Capítulo 3 - O Murmurar das Ondas


AS VELAS ILUMINAVAM o quarto banhado pela noite, lambendo o ar com labaredas suaves. Pela janela, Aqua ouvia o chacoalhar do oceano. Imaginou as ondas negras espumando na praia e o mar mordendo os pilares que sustentavam o templo, moldando o castelo com a delicadeza de uma crisálida ao longo de infinitos anos.

Naquela tarde havia caído uma chuva contínua e calma que marcava o fim do verão. Em breve chegaria o inverno, com seus ventos frios que congelavam ossos, e Aqua precisaria se acostumar rapidamente àquele abraço. Ponta do Céu, o castelo da irmã, era famoso por ser tão frio quanto as geleiras ao norte do mundo. E isso no verão. Não sabia o que esperar de um inverno rigoroso.

No quarto, prostrada em frente à penteadeira, Aqua fitava a si mesma com olhos vazios e desanimados. Sua íris podia queimar azul, mas não conseguia disfarçar a tristeza e o aborrecimento. Quando se sentava na penteadeira e se tocava, fossem nos fios azuis que caiam em borbotões ou no próprio ferimento do pescoço, sentia as lágrimas chegarem no mesmo instante, pois sempre chegava a mesma conclusão: estou pior que ontem, percebia, e assim será até o meu último dia na Terra.

Embora tentasse se distrair com o dançar do fogo na vela de sebo, seus olhos sempre repousavam na carta com a cera quebrada deixada no canto da penteadeira. "Estou esperando-a. Venha depressa". Se possuísse coragem, já teria respondido a Caeli algo como: "Deixe-me morrer" ou "Me esqueça que será o melhor para você". Porém o tempo das mentiras tinha passado havia muito, e ela sabia no fundo do peito que precisava da irmã mais do que qualquer coisa nesse mundo.

Perspectiva de contemplar mais um doce verão? Não a tinha. Desde que a mancha arroxeada em seu pescoço apareceu, nunca houve uma melhora perceptível. Com o tempo vieram as dores de cabeça, cada vez mais frequentes, e depois as tonturas e alucinações. Os devaneios ainda não eram muito expressivos, mas vez por outra aconteciam. E eu não vou cair. O mundo inteiro precisa de mim. Da água. Eu não vou cair.

Talvez esse fosse o único motivo pelo qual se continha em atirar-se janela afora e dar de encontro a uma rocha. Era fato que o mundo tinha perdido seu pai uma vez enforcado em uma árvore, então suicídio estava em seu sangue. Mas era demais para ela pensar nisso. Ninguém sabia o que poderia acontecer caso um novo deus morresse.

"Um deus que se ajoelha perante o fim é um deus que não consegue sustentar seus embargos", dissera seu pai para os filhos, e mesmo assim suicidara-se "o peso do dever é de vocês e de mais ninguém". Era por isso a apreensão. O Grande Deus tinha deixado seus herdeiros. Aqua não possuía nenhum. O que seria o mundo sem ela?

Os pensamentos foram arrancados de si quando Dalla entrou em silêncio no aposento.

— Majestade? — ela disse — Trouxe comida.

A menina era uma sombra sob a soleira da porta, quase um fantasma em ossos e carne. Os cabelos dourados caíam em caracóis pelos seus ombros. A face permanecia perdida em vultos disformes, como um espectro vazio e indefinível.

— Deixe sobre a mesa, por favor. Mais tarde...

— Mais tarde, Vossa Graça? Já se passou a hora do ocaso, e se arrastamos noite adentro. Tem de comer alguma coisa, sabe bem. A viagem de amanhã será longa e cansativa — ela sacudiu a bandeja prateada que trazia nas mãos. Um vapor subiu da comida. — Veja, os pães ainda estão quentes, e a manteiga foi feita pela esposa de Rotty. Os mais fofoqueiros dizem que ela odeia uma desfeita.

— Oh! — sorriu um sorriso resignado — Não quero aborrecer a família do nosso precioso ferreiro. Dê-me aqui, Dalla. Mas fique comigo. O pão sempre é mais saboroso quando é compartilhado.

Dalla era uma companheira que toda e qualquer mulher poderia querer. De sorrisos fáceis, gestos delicados e coração quente, estava sempre disponível para Aqua em toda e qualquer necessidade. E tinha lindos olhos, lindos cabelos, uma linda cintura...

— Vossa Santidade? — disse de repente a garota. Aqua acordou de um transe demorado. — Há algum problema?

Uma infinidade de problemas, quis dizer. Dalla também partiria consigo para Ponta do Céu, embora Aqua ainda tivesse receio em mergulhar a garota no meio da confusão que era um grande castelo. Ignis trará sua comitiva, certamente. Lignum também arrastará seus exércitos para perto. Intrigas seriam inevitáveis, temia. Só esperava que nada acabasse em sangue.

— Absolutamente nenhum — mentiu ela. — Coma, minha querida companheira. Não sabemos quando poderemos contemplar a manteiga da mulher de Rotty novamente.

E as duas, juntas, partiram o pão — que estava realmente quente — e experimentaram a manteiga — que estava extremamente deliciosa.

Um espasmo de dor percorreu seu pescoço quando terminou.

— MAJESTADE?! — gritou a menina dos cabelos dourados, saltando da poltrona desesperadamente, uma fera atiçada com fogo. Como cetim deslizando sobre a pele, também Aqua derreteu-se de sua cadeira e foi parar no chão, levando um duro golpe do piso. Soltou um lamurio de dor, posicionando ambas as mãos no pescoço. Era como se uma adaga fosse cravada ali e torcida e retorcida, até que não suportasse mais nada.

— SOCORRO! — bradou Dalla, enquanto Aqua encolhia-se como um feto e debatia braços e pernas — SOCORRO! SUA MAJESTADE! SOCORRO!

Desmaiou.

Quando abriu os olhos, metade do castelo surgiu para acudi-la.

Tarbert, o ancião do templo, estava sobre si, fitando-a com aqueles olhos tortos característicos. Pedia para que os outros não se aproximassem. Aqua ergueu a cabeça, percebendo a infinidade de pessoas dentro de seu próprio aposento. Os homens seguravam candelabros e velas nas mãos, as mulheres agarravam suas crianças no colo. Sem exceção nenhuma, todos estavam espantados. Alguns choravam.

— Sua mão, por favor — clamou ela, agarrando a pele enrugada do velho. Depois de recompor-se, sentou na cama.

— Essa viagem é uma loucura — ouviu um homem murmurar no meio das outras vozes.

— Sua Graça não está bem — uma mulher observou, alarmada.

— Ela vai morrer? — segredou uma criança à mãe, que respondeu-a em desaprovação.

Preciso ser forte. Ainda tonta, levantou-se.

— Senhores, senhoras — proclamou, as palavras arranhando a garganta. Sentiu um rubor lhe queimar as bochechas azuis — Tenham calma. Foi apenas uma leve tontura.

Dalla já estava ao seu lado, chorando as mais singelas lágrimas como uma viúva em seu luto.

— Você não pode partir, Majestade! Está muito fraca! Não pode!

— Uma deusa faz o que deve, não o que pode — respondeu-lhe tristemente — Agora que toda essa confusão passou, peço aos senhores que retornem aos seus quartos. Alguns de vocês terão uma longa viagem para ser feita amanhã. Precisam estar descansados.

Antes que o povo fosse embora, cada um deles enfileirou-se e beijou a mão da deusa, desejando-lhe uma boa noite. Dalla foi a última a ir embora.

— Tem certeza que prefere ficar sozinha, Majestade? — perguntou timidamente — Eu poderia lhe fazer companhia, se quisesse.

Ela é tão inocente... Era inegável — e Aqua percebia — que Dalla tinha algum apreço muito diferente por ela. O modo como lavava-a nos banhos, as caricias, os sorrisos quentes e os olhares penetrantes e infindáveis... Seria errado alguém amar outro ser que não podia ser amado?

— Preciso pensar, querida. Peço que desta vez me deixe.

— Como quiser, Vossa Graça — disse ela, arrastando os pés para a porta. Antes que saísse, entretanto, voltou os olhos para Aqua novamente e sibilou: — Eu a amo.

Como reagiria ante aquilo?

— E eu também — Mas não do mesmo jeito.

Quando ela se foi, Aqua dirigiu-se à janela para aspirar os bons humores da noite e compreender o que seria dela depois de hoje.

Em breve estaria frente a frente com Ignis, e ele presumivelmente quereria colher uma respostas dela. Devo pedir desculpas? Nunca teve a oportunidade de conversar com o irmão depois do acontecido na Floresta Densa. O que diria a Lignum? Que tinha mudado, que agora era outra pessoa e não levava as mágoas na memória? Como se mostraria digna de receber o apoio dos seus irmãos para vender seus soldados àquela odiosa alma escura?

Enfrentar seu próprio passado era a coisa que Aqua mais temia no mundo.

Um pássaro emergiu da noite crocitando, as grandes asas pintadas de preto. Ele cortou o ar em rodopios, subindo e subindo, grandes braços penados que se contorciam. Depois empoleirou-se em uma haste da parede externa do castelo e fitou Aqua avidamente, como se ela fosse um objeto brilhante e ele uma criatura alucinada pela luz. Jurou que seus olhos eram púrpuros, mas já era tarde demais para observá-los; ele já alçara voo e partira novamente.

Sozinha em seu quarto, Aqua fechou as persianas da janela e depois as cortinas, debruçando-se em seguida na cama. O grande candelabro com as velas de sebo ainda queimava no bidê de madeira esculpido em Hibersoliort. Inclinou-se até ele, assoprando os dedos de fogo e fumaça. Depois das velas apagadas, entregou-se às trevas.

O sonho a raptou velozmente. Era um sonho antigo, um sonho de morte, um sonho de fogo e o sonho dos sonhos. Era seu pesadelo em lembranças, sua memória em amargo presente.

Os flocos caíam incessantemente naquela tarde de inverno. Dez palmos à frente, a menina Aqua delimitou a silhueta de um rapazote sendo morto a machadadas. Mas não importava. Cadáveres estendiam-se no chão salpicados pelas pequenas estrelas de gelo, sangrando como porcos em um matadouro. Mas não importava.

O que importava era Ignis, o irmão que viera para dançar. Trazia o calor consigo, espantando o frio do ar. Sua espada queimava, tão vermelha que cegava. Aqua brandia também a sua, azul da cor do mar, longa e afiada.

Ao invés da verdade, bebeu mentiras.

Não fora ela quem cortara o braço do irmão, mas sim ele que cortara o dela. Primeiro o direito e depois o esquerdo, e logo após um longo golpe em sua cabeça. O seu sangue derramou-se pelo chão, fumegante no frio. Ignis inclinara-se para ela, juntando sua cabeça caída e murmurando: "Perdoe-me, irmã. Perdoe-me, irmã". E Aqua respondia-lhe, com os lábios de morta que tinha: "De que adiantará o perdão? Não voltarei a ter minha cabeça novamente".

Quando Ignis chutou-a para longe, um corvo pousou em seus cabelos azuis ensanguentados e começou a bicar os seus olhos. "Vingança" ele crocitava, enquanto comia também sua orelha e seu pescoço. "Morte! Morte!".

O corvo desapareceu em uma névoa funesta, como também o sonho. Acordou com o coração na garganta.

O oceano sangrava em tons de vermelho e escarlate, nuvens difusas soprando para o continente. Era a chuva que vinha. Aqua esticou os braços e limpou a testa, sentindo como estava suada. O corpo todo tremia. Se era a doença ou o sonho, morto na noite, nunca saberia.

No romper da aurora, Dalla lhe trouxe uma sopa de amêndoas e duas fatias de pão, também avisando que a água já estava quente para o banho. A deusa agradeceu amavelmente e a menina se retirou.

Mesmo a portas trancadas, Aqua podia ouvir o alarde do castelo lá fora. Quando ela assumiu o controle do Templo da Água — três séculos atrás — encontrou um lugar com centenas e mais centenas de quartos. Sua comitiva contava com trinta pessoas, mas o pequeno vilarejo que se formara ao redor do templo era muito mais numeroso. O castelo permaneceu vazio por muitos e muitos anos. Até que Aqua voltou da guerra.

Com o coração partido e seus sentimentos mudados de forma inimaginável, a deusa da água admitiu em seu templo muitas e muitas famílias que moravam na cidade que se estabelecia ao redor dele, não fazendo distinção entre ricos e pobres. Desde aquele dia, o lugar pareceu muito mais animado e próspero. A tradição foi perpetuando, enquanto famílias vinham e iam. Os vínculos entre eles e a deusa se tornaram fortes e incorruptíveis.

Depois de quebrar o jejum matinal, Aqua dirigiu-se para a sua banheira e, com a ajuda de suas companheiras, tomou um longo e demorado banho.

Provou o vestido azul-claro, amarrou uma larga e longa fita de cetim na cintura, penteou os cabelos molhados um pouco mais e vestiu as botas de pele. Perfumou-se, retirou a espada azul da parede, amarrou a bainha e guardou a arma na cintura. Se os boatos fossem verdade, os ataques dos Homens Livres andavam mais constantes nesse fim de verão, e ela não poderia ousar sair desarmada. Mesmo que a espada lhe trouxesse más lembranças, fora o último presente que recebera de seu pai antes dele suicidar-se.

Era hora de dizer adeus.

Olhou a grande janela que dava vista para o mar, as velas que tinham derretido noite passada, sua cama, o armário, a penteadeira e o velho bidê de Hibersoliort. Caminhou para o peitoril da janela, fitando as grandes ondas que iam e vinham no doce vento da manhã. Elas rugiam em um sinal de socorro, comendo rochedos com suas espumas brancas: não vá, podia ouvi-las murmurar, agitadas, um alerta mudo, enquanto corriam pelo espelho d'água. Talvez nunca mais veja esse lugar.

Virou-se e correu em passos apressados para a porta, como se a pressa pudesse fazer esquecê-la da saudade. Perguntava-se se em algum momento da vida voltaria os olhos para aquela linda vista da janela de seu quarto. Suas pernas levaram-na agilmente para os degraus do castelo.

Aqua pode divisar a grande planície gramada que crescia aos seus olhos, a pequena cordilheira de montanhas cinzentas nascendo ao oeste e a cidade em tufos de fumaça ao noroeste. Dois mil e quinhentos Soldados Azuis formavam blocos compactos para a marcha, agitando as longas lanças para o ar. A maioria deles não entendia o porquê estavam sendo levados para um lugar onde não haveria guerra. Seu coração se quebrou em milhares de pedaços ao pensar naquilo.

A trilha de cabriolés e carroções estava formada, abrigando grandes caixotes de mantimentos coletados ao longo do verão nas Planícies do Outono. A estrada era uma fita amarronzada que se enrolava pela terra, e lá, muito longe, Aqua viu a vanguarda de quinze cavaleiros que levavam a heráldica da deusa sumir no horizonte. Das janelas do castelo, muitas mulheres e crianças acenavam para ela; Aqua fazia o melhor que podia para corresponder o cumprimento de despedida.

Encontrou seu cabriolé esperando na beirada das escadas. Era feito de madeira rica, pintado em azul e decorado com prata. Lá dentro o ar estava quente. Antes que pudesse fechar a porta, porém, Dalla apareceu atrás de si para também embarcar à viagem.

Uma leve chuva começou a cair, dando ao ar o cheiro inigualável de terra molhada. Um fraco raio brilhou em algum lugar. O dia estava nublado, triste e sem alma. Podia ouvir o mar quebrar nos rochedos, um som forte que jamais ouvira antes.

— Uma tempestade vem aí — anunciou Dalla, olhando de sobrolho pelas frestas da porta, lá fora.

— Ah, sim! Posso sentir — Aqua respondeu. E depois, quase como num sussurro, disse: — Isso pode ser nossa maior glória ou nossa maior tragédia. Oremos pelo melhor.

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