Capítulo 5 - Segregados

QUANDO MERA SAIU do seu castelo, encontrou como receptividade apenas o sombrio véu da noite. E esperava quem, sua tola?

A liteira que conduzia a deusa era preta dos cabos às arandelas que decoravam suas pontas, cheia de pedras preciosas e ornamentos escuros brilhantes. Subiu-a com o apoio da mão de Zorá, seu conselheiro. O homem sempre bisbilhotava todas as suas ações, e tinha um costume irritante de fazer afirmações óbvias. Ele suspirou ruidosamente quando a deusa da morte largou a sua mão, como se o simples ato de levantar o braço fosse caro demais para o homem.

— Será sensato, Vossa Divindade? — perguntou ele debilmente. — Tão poucos homens para aquele estranho povo...

Ela fez um aceno rápido e torceu a boca em repugnância.

— Vá cuidar dos seus afazeres, Zorá — disse Mera com acidez. — Tem livros para ler e experiências para fazer. Precisamos do poder funcionando o quanto antes.

Zorá do Norte fez uma reverência, rodopiou a túnica cinza e virou a cabeça alva na direção do castelo, caminhando sem olhar para trás.

Mera gritou uma ordem, e os escravos puseram-se à marcha, lentos como o final da vida. Ao seu redor, as Montanhas da Perdição avolumavam-se junto à neblina da noite. Olhando por aquela perspectiva, seu território parecia realmente desolado e abandonado, tocado com as garras terríveis do tempo. Das árvores restavam só as caducas, chupadas para dentro em timidez; a grama nada mais era do que manchas sujas que salpicavam um lugar ou outro. Flores? Nenhuma.

Mera teve uma infância difícil, que a fez desacreditar muito das coisas que viviam e respiravam. Lembrava de um tempo remoto em que punha ramos verdes nos cabelos pretos e atava cintas floridas na cintura, mas a alegria aos poucos foi morrendo, e a deusa adotando cada vez mais o preto terrível da Morte. Muito disso era culpa dos seus amabilíssimos irmãos, é claro. Foram eles que atiraram ela em um poço de mágoa, tristeza, solidão e culpa, foram eles que moldaram o monstro que ela era hoje.

Diziam que ela tinha culpa de tudo. Diziam que ela matara a mãe no parto — e isso de fato era verdade, mas como poderia ter feito isso de modo intencional? — e diziam que ela tinha provocado o suicídio do Pai. Muitas mentiras foram inventadas sobre Mera, histórias sem escrúpulos instigadas em tabernas só para alimentarem o ódio do povo, faminto por ter alguém a que apedrejar. Tudo isso devia aos irmãos.

Entretanto, os anos de esquecimento tinham acabado. Mera estava pronta para colocar as peças no tabuleiro e ver cada um deles pagar por aquilo que fizeram com ela.

A liteira seguiu aos solavancos pelas montanhas, descendo colinas desterradas e intocadas pelos últimos séculos. Aos gritos de Mera os escravos avançavam, apenas para desacelerarem o passo metros adiante. Sabia que, naquela circunstância, qualquer tempo perdido era custoso, porque Lignum finalmente começara a se mover, e as engrenagens do futuro estavam também a funcionar. Em breve as verdades começariam a cair, e Mera tinha que estar pronta para receber as respostas à altura.

Nos últimos anos, Mera trabalhou para produzir um esquema que fosse inteligente, eficaz e, sobretudo, infalível. Sacrificou muito do seu sangue para entregá-lo ao Poço da Verdade, a fim de fazer contato com um outro Plano, onde só Sombras e Espíritos habitavam. Zorá do Norte trabalhava em uma fórmula para atar os escravos totalmente a sua vontade, e estava fazendo progressos notórios, e o rapto de pessoas também tinha avançado pelos bordos do Dormente.

Depois de trepidações que a deixaram tonta, Mera por fim escutou o barulho do mar quebrando na areia. Quando a liteira parou, a deusa da morte agarrou as barras do vestido preto e desceu, ao que ergueu o capuz sobre a cabeça, para que a madrugada não molhasse o seu cabelo. Sobre o seu peito, bem exposto para que todos vissem, brilhava o medalhão púrpura, o símbolo do seu poder naquela terra.

— O barco — disse Mera aos escravos — O barco, seus idiotas! Nesta demora toda, vamos alcançar Segregados na próxima primavera, malditos sejam todos! Não fiquem aí parados a me ouvirem falar! Trabalhem!

Os escravos correram atrapalhadamente até o cais e prepararam o barco para que Mera subisse. Um instante depois, os remos estavam espumando no mar, fazendo turbilhonantes ondas sobre o espelho d'água. No céu, uma lua gorda e brilhante, como o olho cego de um monstro mitológico, observava a cena com atenção, e as estrelas dançavam à sua volta. A deusa da morte ergueu a cabeça, em posição de dignidade, e enfrentou o trecho de águas profundas com a coragem que sabia ter escondida no peito.

Segregados era uma grande ilha que ficava próxima do continente e do castelo de Mera, mas isso não significava que ela fazia propriamente parte da civilização. A verdade é que As Três, o arquipélago mais a leste do mundo conhecido, separado por léguas e léguas de água salgada, fazia mais parte da civilização do que Segregados, porque esta era uma ilha de criaturas banidas do convívio humano.

Quando a Guerra dos Três Fins aconteceu, um acordo foi firmado entre o Grande Deus, os homens e as criaturas mágicas. Impostas ao jugo da exploração humana, as bestas tornaram-se armas e foram usadas indiscriminadamente e incansavelmente pelos exploradores de sua inocência e pureza. Desgostoso de tudo isso, o Grande Deus ordenou que as criaturas mágicas e os homens já não poderiam conviver em um mesmo espaço, e expurgou as bestas para uma ilha ao nordeste do mundo, até então nunca tocada pela civilização. Ali elas ficariam, segundo as palavras do próprio Pai, até o fim dos tempos, e nunca mais um homem deveria vê-las ou tocar em seu território novamente.

Para a felicidade de Mera, ela não era um homem e tampouco humana.

Segregados ergueu-se do mar na hora mais profunda da madrugada, as falésias de pedra subindo e subindo e subindo sobre a planície de água. Na floresta densa instalada em cima das pedras brilhavam luzes: azul, violeta, anil e vermelho. A costa de areia branquíssima surgiu à vista. Uma brisa veio e partiu, balançando as palmeiras preguiçosas que cresciam enfileiradas por toda a praia. Mera percebeu que, conforme avançavam, as ondas se tornavam cada vez mais violentas, indicando que a faixa de areia estava cada vez mais próxima, e o mar, mais raso.

Quando o barco já não conseguia mais vencer o fundo da praia, Mera ergueu o vestido preto e desceu ela mesma, molhando-se até os joelhos. Os escravos terminaram de arrastar o barco até a areia e então ficaram parados em posição de sentido, esperando a próxima ordem, trêmulos com os ventos frios da madrugada. A deusa da morte fez um gesto para eles descansarem, e foi isso o que fizeram, permanecendo sempre em um silêncio de túmulos.

— Não tardarei a voltar — disse ela à custa de notas. — Esperem-me neste ponto.

Então girou as saias e caminhou placidamente até a falésia rochosa.

Conforme ia avançando, Mera podia sentir que aquele terreno realmente nunca tinha sido tocado por um pé humano antes. Ela subiu por uma escada esculpida na rocha, que galgava falésia acima, mas, afora isso, toda a natureza à sua volta parecia intocada. Os próprios degraus da escada estavam ocupados por gavinhas e musgo, de forma que teve um cuidado redobrado para subi-los, já que ainda era muito nova para quebrar o pescoço ou a bacia. A noite era cerrada, nublada e escura. O horizonte dava resquícios de um nascer do sol, mas este ainda estava distante.

Na contagem do octogésimo sexto degrau, os pulmões de Mera lutavam para trabalhar e o coração batia dentro de si como um pássaro engaiolado bate as asas. Até os músculos da perna já se contraiam e formigavam, mas ela persistiu até o último patamar. Segregados tinha um ar pesado e temperado com o cheiro de alguma especiaria, que Mera não saberia identificar qual era, e que enojava o seu olfato.

Escutou — ou pelo menos jurou que sim — um barulho estranho sobre a sua cabeça, e virou-se rapidamente para identificar de onde vinha o som, mas a coisa já não estava mais lá. Desapareceu. Com as sobrancelhas franzidas, Mera investiu suas últimas forças nos degraus restantes, até que, finalmente, alcançou o topo da falésia.

A mata assolava ao seu redor, inclinando-se para abraçá-la. Uma estrada de terra vermelha serpeava pelo chão e contornava troncos brancos e ancestrais, cheia de pegadas estranhas. Mais adiante, como que aconchegada no seio da mata, havia uma única casa, estranha por si só. Da sua chaminé subia uma fumaça azul, e a luz que atravessava os vitrais, tanto do primeiro quanto do segundo andar, era roxa como os olhos da deusa.

Mera viu um par de olhos abrir-se entre os grandes salgueiros, pinheiros, abetos e serpes, de uma cor verde penetrante, e aquilo enregelou-a até os ossos. Escutou um crocito, e então um corvo preto surgiu no céu, desceu em rasante e veio pousar em seu ombro. Mera ganhou coragem por isso, e então gritou para quem quer que fosse:

— QUEM ESTÁ AÍ?

Outro par de olhos, agora vermelho, brilhou em um nível mais baixo da mata. Uma sombra perpassou a janela da casa e agitou-se na dentro. Ninguém respondeu, e, portanto, o eco voltou pelos grossos troncos das árvores: "Aí, aí aí...". Eu sou uma deusa, Mera disse para si mesma. Eles não podem me ferir. Mas, por mais que pensasse em como era uma muralha forte, suas mãos estavam frias como gelo e trêmulas como as de um velho. Se sou tão impenetrável, porque temo tanto?

De repente, mais olhos surgiram na bruma escura da mata, até que cada região estava infestada de minúsculos pontos coloridos que ora apagavam-se e ora voltavam a serem iluminados. Grandes olhos líquidos, dourados e famintos; pequenos pontos vermelhos, rubis acesos pelo calor do inferno; verde pérolas jade desalinhadas. À luz do luar, penetrando pelas brechas da floresta, Mera viu silhuetas de sombra formarem-se e sumirem.

— EU SOU A DEUSA DA MORTE! — ela gritou para o desconhecido, profundo e ignóbil vazio. O eco voltou a si: "morte, morte, morte...".

Mera ouviu o barulho de dobradiças, e em seguida a grande porta de madeira da casa se abriu, e uma luz preguiçosa estendeu-se lá de dentro. A sombra de alguém, de alguém humano, pelo inferno, apareceu naquele vão luminoso, e caminhou até o seu encontro.

— Não é bem-vinda aqui, Mera — a voz de um velho soou.

Mera descartou o medo, a insegurança e o terror que tinha adquirido até ali e vestiu as roupas da cortesia, do orgulho e da coragem, e fez aquilo que sabia fazer de melhor.

— Até onde eu sei, ninguém é bem-vindo aqui — disse ela de mansinho. — Suas criaturas são acanhadas? Têm medo de mim?

— Elas não são minhas — disse o senhor de prontidão — e é você quem deveria temê-las, Mera, não o contrário.

— Ah, mas elas me parecem tão simpáticas! — Mera respondeu.

— Não estou aqui para tolerar as gracinhas de uma deusa — voltou a revidar o senhor, e então saiu para a luz. Não tinha cabelos, mas cultivava uma grande barba branca que ia até o umbigo. Sua pele era marrom, e sua túnica, cinza, cheia de bolsos. Na mão direita segurava um cetro com uma esfera ciano na ponta. Na outra mão trazia um cachimbo, que ora ou outra pitava e soltava uma fumaça branca para o ar. Ele tinha nas rugas da face uma estranha sensação de conhecimento. — Vou esquecer essa ofensa que fez a nós se partir imediatamente, Mera. A nenhum homem é permitido pisar em Segregados e viver.

— Ah, graças a Deus! — falou Mera com divertimento — Homens são uns tolos idiotas, e faz bem eliminar alguns de vez em quando, meu bom senhor.

— Seu pai outrora fez um pacto sagrado com os ancestrais desse povo. — Veio um som de arranhar dos fundos da mata, e o velho virou-se em 180 para olhar. Então respondeu com a mesma entonação, em uma língua que Mera desconhecia. Voltou-se a ela, parecendo um pouco mais aborrecido. — Os homens juraram que nunca mais nos perturbariam.

Ela fingiu surpresa.

— E, mesmo assim, o senhor continua aqui — a deusa da morte sorriu — a menos que... Ora, meu velho, vamos ser francos. Não quer me obrigar a baixar as saias bem aqui na sua frente, não é? Se puder ver bem, eu não sou um homem, e tampouco um ser humano. Eu sou a deusa da morte.

— Se você não me dissesse, eu nunca chegaria a essa conclusão — ironizou o velho, com os olhos brilhando — Você é do sangue dos homens, e isso nos basta. Essa comunidade já sofreu demais, e sofreu duas vezes mais para tentar se entender. Agora que conquistamos a harmonia, não seremos desestabilizados de novo. Vá embora, eu lhe peço, ou seremos obrigados a usar a força.

Mera colocou a mão sobre o peito e fingiu-se de ofendida.

— Mas o senhor nem me chamou para o café da manhã ainda! Não quer ouvir as propostas que tenho a fazer?
O velho rangeu as mandíbulas. Só aquele sinal já era suficiente para Mera criar esperanças.

— Você tem um minuto — declarou o velho — findado ele, virará as costas imediatamente e descerá as escadas, ou a atiraremos da falésia para que caia lá embaixo e morra. Nós não estamos brincando, Senhora.

— Ah, mas é claro que estão, queridos amigos! — gracejou ela, tentando fazer as palavras tornarem-se realidade — Já devem estar carecas de saber, o senhor o mais careca de todos, sobre o akerpon e o fim dos tempos e etc e etc. Não vou ficar enchendo-os com isso. Todo esse sacrifício, esse oceano desgraçado e essa escadaria infernal, tudo isso foi enfrentado por mim para trazer a essas criaturas a melhor proposta que elas já receberam na vida. Desde que a terra virou do avesso e as almas arrastaram-se pelas pedras, desde ali, nunca antes se falou de uma proposta tão boa quanto essa.

O velho ergueu uma sobrancelha.

— Traz a mim enigmas quando eu mais preciso de esclarecimentos, Mera — retrucou o velho — Que é que quer dizer com isso?

A isca está lançada, Mera pensou, resta agora atrair o peixe.

— Dizem que são livres, mas que liberdade é essa? Não podem desfrutar das belas paisagens que este mundo tem a oferecer porque são obrigados a cumprir com um contrato empoeirado que é mais velho do que eu. Vocês precisam de mais espaço, e eu estou aqui para ajudá-los nisso. Se conhece um pouco da minha história, senhor, sabe que fui muito segregada na infância, e ainda sou até hoje. Sempre odiei a injustiça. Quero consertar isso. Temos que trazer a igualdade e a harmonia de volta ao mundo.

O velho respirou dolorosamente.

— O corvo veste-se de branco para chamar a si mesmo de pomba da paz. Até um velho meio cego como eu sei reconhecer quando a pomba é corvo. Diga-me mais, Mera, e eu acreditarei cada vez menos. Vimos do que é capaz. A história nos revelou isso. Matou a sua mãe, e por toda a verdade do mundo, matou o seu pai também. O mal está em seu coração.

A conversa sempre volta nisso, sempre, e sempre, e sempre. Era impressionante como o seu passado crescia a suas costas como uma sombra suja e espúria.

— Naturalmente, devo dizer. Caeli é fria, Aqua é sonsa, Lignum é feliz, Ignis é explosivo. E eu... sou má — Mera sorriu — Não há como mudar as predestinações que foram feitas a nós. Mas já pensou que, às vezes, o corvo era a paz e a pomba era a guerra? Desde quando a cor das penas define a verdade de uma mensagem?

O velho mediu minuciosamente as palavras.

— Não se muda um sistema de desigualdade sem violência, Mera — o velho concluiu, e estava mirando, certeiro, no alvo — Quer as criaturas para mover uma guerra visando atingir os seus propósitos, isso já vi bem. Mas o que quer nos dar? O que as criaturas de Segregados têm a ganhar ficando ao seu lado, Vossa Graça? Está desafiando quatro deuses poderosos. Qual é o preço?

Mera abriu os braços. O brilho do sol da manhã rompeu às suas costas, e uma brisa subiu pelas falésias e balançou a sua roupa. Um bando de corvos surgiu pelo ar, grasnando e gritando floresta abaixo. A deusa puxou o capuz que cobria a cabeça e abriu um sorriso simpático e convidativo. O peixe fisgara a isca.

— Todos nós queremos alguma coisa. Guerra por guerra, sangue por sangue, vingança e justiça. E vocês, é claro, querem aquilo que foi usurpado das suas mãos por muito tempo. Desejam suas terras de volta. As Planícies do Outono, sim, são elas que desejam. Ao que meus irmãos estejam subjugados a mim, poderei entregá-las a vocês com um piscar de olhos, e lá as criaturas poderão voltar a construir suas raízes ancestrais. Mas não conseguirei isso sem você, amigo — ela virou-se para a falésia, sorrindo, e o bando de corvos pretos girou ao redor dela, cinquenta, cem, duzentos... O barulho deles era tão forte que as últimas palavras da deusa tiveram que ser emitidas a gritos — Mande-me uma resposta por uma carta, se assim quiser, meu bom senhor. A paz virá em breve, isso é certo, mas apenas se você lutar ao meu lado. Com o seu povo. Tudo o que precisa é dizer sim.

E então Mera deu uma gargalhada, ganhou impulso e simplesmente saltou falésia abaixo. O chão, a 15 metros, correu ao seu encontro, e, aos olhos impressionados das criaturas e do velho, a deusa da morte desapareceu

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