[16] A teoria de um encontro bizarro

Aproveitei um pouco mais da minha manhã em família, tentando entender alguns quadros com estética dark (com direito a castelos góticos, retratos de vampiros em sobrecasacas e os próprios mordendo sem nenhum pudor algumas moças com vestidos pomposos), que um cara tentava nos vender. Meu pai alisava o queixo e estava de cenho franzido, o que era hilário, pois sua expressão de concentração era praticamente uma careta. Mia assim como eu, não conseguia se identificar com aquela arte e estava mexendo no celular. Meu pai finalmente se desfez daquela cara engraçada e apontou para o quadro de um vampiro com sobrecasaca:

"Vou levar esse. Pode embala-lo, por favor?"

Depois de muita caminhada que incluiu muitas risadas e troca de olhares, diante as apresentações de produtos estranhos, Mia finalmente conseguiu encontrar a sua barraca favorita. Uma menina e um menino que pareciam ser mais ou menos da nossa faixa etária, escreviam pequenas frases ou versos apenas olhando o cliente que ficava sentado em uma cadeira de dobrar. Era um negócio interessante, principalmente porque eles estavam vestidos com roupas que provavelmente foram bem populares no século XIX, com direito a botas de montar por parte do garoto e vestido pomposo por parte da menina. Mia me entregou sua bolsa a mim e se sentou com delicadeza em uma cadeira simples, de madeira. O menino que estava de frente a ela, pegou uma nova folha e encarou minha irmã por alguns minutos, como se estivesse captando alguma coisa sobre ela apenas pelo o seu olhar. Eu era um pouco alérgica a olhares intensos demais e com certeza riria se alguém desconhecido ficasse me encarando por tanto tempo, mas Mia apenas olhou para ele como se estivesse em mais um dia comum da sua vida. De repente, ele começou a escrever com uma rapidez impressionante, como se pudesse perder em poucos segundos o que sua mente havia acabado de arquitetar e rasgou o papel, entregando-o a Mia. Ela se levantou meio atônita e esticou o papel para mim.

"Leia em voz alta para mim."

"Tú és um emaranhado de pensamentos, pensamentos que muitas vezes não partilha com ninguém. Tua sina é não ter sina. Tua
pressa te limita, como um pássaro em uma gaiola. És como uma flor nascida no tardar de uma estação: Surpreendente e milagrosa. Teus emaranhados podem te destacar ou te reprimir. Eles são tão poderosos quanto teu olhar confiante. A única questão que lhe faço é: Sua confiança é um sinônimo de certeza?" Li com os olhos arregalados. "Minha nossa! Ele sabe escrever bem não é? Mas eu não entendi muita coisa. Essa escrita não é muito a minha praia. Você entendeu alguma coisa?"

Mia arrancou o papel da minha mão e releu o texto. Meu pai deu uma olhada também e assobiou, surpreendido.

"Ei, o que você quis dizer com isso?"  Mia interrogou o cara, depois que seu último cliente saiu da cadeira. Ele apenas deu de ombros.

"Tire suas próprias conclusões, senhorita. Meu trabalho é escrever. Você está livre para fazer interpretações."

"Mas se foi você que escreveu, é certo que teve que pensar em algo para depois pôr no papel."

"Sim, você está certa. Mas minhas interpretações não importam. O que conta mesmo é a sua interpretação que será baseada no que eu te escrevi."

"Bom, então é isso?" Ela fez uma careta e o garoto escondeu a risada. "Por que está com essa cara? Vai rir de mim?"

"Não, claro que não. Como você se chama? Eu sou Gutto. Muito prazer."

"Mia Reed." Ele deu um beijo rápido no dorso da mão dela. Arregalei os olhos surpreendida com aquele cumprimento. Era tão romântico! E antiquado. Mia apenas continuou o encarando. "E essa é a minha irmã, Ashlyn. O homem ali atrás é o meu pai. Só apresentando eles para te dizer que se esse bilhete for algum tipo de magia negra, você vai ter que di..."

"Magia negra? De onde tirou isso? " Ele riu, como se ela tivesse contado uma grande piada. "Mia Reed, eu posso fazer de tudo nessa vida, mas não sei mexer com essas coisas. Não mesmo. Escuta, Livie, nós sabemos fazer magia negra?"

"Claro que não!" A menina que estava sentada com um cliente, gritou. Só acendemos incensos de paz e dinheiro.

Me afastei de fininho daquela conversa estranha (talvez mais estranha do que a meu diálogo com a Cornelia do ukulele) e corri em direção a um homem que vendia picolés em seu carrinho. Tratei de comprar quatro de uma vez, um para o meu pai e Mia e dois para mim. Não tinha culpa se o sol estava de matar e eu encontrava um poço de ansiedade. Ah posso sentir o gostinho de coco e abacaxi, mesmo dias depois. Quer dizer, eu sempre estou pensando em comida e não é atoa que consigo capturar com exatidão o sabor dos alimentos. E já que estamos falando de comida, eu tive um jantar naquela noite. Quer saber o que aconteceu? Não se preocupe, vou te contar todos os detalhes que me lembro, teórico. Vamos lá!

***

Chegamos em casa no período da tarde e eu estava morta de cansasso. Eu havia andando por tanto tempo que minhas pernas pulsavam e estavam moles como gelatina. Viu? Eu penso tanto em comida que já estou fazendo referências com ela. Mas enfim. Tratei de colocar minha flauta de pan em um lugar seguro e me joguei na cama para descansar, nem que o descanso em si se resumisse a poucos minutos. Coloquei Jade Eagleson para tocar, porque música country combina muito com as tardes na minha humilde opinião. Cerca de uma hora depois, dei um pulo da cama, porque já eram cinco horas da tarde e eu sabia que Gillian ia bater na minha porta às exatas seis horas da noite, então eu tinha apenas uma hora para me aprontar, o que era pouquíssimo tempo para meus padrões de 2 horas ou mais. Tomei banho e me enrolei em uma toalha enquanto escolhia uma roupa apropriada para o jantar. Escolhi um vestido azul petróleo de tecido leve, com estampa de rosas brancas e mangas longas que transmitia delicadeza e charme, graças ao laço fofo que ele tinha na região do colo. Me lembro que ajeitei meus cachos e coloquei uma tiara branca que fez uma contraste perfeito com o vestido, a maquiagem e meus sapatos também brancos, adquiridos em um brechó. Tenho algumas fotos desse look, até postei uma delas no Instagram.

Quando ouvi a campainha tocando, peguei minha bolsa e desci ao primeiro andar. Meu pai havia atendido a porta e Gillian estava na sala provavelmente respondendo alguma pergunta feita pelo meu pai. Quando me viu, abriu um sorriso que me pareceu ser de alívio.

"Ah, aí está ela! Senhor Reed, agradeço imensamente por permitir que a Ashlyn me acompanhe no jantar de hoje."

"Foi mais importante ela aceitar te acompanhar, do que eu permitir ela sair. Conhecendo a teimosia da Ashlyn, ela iria a esse jantar, mesmo se eu não tivesse permitido, às escondidas."

"Ei! Eu nunca fiz e nem faria isso!"

"Nunca diga nunca. Bom, espero que volte antes das 11 da noite. Vou assistir um documentário longo sobre a vida selvagem e quero você de volte quando ele estiver no fim."

"Ok, pai." Dei um beijo na sua bochecha direita e puxei uma Gillian petrificada em direção a saída. "Tchauzinho!"

"Nossa pra que tanta pressa? Minha mãe ainda está preparando as coisas lá em casa."

"Você pode me levar ao mercado ou a uma confeitaria ou qualquer coisa da espécie? Quero comprar uma sobremesa para levar. Vou me sentir ridícula se aparecer lá do nada e com as mãos abanando."

"Mas eu já avisei a minha mãe sobre sua presença. Ela adorou saber que teremos mais uma pessoa na mesa."

"Não importa, eu quero comprar mesmo assim. Faz dias que estou louca por uma torta de limão!" Eu disse e Gillian não teve muita escolha. Entramos no carro estacionado no meio fio e nos dirigimos a mercado próximo. Passeamos pelos corredores por alguns minutos, antes de achar o departamento da confeitaria e confesso que fiquei tentada a comprar um saquinho de M&Ms. Mas uma coisa que me chamou a atenção mesmo foi me deparar com a Cornelia do ukulele pegando o saquinho que eu cobiçava e joga-lo a sua cestinha vermelha brilhante. Quando ela se virou e me notou, deu um pulo.

"Ah! Ashlyn. Você por aqui?"  Ela me analisou de cima a baixo. "Vai a algum evento?"

"Um jantar. Com minha amiga." Apontei com a cabeça para Gillian que também parecia super distraída com os doces. "Gosta de M&Ms?"

"Eu adoro! É um das poucos doces que eu como. Na verdade sou uma entusiasta dos alimentos salgados."

"Você é estranha, como eu. Mas não pela preferência de comida." Apontei o dedo indicador para ela "Sei que você me enrolou hoje mais cedo e quero saber o porquê. Você está guardando uma coisa bastante estranha e eu também guardo coisas estranhas. Talvez eu te entenda."

"Coisas estranhas? Do que você está falando, Ashlyn?" Gillian me fitou de cenho franzido. Eu abri a boca para dizer algo, mas Cornelia disse primeiro.

"Você pode passar na minha casa, qualquer dia desses para discutirmos sobre isso, okay? O endereço é o mesmo do cartão que te dei. Agora tenho que ir." Ela deu as costas, sem cerimônias.

"Senhor, que menina estranha. Do que vocês estavam falando?"

"Ela é astróloga." Soltei rapidamente. "Pedi que ela fizesse um mapa pessoal e vou ter que passar na casa dela pra gente discutir as minhas peculiaridades. Sabe como é né?"

"Não, não sei. Mas se o mapa for bom, por favor me avise depois. Também vou querer me consultar com ela."

Consegui comprar a torta de limão que eu tanto fantasiava nos últimos dias e entramos novamente para o quarto. Agora eu estava mais ou menos pronta para encarar a mãe de Gillian, o senhor Elliot e o Mark. Se alguma coisa desse errado, bom, pelo menos eu tinha fotos bonitas para postar por vários dias nas redes sociais.

A teoria de um encontro bizarro tem mais chances de ocorrer em locais em que você não frequenta diariamente. Aposto que você já passou ou vai passar por uma situação em que conheça pessoas diferentes do seu círculo e estranhamente vai gostar delas. Mesmo que elas tenham um comportamento atípico ou conversas sem muito nexo. E aí que entra o bizarro. Talvez você seja a pessoa bizarra também, sempre cogite isso. Talvez todos os envolvidos sejam bizarros o que é ótimo, pois bizarrice coletiva na maioria dos casos soa como algo muito inspirador.

**Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.

Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.

Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.

Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top