica bem pertinho do meu colégio, o Foutman Institute, então meio que todo mundo aparece por lá.
A única coisa que eu não curto muito nela é o seu nome que é simplesmente Lanchonete. Sam Wall, meu patrão e dono do estabelecimento diz que é melhor assim, a lanchonete não ter um nome próprio.
"As pessoas sempre estão com a cabeça cheia de coisas, então pra quê encher mais? Ninguém liga de verdade se a lanchonete tenha um nome, desde que ela seja uma lanchonete e cumpra com o seu papel, (o que fazemos muito bem), está tudo dentro dos conformes."
Por um lado ele está certo, mas eu realmente não sou dessas. Nomeio quase tudo à minha volta: plantas, utensílios de cozinha, carros e o que mais tiver na frente e que eu sinta um súbito afeto. Tipo, não importa se eu tiver um branco no próximo teste escolar, desde que as árvores ao meu redor tenham um apelidinho, tá tudo certo cara.
E de uma maneira macabra eu sinto um certo afeto pelo meu local de trabalho, então foi meio inevitável que ele recebesse o nome de O Ponto de Encontro do Foutman Institute ou simplesmente Lanchonete Foutman, porque como eu mencionei ali em cima, praticamente todo mundo que está matriculado no Foutman já apareceu na lanchonete.
Então depois da última aula, eu me dirigi com certa urgência ao mesmo local que os alunos do Foutman tinham em mente após passar quase o dia inteiro enfiado em livros e fazendo vários testes para fechamento das notas do semestre.
Aliás, naquele dia eu ainda não havia conseguido convencer a minha professora de biologia a fazer o teste, então digamos que eu estava um pouquinho tensa com minha média.
Mas voltando ao assunto, a expectativa de tomar um grande e refrescante copo de milk-shake e apenas conversar sobre qualquer baboseira sempre vai ser bem melhor do que ir ao colégio.
Não que eu realmente tivesse um tempo livre para fazer isso, mas estar fora daquelas salas e dos professores malignos com suas provas malignas já estava de bom tamanho pra mim.
Naquele dia eu nem havia visto minha irmã e sua melhor, amiga Pearl Adams desfilando pelos corredores do colégio como sempre fazem no intervalo, enquanto a maioria dos caras as secam. No entanto, o indicador de sua presença estava ali, estacionado em uma das vagas do estacionamento do Foutman Institute: seu conversível prata novinho em folha que não havia me esperado para a carona que ele era obrigado a me dar todos os dias ao colégio.
Desejei mentalmente que alguma coisa complicada acontecesse com aquele carrinho à minha frente. Tipo, o pneu furar ou a gasolina acabar no meio uma estrada deserta e suspeita. Juro que não sou má pessoa, mas minha irmã tinha uma vidinha tão perfeita, glamourosa e rotineira que às vezes eu torcia mesmo para que algo saísse dos eixos, trazendo assim um pouquinho mais de ação pra ela.
Tá, minha vida também não era tão emocionante, mas pelo menos eu fazia o que me dava na telha na maior parte do tempo – sem me prender a agendinhas e sessões semanais no spa.
Sessões que inclusive ainda eram bancadas pelo meu pai, quero só frisar.
Apressei os passos enquanto não tentava pensar muito na minha meia calça que ainda (!) estava do avesso e empurrei a porta da lanchonete no mesmo segundo em que Sam iria abri-la, então sim! Para coroar a cena, eu caí de um jeito nada gracioso no chão.
Ainda bem que não havia plateia para apreciar o show.
"Meu Deus Ashe, tudo bem?", ele pegou minha mão e me ajudou a levantar. "Nem te vi abrindo a porta, senão..."
"Não foi nada! Eu tenho que me trocar", dei batidinhas na minha saia e olhei em volta: as cadeiras estavam em cima da mesas e um líquido misterioso escorria lentamente pelo chão. Olhei de relance para Sam. "A lanchonete estava fechada até agora?"
Sam assentiu olhando para o balcão, onde Rupert, um dos atendentes parecia concentrado enquanto passava um pano de flanela no balcão.
"É que a Marina faltou hoje e você sabe que só ela sabe mexer naquela máquina nova de sorvete", ele apontou para os fundos e suspirou. "Rupert aparentemente não deu conta do recado e foi isso o que aconteceu. Sorvete de baunilha espalhado pra todo o lado."
"Uh, então é melhor eu ajudar com essa bagunça. Cadê o resto do pessoal?"
"Estão todos lá dentro, preparando as coisas pra gente reabrir. Espero que aquela garota do mesmo colégio que o seu não dê com o pé. De novo", ele suspirou novamente e puxou a porta de vidro, abrindo-a. "Preciso resolver algumas pendências, mas volto logo. Diga a todos que a lanchonete precisa estar aberta em até vinte minutos, fui claro?"
"Sim senhor!", fiz uma leve continência.
"Bom, então até logo."
Ele correu e entrou no seu Opala 1967, o carro pelo qual eu babo desde sempre. Ele era preto, todo lustroso e tinha mesmo uma aura tão clássica, nostálgica e anos dourados que eu com certeza ficava com estrelas nos olhos e saliva extra na boca toda vez que era agraciada com a presença daquele automóvel. O carrinho de Mia perdia totalmente para aquele carrão, todo retrô que me dava vontade de roubar as chaves e sumir por aí, sem rumo pelo o mundo.
Me troquei com um pouco mais de calma do que de manhã e até passei um gloss que pelo menos me deixava um pouco mais em evidência dentro da blusa/uniforme de um tom azul opaco bem próximo aos uniformes de cirurgiões.
Quando sai do banheiro, alguém já estava limpando o sorvete no chão e pela vez na vida ela não estava atrasada como de costume.
"Aleluia Gillian!", exclamei de um modo tão dramático que ela se assustou. "Deus realmente ouviu minhas preces. Será que chegou a hora de eu pedir pro criador as chaves do Opala do Sam?"
Ela fez questão de se virar para mim e revirar os olhos.
"Eu parei de ajudar a professora Lilian a guardar o material dela depois das aulas, tá feliz?"
"Nossa isso é triste, mas tenho certeza que o Sam vai ficar feliz por você ter chegado no horário. Ele estava com uma pulguinha atrás da orelha em relação a você."
Ela botou o rodo com o pano todo melado de sorvete no balde e puxou sua franja desfiada para trás.
"Sabe, eu estou meio triste porque a professora Lilian é minha favorita do Foutman. Nós temos conversas tão legais e descontraídas que às vezes eu acho que ela é apenas uma amiga, não a mulher que define as minhas notas."
Gillian e eu não éramos exatamente próximas – não compártilhavamos segredos nem trocávamos mensagens de texto frenéticas –, mas eu a conhecia suficiente pra saber que ela era lésbica. O que não era problema nenhum para mim, claro. Só que ela falava muito da professora Lilian e depois dessa confissão, muitas coisas começaram a borbulhar na minha mente. Não que elas fossem de fato verdadeiras, mas eu sou do tipo teórica, como você já deve ter notado.
"É, eu acho que te entendo. Quero dizer, essas coisas de nota me deixam louca. Hoje mesmo perdi um teste e acho que não vou conseguir convencer a professora de me aplicá-lo."
Ela estava abrindo a boca pra me responder algo sobre, mas Rupert surgiu do nada e se colocou entre nós duas, com a testa franzida e os lábios tão pressionados que eu pensei por alguns segundos que sua boca tinha sumido.
"Fala sério cara, eu não posso ser despedido! Por que hoje, exatamente hoje no meu turno a Marina resolve faltar e eu ficar responsável de algo que nem sei botar a mão?"
Gillian soprou a franja que tinha caído novamente nos seus olhos e colocou as duas mãos nos quadris, fitando Rupert de um jeito todo acusador.
"Ah então foi o bonitinho que fez toda essa meleca no chão? Porque vai ser você que vai lavar minhas roupas depois."
"Relaxa, você não vai ser despedido", intervi ao notar que o cara havia ficado mais tenso com o comentário de Gillian. "Foi só um deslize que aliás, nem foi culpa sua primeiramente. Você, nem ninguém de nós aqui sabemos mexer naquele troço. Pensando bem, por que o Sam deixou você mexer na máquina que só a Marina e ele manuseiam?"
Rupert abaixou a cabeça e começou a dar chutes imaginários com seus converses amarelos.
"Talvez eu tenha dito que sabia mexer também."
"Você tá ferrado cara", Gillian balançou a cabeça e pegou o balde com o rodo, se afastando lentamente para os fundos. Quando se certificou que a garota não estava tão próxima a nós, Rupert me puxou para um canto e me fitou com os olhos azuis aguados, como se estivesse bem próximo de chorar.
O que me deu uma pena do cão, se vocês quiserem saber da minha opinião momentânea.
"Eu não posso ser despedido! Como vai ficar minha situação com a faculdade? Vou ter que...", ele tremeu os lábios. "Ter que trancar o curso!"
Rupert estava no terceiro semestre do curso de Artes Cênicas, curso pelo qual era bancado com o salário que ele ganhava como o atendente da lanchonete. Os pais não apoiavam sua opção de curso (insira aqui 14263636 motivos listados por eles pelos quais Rupert deveria fazer direito invés de artes cênicas) e meio que lhe deram as costas e o tratavam como um filho bastardo.
Eu sabia o quanto a faculdade era importante pra ele, por isso segurei delicadamente seu braço e o direcionei à uma das mesas, puxando uma cadeira. Rupert jogou o corpo contra o assento e começou a chorar.
"Meus pais vivem caçando algum motivo pra esfregar alguma merda que aconteceu por culpa do meu curso..." Ele soluçava como um bebê. Fiz carinho nas suas costas. "Agora eles nem vão precisar procurar!"
"Calma, respira fundo que não é bem assim cara", tentei pensar em algo pra reconfortar o garoto. "Primeiro: quem disse que você vai ser despedido? E se no caso isso acontecer (o que acho bem improvável), eu te banco."
"Você o quê?"
"Não te bancar bancar, você me pagaria depois. Funcionaria como um empréstimo entre amiguinhos, sacou?"
Rupert se desfez de sua posição sofredora e me olhou com os olhos estreitos que dava um vinco engraçado à sua testa.
"Sério que você faria isso por mim?"
"Nada do que você não faria por mim. E eu não tenho nada a perder cara. Quer dizer, talvez uma liquidaçãozinha aqui e ali, mas nada assim tão catastrófico."
Talvez minhas palavras tenham surtido efeito, porque ele me deu um abraço desajeitado, limpou as lágrimas e voltou a trabalhar.
Foi naquele momento que eu pensei: posso não ter jeito pra conselhos ou confortar emocionalmente. Mas se você tem algum problema financeiro talvez eu possa te dar apoio de outras formas.
Olha só, nem precisei pensar muito para teorizar! Tudo foi uma conclusão estranha e espontânea que surgiu de repente nessa minha cachola.
**Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.
Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.
Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.
Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.
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