[10] A teoria de uma cena


Novamente acordei um pouco mais cedo, só que para passar o figurino de Patrick Verona da forma mais meticulosa possível. Meus olhos inchados de sono atrapalharam um pouco; tentei resolver com uma xícara de café forte (é raro eu beber café) e a minha playlist recheada de músicas com batidas agressivas, típicas da década de 80. Quando terminei, sorri para mim mesma, muito satisfeita com o meu trabalho. Mark Elliot ia arrasar dentro daquelas roupas bem passadas.

Me arrumei o mais rápido que pude, correndo para a cozinha em seguida para preparar alguma coisa para Mia. Eu ainda não tinha conversado com ela nada a respeito do meu plano com Mark e seria necessário preparar o terreno antes de qualquer coisa. Quando botei meus pés no cômodo, meu pai estava pegando as chaves penduradas no nosso chaveiro e cantarolando uma música dos Rolling Stones. Ele sorriu quando me viu.

"Bom dia, meu lindo girassol vibrante. Acordou cedinho, hein?"

"Bom dia pai. Digamos que eu tenho muitos desafios para cumprir hoje e o dia é muito curto para tanta luta", peguei uma panela e coloquei no fogão. "O senhor vai passar no mercado depois do trabalho?"

"Sim, provavelmente. Por que? Precisa de alguma coisa?"

"Preciso que você me leve às compras. Ou a qualquer coisa. Temos que passar um tempinho juntos, não acha? Não estou gostando nem um pouquinho de te ver só no final do dia, todos os dias. Não costumava ser assim."

Ele me fitou por alguns segundos. Um olhar compreensível que me deixou mais calma e ao mesmo tempo um pouco triste. No passado sempre nos reuniámos meus pais e nós, as garotas. Depois da morte da minha mãe, as coisas ficaram estranhas, um tanto escassas. Quando entrei no ensino médio e comecei a trabalhar então, momentos em família se resumiam a jantar pizza depois de um quase incêndio na cozinha e assistir os documentários sobre vida selvagem com o meu pai, enquanto Mia pintava as unhas e tentava ler no iPad um artigo no qual devia fazer um resumo para entregar sabe lá Deus quando. Geralmente eu botava os meus fones nos primeiros 20 minutos do documentário ou ia preparar algo para comer e Mia anunciava que ia sair com Pearl. Aquilo não era nada agradável.

"Concordo, meu girassol. Temos que marcar alguma coisa para o final de semana. Só minhas filhas e eu. Acha que Mia vai gostar da ideia."

"Não tenha dúvidas pai", ele se aproximou e deu um beijo no topo da minha cabeça, no mesmo lugar em que Mark também me deu, na noite passada. Fiz uma careta tentando dissipar aquela lembrança incoveniente. "Até mais tarde."

"Até mais tarde Ashe. Se cuida, viu? E boa sorte com os seus desafios. Você vai conseguir vencer todos, pode ter certeza."

Quando ele saiu da cozinha, corri para os armários, em busca de algo para preparar e que ficasse pronto em menos de 1 hora. Encontrei na geladeira uma bandeja intocada de morangos e decidi que ia fazer uma bela vitamina. Botei o leite gelado e os morangos no liquidificador, batendo até achar que estava bom. Mia não gosta muito de açúcar, então nem fiz questão de botar. Despejei o líquido no maior e mais lindo copo de vidro que achei, e tentei pensar em mais alguma coisa para complementar. Nem uma receitinha vinha na minha cabeça. Me dei por vencida quando ouvi os passos dela, descendo a escada. Eu teria que conquista-la com a lábia mesmo.

"Uau, vejo que acordou no horário certo pela segunda vez consecutiva." Ela arqueou as sobrancelhas. "Que incrível. Passou a noite acordada ou algo do tipo?"

"Não, só achei que devia pegar leve um pouco com as séries, pelo menos nas semanas de testes. E eu fico com menos olheiras também"

"A melhor decisão que você tomou", seus olhos passearam pela cozinha, até que focaram no copo de vidro na bancada.  "Aquilo é vitamina de morango?"

"Sim. Quer beber? Eu meio que fiz pra mim, mas decidi comer cereal mesmo. Pode ficar para você."

"Sério?", ela abriu um sorriso animado e pegou o copo, dando um grande gole na bebida gelada. "Obrigada, Ashe."

"Imagina, você é minha irmã favorita", foi a minha resposta ridícula para não dizer, totalmente forçada. A parte boa foi que Mia apenas balançou a cabeça e continuou bebendo a sua vitamina. Decidi que eu também tinha que me alimentar antes de pisar no colégio por motivos óbvios. Afoguei um pouco de cereal no leite morno e me sentei na bancada, me forçando a conversar com Mia, tudo em prol da reconciliação de Mark e Pearl. Enquanto desdobravámos assuntos – como o sofrimento diário dela que era fazer várias coisas ao mesmo tempo como as atividades extracurriculares que nunca saiam de moda e eram bem aceitas pelas universidades –, notei que Mia quase nunca falava comigo sobre coisas além do colégio. Talvez ela deixasse os assuntos legais para Pearl, já que as duas sempre estavam enfiadas em shoppings, lanchonetes e sempre riam uma com a outra. Eu nunca havia dado muita atenção a esse detalhe, mas engoli todo o meu cereal e tentei enxergar a minha irmã como uma irmã mesmo, não como a insuportável soberba que minha mente costumava rotulá-la.

"Mia, você sente falta da mamãe?", perguntei de repente, me sentindo um poço de curiosidade. Minha irmã me fitou como se eu fosse uma criança que não entendia nada do mundo.

"Nossa, que pergunta boba, Ashe. É óbvio que eu sinto falta dela, tá?", ela debruçou os ombros no tampo da bancada e deixou escapar um suspiro. "Sinto tanta falta que amputaria um membro do meu corpo se isso fosse trazê-la de volta. Queria tanto que aquele mito sobre Orfeu e Eurídice fosse verdade. Eu queria poder ter a mesma sorte de Orfeu e trazê-la de volta, como ele fez com Eurídice. Eu não ferraria tudo como ele. Eu não olharia para trás, Ashe."

Assenti, notando que seus olhos estavam se enchendo de água e os meus também. Falar sobre nossa mãe parecia ficar cada vez mais complicado. Quando ela faleceu, era impossível não falar dela, sempre encontrávamos um motivo para comentar sobre ela, por mais pequeno que fosse. Mas aí os anos foram se passando e acho que começamos a pensar que não mencioná-la nos ajudaria a seguir em frente. E acho que conseguimos subir alguns degraus, sim. O que não era muita coisa comparado a falta de conexão que existia entre nós três.

"Bom, chega de conversa", ela jogou o cabelo para trás e se levantou. "Vamos para a aula."

***

Ao botar os pés no colégio, me senti pronta. Eu estava com uma sacola de estampa fofa que atraía olhares de algumas pessoas e tentava não tropeçar nos próprios pés enquanto eu caminhava no corredor principal ao lado de Mia. Primeiro, eu tinha que me encontrar Pearl para saber mais ou menos se seu humor se encaixava com uma algo tão emocionante e público que era uma declaração no meio da aula de educação física. Mia e eu encontramos ela próxima a biblioteca de papo com uma garota mais insuportável que Mia e Pearl juntas: Astrid Berg. Ela era do jornal do colégio e também uma completa fofoqueira. Ela adorava comentar a vida alheira e se meter onde não era chamada. Arrumei a postura e a encarei com expressão de poucos amigos.

"Amiga!", Mia cumprimentou Pearl com um beijo em cada bochecha. "Tudo bem? Te mandei mensagem ontem, mas você não me respondeu."

"Ah, me desculpa. Eu estava ocupada ajudando meu pai no escritório com umas papeladas... bom, você sabe como ele é. Um horror quando se trata de arquivar documentos."

Lancei um olhar duro para Pearl. Pai, sei. Era claro que aquilo tudo era conversa para boi dormir. Mentir para a própria amiga! Eu nunca tive uma amiga, mas isso devia ser um grave delito nas regras das amizades.

"Oi para vocês também", Astrid se anunciou, nos fazendo olhar para ela. "Irmãs Reed. Como vão?"

"Muito bem Astrid, obrigada por perguntar", Mia abriu o seu sorriso ensaiado. Até ela odiava aquela fofoqueira nojenta. Eu apenas virei a cabeça para o outro lado e revirei os olhos. "E você? Conseguiu o tema principal para o jornal do mês que vem?"

"Ainda estou à procura. Bom, eu estava conversando com a Pearl sobre Mark Elliot", quando ela disse isso, Pearl mudou a expressão serena para uma desconfortável. "Não é segredo que ele é um babaca que paga de galã. Tem carne moída no lugar do cérebro. Acho que você merece alguém melhor, amiga."

Olhei rapidamente para minha irmã. Ela piscou, provavelmente um pouco chocada. Não podia acreditar na audácia de Astrid Berg em chamar Pearl de amiga. Aquela garota nunca teve pessoas nas quais ela poderia chamar de amiga. Ela tinha potencial o suficiente para estragar qualquer coisa que tocasse, incluindo um ombro amigo.

"Podemos não falar mais sobre isso, por favor?", Pearl trocou o peso de uma perna para outra e ajeitou a bolsa de ombro. "Já estou cansada de todo esse drama."

"Claro, claro. Não foi minha intenção te chatear. Mas qualquer coisa, já sabe né? Pode conversar comigo. A qualquer hora. Você tem o meu número."

"Obrigada pelo apoio, Tri!", Pearl abriu um sorriso sem dentes, antes da pentelha adolescente dar as costas e sumir dali. Mia esboçou uma careta.

"Jesus Pearl, você está tão mal pra conversar com uma cobra? E ela te chamou de amiga! Desde quando vocês são amigas?"

"Pode não parecer Mia, mas ela é sincera. Atenciosa também. E há dias atrás eu precisava de uma boa ouvinte. Você estava ocupada com seus trabalhos e eu estava... eu precisava..."

"Tá, entendi. Desculpa por não ter te dado atenção, mas você também conhece minha rotina. Tenho que fazer um monte de coisa o tempo todo", ela olhou para o relógio de pulso e suspirou. "Inclusive, tenho que me encontrar em 5 minutos com o pessoal do Grêmio para discutir algumas coisas."

Me afastei aos poucos deixando as duas sozinhas e caminhei em direção a entrada, à procura de Mark. Gillian passou por mim de nariz empinado sem nem fazer menção de um simples cumprimento. Cruzei os braços com a sacola amarela com estampa de flamingos cor de rosa e esperei. Esperei, esperei, esperei. O sinal para a primeira aula tocou e eu continuava esperando sentada em um dos degraus que davam para a rua. No último segundo estipulado pela direção para que um aluno pudesse entrar no colégio sem ser barrado, o sujeito finalmente apareceu com uma mochila nos ombros e a respiração ofegante.

"Ei. Por que demorou tanto assim?"

"Bom dia para você também, Ashlyn", ele foi em direção a um bebedouro e eu o segui. Ele bebeu mais água do que eu poderia ter a capacidade de beber de uma única vez e se virou para mim. "A apresentação está cancelada."

"O QUE? POR QUE?"

"Porque eu acabei de descobrir que Pearl já me superou. Que seguiu sua vida, sua fila ou o que seja. Não vou pagar de palhaço na frente de todo mundo. Não vou dar a ela um motivo para ela rir de mim."

"Como assim, Mark? Você precisa me explicar isso direito."

"Então vamos ter que sair daqui", ele pegou minha mão esquerda, a mão que não estava com a sacola, me puxando delicadamente em direção aos degraus, para fora do colégio. Eu quase tropecei porque ele dava passos largos que eu mal  conseguia acompanhar graças a minha altura mínima. Caminhamos até um café bonitinho que ficava bem próximo dali e nos acomodamos em uma cabine vazia, que nos dava uma visão perfeita para a rua.

"Tá, já estamos bem longe do colégio. Inclusive, você vai me pagar por eu ter perdido um dia de aula. Podia deixar pra contar o seu segredinho na hora da saída."

"Olha", disse, ignorando minha revolta. "Me enviaram uma foto da Pearl. Ela tava trocando saliva com um idiota que trabalha na mesma lanchonete que você."

Na hora só consegui pensar em Astrid Berg. A garota especialista em segredos, fofocas e flagras. Mas a única pessoa na qual presenciou uma cena quase explícita, no começo da noite foi Ashe Reed. A garota obcecada por visuais retrô e que tem um sério problema com as faixas três. Mas é claro que eu não tinha tirado uma foto daquela cena toda. Na verdade eu fugi igual galinha caçada por fazendeiro.

"Ah isso eu já sabia", suspirei, ganhando um olhar surpreso dele. "Okay, me desculpa por estar dizendo isso só agora. Mas não é como se você fosse acreditar em mim, a menina que há dias atrás te achava mais idiota do que você realmente é. E eu não tirei nenhuma foto disso. Eu só tive o azar de estar no lugar errado e na hora errada."

"Então quer dizer que se eu não tivesse descoberto isso, você ia agir como se nada tivesse acontecido?"

"Bom... Me dá um desconto, tá? Não é do meu feitio ficar me metendo em dramas alheiros, principalmente quando o tema é relacionamento amoroso. Se caso o plano ainda estivesse em ação e vocês tivessem realmente voltado, a verdade ia aparecer mais cedo ou mais tarde. Os segredos funcionam assim."

Ele me olhou daquele jeito típico: como se eu fosse uma louca. Mas não me importei, não me importei mesmo. Uma garçonete surgiu e eu fiz questão de fazer um pedido, com intenções dele pagar depois, claro. Ainda não havia me esquecido do fato que ele não havia me convidado nem pra comer um simples sanduíche na noite anterior.

"Eu devia estar chateado com você, mas a única coisa que consigo sentir nesse momento é alívio por não ter me arriscado tanto. Estou um pouco decepcionado também. Com a situação toda."

"É normal ficar assim. Quero dizer, deve ser normal. Eu geralmente me decepciono quando compro pela internet e aí quando recebo o pacote, a estampa ou o tecido não coincide com o do anúncio. Daí faço questão de fazer devolução e pegar meu dinheiro de volta. Não sei porque as pessoas fazem isso."

"Decepcionar outras pessoas?"

"Também. Mas fazer propaganda falsa, sabe. Tem muito a ver com decepção também. Enganar consumidor é crime, todo mundo sabe disso."

Mark me encarou por meio minuto, com certeza se perguntando porque eu estava falando sobre roupas quando ele tentava aceitar o fato de que Pearl já havia se esquecido dele. Tá, okay, eu era uma estranha, mas uma estranha com consciência da propaganda enganosa na internet. Na minha opinião, isso deveria ser discutido um pouco mais.

"A música...", foi o que ele disse enquanto me encarava de uma maneira intensa. Eu me segurei para não rir. Sua pupila pareceu dilatar. "Isso, foi a música! Eu estava lá e você também e foi ontem bem quando eu..."

"Olha, é melhor traduzir pra mim ou não vou entender bulhufas", cortei-o bem ma hora em que recebemos uma porção generosa de batata frita. Agradeci a garçonete e fiz questão de jogar um pouco de ketchup em uma batatinha e enfiá-la na boca. "Do que você está falando?"

Mark inclinou o corpo para trás, apoiando as costas do estofado da cabine, que era da cor creme. Seus dedos indicadores batiam no tampo da mesa, produzindo um som que me deixava ansiosa.

"Eu não posso falar nada."

"Ah? Como assim não pode falar nada? Desembucha, cara."

De repente, a balada deprimente que ecoava por todo o café deu lugar a uma outra balada com um toque soul, da Mariah Carey. Um alarme interno apitou na hora. Anytime You Need A Friend, do álbum Music Box de 1993 e uma legítima faixa 3. Arregalei os olhos pela surpresa, mas o que eu vi em seguida me fez abrir a boca como se eu tivesse acabado de ouvir que uma terceira guerra mundial havia começado naquele exato momento. Mark se levantou em um pulo, me assustando novamente e correu em direção ao balcão de atendimento.

"Você tem que desligar isso. Agora!", foi que ele gritou para uma funcionária de cabelo rosa. Algumas poucas pessoas que estavam concentradas em seus copos de isopor, notebooks e celulares, viraram as cabeças para olhar. A moça apenas franziu o cenho.

"É uma música da Mariah Carey, na melhor época dela. Na década de 90, ela fazia um hit atrás do outro. Era impossível não saber quem ela era."

Ele não deu a mínima atenção para a sua fala, apenas bateu a palma de uma mão contra o tampo do balcão com bastante força, atraído mais atenção e espanto por parte de todos presentes ali, me incluindo. Ele voou para a nossa cabine, jogou a mochila nas costas e me olhou do jeito mais pertubador possível.

"Temos que sair daqui. Agora."

A teoria de uma cena, tem muito a ver com a teoria do flagra. Uma cena tem muito a ver com surpresas e talvez até ataques do coração. Não dá para premeditar também, então o melhor a se fazer é tentar respirar fundo pra não surtar tanto com os imprevistos da vida, que infelizmente vão te atacar sem querer saber da sua condição física, mental e nem se você já estava surtando com outros imprevistos. Respire fundo e mantenha a fé na humanidade astronauta. O bom das desgraças (e a parte ruim das graças) é que elas são efêmeras, ou seja, quando você também menos esperar, elas vão pastar ops, passar.

**Texto pensado e redigido por: Ashlyn (Ashe) Reed.

Nenhuma parte deste material poderá ser copiada sem autorização da mesma, correndo o risco de sofrer terríveis consequências.

Atenção: algumas pessoas, lugares e eventos mencionados no decorrer dos capítulos, poderão ter seus nomes modificados a fim de preservar respectivas privacidades.

Ps: isso não é um diário. Te mato se eu souber que você acha que meus registros e experiências altamente profissionais não passam de puro clichê adolescente.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top