Capítulo 2 - Os Abutres de Ardens

AS MONÇÕES DA TARDE atingiram o Templo da Luz com ventos quentes e muitos grãos dourados.

Odeio a areia, decidiu Ignis, de súbito esquecido que morava, ele mesmo, dentro de um deserto. Que isso sirva para afogar Lignum no meio das dunas. O irmão tinha partido não muito tempo antes, escorraçado do seu castelo, por ter se demonstrado um vil traidor, uma criatura que servia à Caeli. Ele estava levando as notícias da guerra que viria, com certeza, mas de que importava? Já queria a batalha há muito tempo. Esperou, entretanto, os propósitos serem mais frutíferos para que toda a relé não pudesse acusá-lo de explosivo e criminoso, por mover mais uma vez uma guerra sem sentido. E Lignum, como era muito burro, tinha entregue as cartas do jogo em sua mão.

Em primeiro lugar, desacreditava veementemente do mito de deusa doente que Caeli e Aqua estavam pintando. Conhecia bem demais aquelas duas para simplesmente sorrir, apertar as mãos de Lignum e dizer: "Oh sim, meu querido, é claro que vou botar o rabo entre as pernas e correr pros braços da Caeli". Tinha uma certeza premonitória da falsidade daquela história, mas infelizmente Lignum estava cego demais para conseguiu enxergar o problema que Ignis enxergava. E vai pagar por isso com correntes nos pulsos, não duvido. Talvez até merecesse.

Sendo o primeiro dos filhos do Grande Deus, tinha com toda certeza mais maturidade e rigidez do que seus irmãos, feitos de material frouxo. Era o melhor dos cinco. Só isso já gerava uma enorme justificativa para declarar a guerra em busca dos seus territórios usurpados, mas o povo não se contentava nunca. Precisava muito que eles entendessem suas motivações para que não o chamassem novamente de monstro. Conquistou grandes vitórias e travou batalhas legendárias, como na vez que dominou a Foz do Dormente por dois meses inteiros, gerindo o regime fluvial do mundo à sua vontade. E mais! Se Caeli não tivesse sido rasteira e o espantado para a floresta, teria governado ali por muito mais tempo.

Só que o povo tinha esquecido grande parte desses méritos, pensava Ignis, e por isso seu respeito deveria ter diminuído dentre a ralé esfomeada. Mostraria, então, não só a Caeli, mas a todo o mundo que podia vencer Ponta do Céu e ser o líder do Oeste e do Sul. Vingaria seu braço perdido e desmentiria a farsa de Aqua, e de quebra poderia conquistar uma coroa de louros e um cetro de campeão, e ser louvado pelos homens como o deus que salvou-os das garras de Caeli, a maligna deusa dos ventos.

Não seja tão presunçoso, pedia a sua consciência, você já viu os pés de Ponta do Céu uma vez. Você já sucumbiu aos pés do Monte do Céu uma vez. Saiba que pode perder novamente.

Um assunto ainda precisava ser visto antes dele partir. Já tinha resolvido com Comn Edgar os preparativos para a marcha, mas a liderança do Templo da Luz ainda era uma névoa em sua mente. Ele não possuía nenhum filho legítimo que pudesse assumir o trono em sua ausência (pois, naturalmente, era proibido de ter uma esposa) e os alto-embaixadores da Corte eram fanfarrões que valorizavam apenas seus umbigos e seus turbantes. A grande comitiva de soldados marcharia com ele para Ponta do Céu, incluindo todos os seus comandantes. Não havia nome ideal. Somente ele era suficiente. Somente ele era capaz.

Mesmo assim, não havia dúvidas de que a Corte lançaria suas propostas. As notícias da expulsão Lignum espalharam-se como pólen ao vento, e não tardou para que a convocatória dos nobres de Ardens chegasse: eles requisitavam, urgentemente, uma reunião-mestre.

E lá ia Ignis, cansado, arrastando-se à sala dos nobres.

A Sala de Conferências tinha um esplendor sem igual, Ignis admitia. Era toda adornada de villaumites, a pedra preciosa que a Lume extraía das jazidas quentes de Ardens, e decorada do chão às paredes com tapetes e rendas carmins. À porta de entrada, duas estátuas feitas de rubi estavam de sentinela, ambas moldadas para parecerem uma chama viva. Estandartes de fogo se agarravam ao teto, flamulando, austeros como o deus. No centro da sala havia uma mesa esculpida em tronco de ébano, uma madeira da cor do carvão, e, ao seu redor, estavam cadeiras de igual material. Eram nelas que os alto-embaixadores se sentavam.

Presto levantou de chofre, e, doce como o mel, derreteu-se em sua frente. Vai me bajular até eu implorar que pare, pensou Ignis consigo mesmo. Pai, que tortura é essa que me obriga a suportar?

— Vossa Graça! — cumprimentou ele, estendendo a mão — Deixe que eu o acompanhe até a mesa. Os tempos são tão difíceis quanto o deserto. Oh, pelos ossos do Grande Deus, como são difíceis!

Ignis estapeou sua mão com um empurrão.

— Obrigado, senhor, mas o que perdi foi um braço, não uma perna — e levantou a mão para provar que era verdade — Posso chegar até meu assento sozinho.

Presto fez uma reverência envergonhada e enrubesceu.

— Majestade — saudou Ste, sem olhá-lo — Já estamos à par das afrontas que o Senhor Lignum disparou contra você. Uma língua cheia de notícias falsas, hãn?

Era impressionante o modo como todos já sabiam de tudo sem Ignis ter dito uma única palavra.

— Falsas deveras — endossou Pherbard com não mais que uma sombra de sorriso na face — Mas a mentira vale tanto assim? Não quero importuná-lo com minha tagarelice diária, Senhor Ignis, mas preciso admitir que foi totalmente equivocado. Ameaçou matar seu irmão, o que, aos olhos de Deus, é um crime inescrupuloso, não só por ser seu sangue, mas por ser o filho do Grande...

— Está com o Livro Sagrado escondido aí no meio das pernas, sacerdote? — debochou Ignis, cortando-o — Quer ler um versículo pra mim?

Pherbard gargalhou de verdade.

— Só quis dizer que Vossa Graça pode estar colocando em risco tudo o que tentou reconstruir por vinte e oito anos. A Lume não ficará satisfeita, ah não. Batalhas e mortes só servem para gerar crise, e o comércio de diamantes já não vai lá muito bem. E a população... não consigo imaginar como vai evitar uma nova rebelião.

Ignis socou a mesa.

— E quer que eu faça o quê? — rosnou o deus — Dar as mãos a Caeli e pedir perdão enquanto canto uma ciranda? É a minha chance de vingança, e não é a sua língua afiada que me fará mudar de ideia. Vou marchar à guerra.

Pherbard rolou os olhos.

— E não pensa em reconsiderar? Se não aceita conselhos da Corte, pra que é que estamos aqui?

— Andei me perguntando isso diversas vezes — retribuiu Ignis com ironia — Não é engraçado eu não ter encontrado resposta?

Ste rouquejou baixinho.

— Conversava à tardinha com Presto sobre isso hoje mesmo — disse ele, afagando a longa barba oleada — A guerra é inevitável, bem temíamos. Não somos nós que nos colocaremos entre você e a sua vingança, Vossa Graça. Saiba que da minha parte tem total apoio na empreitada.

Que belo apoio, pensou Ignis com amargura.

— Não posso imaginar o motivo que convocaram essa reunião, senhores — disse Ignis, com a conotação de quem definitivamente sabia de tudo — Querem me contar?

Eles falaram todos juntos. O deus do fogo não se surpreendeu com os seus pedidos. Já esperava que os parasitas iriam querer o trono enquanto ele estivesse fora. Dê a coroa a um deles, pensava Ignis, e terá que arrancá-la com a espada. Quando homens transcendiam ao poder, suas mentes nunca desejavam voltar atrás.

Um silêncio se alastrou pela mesa. A Corte esperava a reação do deus com grande expectativa, temendo-o como a sombra da morte. Podem esperar, disse ele para si mesmo, e então riu, podem esperar que ela virá.

— O que é tão engraçado? — perguntou de repente Pherbard, encarando-o.

— Apenas lembrei duma piada divertida, mas vocês não entenderiam — falou Ignis — Querem meu trono, é isso? E juram cuidar dele enquanto eu estiver fora e devolvê-lo a mim quando a guerra for ganha?

Os três nobres assentiram com a cabeça. Tolos, divertiu-se Ignis, acham que sentarão no meu trono só com um aceno?

— Terei que deitar sobre o assunto, senhores — disse Ignis em uma calmaria cínica — A tarde foi cansativa. Não posso escolher um de vocês assim, rapidamente.

Os olhos dos nobres brilharam de ganância, e os três começaram a discutir sobre porque eram melhores que os outros dois para assumirem o controle.

Ignis estava cansado deles. E o mundo também está, não? De repente, uma conclusão inesperada lhe assaltou à mente. Tinha encontrado o gambito perfeito, pensou, e por isso sorriu. No mesmo momento a Corte calou-se, como se o riso súbito gelasse suas gargantas. A decisão parecia tão lúcida e doce quanto o vinho que tomara a pouco.

— Qual o problema, senhores? — perguntou Ignis — Por que pararam sua discussão?

Ninguém lhe deu resposta.

— Muito bem — o deus continuou — A Corte está encerrada. Minha resposta virá... em breve. Tenham uma ótima noite de sono.

Por muito tempo todo o barulho que havia no mundo era feito por suas botas raspando no piso, tal qual uma espada afiada deslizando em uma pedra de amolar. Nenhum nobre cumprimentou-o quando virou as costas. Nenhum lhe disse qualquer coisa que fosse. Estavam todos os três parados, sentados nas cadeiras. À espera.

Ninguém, disse para si mesmo, ninguém consegue cuidar das minhas dominações como eu.

Abriu as portas da sala e depois ultrapassou-as. Comn Edgar surgiu inesperadamente ao seu lado.

O comandante dos exércitos não era mais que um garoto, um filho de um homem taquicárdico que morreu aos seus serviços alguns anos antes. Ele tinha mechas castanhas e olhos escuros como carvões, braços fortes e ombros largos. A natureza não lhe dera barba nem bigode. Por mais jovem que fosse, Comn Edgar aprendeu muito com o pai as leis da guerra, e virou um cavaleiro e guarda de destreza incompreensível e esperteza mais incompreensível ainda. E era fiel. Sobretudo era fiel.

— Como é bom vê-lo, Comn — anunciou Ignis em um sussurro. — Estou cansado e preciso partir amanhã, mas a você ainda resta uma grande tarefa. Venha comigo.

O rapaz seguiu-o em absorto silêncio até seu quarto.

Quando o deus lhe contou o plano, Edgar esbugalhou os olhos.

— S-Senhor... M-Majestade... — gaguejou — Isso é...

— É...? — o deus do fogo gargalhou baixinho — É muito engraçado, Comn.

— Mas... m-mas, Vossa Graça... A Corte... Ela... Ela é...

— Ela é um ninho de víboras, um antro de lambe-botas. Não fará falta nenhuma. A Lume que reclame e enfie seus diamantes preciosos onde quiser. Quero aqueles homens insuportáveis alimentando Ardens, Comn. Você tem até a manhã para realizar a tarefa.

O garoto abriu e fechou a boca, mas não disse nada. A testa franzina mostrava assombro, susto, desconfiança amarga. Era uma boa oportunidade para testar o estômago do rapaz, concluiu Ignis, e ver até onde ele poderia chegar. O comandante inclinou a cabeça em uma reverência e correu do quarto às pressas para cumprir o seu dever.

Ignis fechou a porta do quarto e se despiu.

Os músculos relaxaram, aliviados, quando o deus largou a placa de peito para longe. Sulcos dolorosos marcavam seu peitoril onde o ferro tinha estado. Com tantos homens escorregadios a sua volta, a precaução nunca era desnecessária. A cicatriz onde outrora havia um braço começou a formigar, lembrando-o que era um deus, mas mortal. Por vezes imaginava-se abrindo e fechando os dedos da mão perdida, como se eles ainda estivessem lá e pudessem ser usados.

O deus do fogo ficou nu como no dia que nascera, e assim mergulhou profundamente na cama de couro negro. Ela era gelada ao toque, mas uma benção àquele ser cheio de calor. Da janela aberta vinha a luz da abóbada celeste, decorada com brilhantes estrelas. Enquanto o céu abria os olhos cheios de luz, Ignis fechava os dele.

Levantou aos saltos de uma noite tempestuosa. Acordou suado, sem direção e tremendo. Por um momento, duvidou até mesmo que tinha dormido, mas os raios de sol invadiam o aposento sem nenhuma piedade. Um sonho, apenas. Um passado distante. Agora será diferente.

Quebrou o desjejum com romãs, pão e nozes, pondo tudo para baixo com um bom trago de vinho. Sobre seu solar, Ignis contemplou o nascer de um novo dia com a taça nas mãos. A cidade dourada empilhava-se debaixo da sua visão, mil casas amarelas se abraçando e se sobrepondo umas às outras. As ruas estavam lotadas, mesmo na Hora Laranja, mas o populacho era formado apenas por crianças, mulheres e inválidos. Os homens aptos e fortes foram convocados há uma quinzena para se apresentarem no exército, compondo as fileiras dos Vermelhos. Fazia sete dia que acampavam do lado externo, nos abrigos ao pé das muralhas.

Ignis podia ouvir dali as pragas das pessoas quando uma mula quebrou a perna nas pedras e fez tombar uma carroça cheia de caquis. As crianças foram as que agiram primeiro: calças, camisetas e braços ficaram cheios de frutas, enquanto o senhor mercador abanava desesperadamente as mãos e gritava pelos guardas da cidade. Uma liteira que conduzia um nobre pela Rua da Brasa teve que parar e esperar que a confusão fosse contida.

Do outro lado da cidade os sinos dobravam, o templo dos deuses chamando seus fiéis para as orações do dia (e para os subornos tradicionais). Talvez esse fosse o único motivo pelo qual as rezas ainda persistiam; Ignis não era nem um pouco adorado por seu povo, e não fazia questão nenhuma de ser. Os homens o temiam e o respeitavam, e precisava continuar com isso para sempre se quisesse exercer o controle.

O deus do fogo vestiu sua armadura reluzente e prendeu a espada vermelha na cinta ao redor da cintura. Antes de sair, deu uma longa e última espiada nos seus aposentos; algo dizia a ele que não os veria por muito tempo.

Edgar estava encostado em uma parede dos corredores quando Ignis o alcançou, ronronando qualquer coisa. Esfregando os olhos, de pálpebras pesadas, o rapaz endireitou a postura e fitou o deus com uma face frívola e triste.

O deus do fogo perguntou se o seu pedido fora realizado.

— Mortos — confirmou o comandante, e neste momento seu olhar perdeu-se em algum lugar, distraído pelos pensamentos — Todos os três.

— Me orgulha, Comn — falou Ignis, dando um tapinha em suas costas — Os corpos...

— No deserto, Vossa Graça — respondeu o garoto, torcendo a boca — Como ordenou.

— Ótimo — disse Ignis, já sorrindo — Ardens cuidará deles. O deserto tem fome, Comn.

Edgar não parecia feliz. Um garoto imberbe, ainda. A convivência comigo endurecerá seu coração para o sangue e a morte. A guerra era assim, afinal. Se ele não se banhasse com sangue, como aprenderia o que era a morte?

— Preciso de outro favor, Comn.

O rapaz olhou-o, semblante franzido, como se desconfiasse do novo pedido, como se temesse outro assassinato.

— Sim, Majestade?

— Reúna seus homens e expulse todos de dentro do castelo. Verifique os quartos, os corredores e debaixo das camas. Eles são ratinhos que se escondem com facilidade.

Edgar baixou os ombros e ergueu as sobrancelhas, assustado.

— E o que fazemos com eles, Vossa Graça?

Não, Comn, não tema. Estes eu não vou picar em pedaços.

— Diga a eles que o tempo de serviços acabou, que podem ir vender frutas, lavar cavalos ou seja lá o que fazem. Se resistirem, expulse-os. Ninguém deve restar aqui dentro.

E foi o que Comn Edgar fez. Na metade da manhã todos eles tinham sido largados para fora do castelo, alguns puxados pelos cabelos e outros escorraçados com chutes de botas de couro pelos oficiais. A maioria não apresentou resistência, mas mesmo assim murmurou reclamações, tendo que largar todos os pertences que agarrava nos braços, fossem eles joias, taças ou moedas. Tudo ficou dentro do Templo da Luz.

Na escadaria branca à frente do palácio, rebrilhando à luz solar, milhares de moribundos reuniram-se para acompanhar a partida do deus. Ignis não discursou, não acenou e sequer sorriu. Apenas ordenou que seus guardas trancassem todas as portas e janelas.

A última delas foi a grande porta de ferro amassado, a porta que dava acesso aos corredores e à Sala do Trono. O deus deu uma atenção especial a ela. Colocou sua única mão entre as chapas metálicas e fechou os olhos. As portas, então, fundiram-se umas às outras, soldando a fresta que antes as abria.

Foi daquele modo que Ignis deixou seu povo no Templo da Luz. Os que moravam dentro do castelo, escorraçados no chão das ruas; os miseráveis a gritarem "pão", "pão", "pão" e os nobres em suas lápides murmurantes.

Uma sombra percorreu o rosto de Ignis, e quando ele olhou para cima ali estavam eles: um bando de abutres voando em círculos pelo céu. Ignis deu uma gargalhada monstruosa que petrificou os homens à sua volta. Ardens cobra seu preço, caros nobres, pensou consigo mesmo, abutres comem abutres, serpentes comem serpentes, e eu piso sobre todos eles.

Como adorava ser poderoso!

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