Capítulo 9 - Parte 1
Sobrevivemos
Só tive tempo de proteger a cabeça com os braços. O estrondo foi ensurdecedor. Estilhaços de vidro caíram por todos os cantos. Parecia uma chuva cortante. Litros de água escorreram como um tsunami. As águas-vivas praticamente cobriram o chão.
Umas dez delas grudaram em meu braço e me sacudi nervosa para ficar livre daquele toque pegajoso.
As pessoas correram, se empurraram, gritaram. Foi horrível. O caos estava instalado.
Antes que eu pudesse assimilar o pânico, o homem misterioso me pegou no colo e nos tirou dali com dificuldade por ter que desviar da multidão assustada.
Saímos do sufoco mas eu ainda ouvia os gritos ao longe, os funcionários do aquário pediam calma aos turistas. Eles corriam, choravam, berravam. Foi quando notei as queimaduras e os cortes. Mulheres, homens, crianças. Todos cheios de marcas vermelhas pela pele. Sangue escorrendo pelos rostos, pescoços...
Meu estômago deu um salto desagradável.
Estiquei o próprio braço a frente e não entendi como saí intacta.
O homem misterioso apertou o passo e me colocou no chão quando chegamos na varanda. Ele manteve os braços em mim, as mãos quentes repousadas em minha cintura. Como sempre, seu toque e seu perfume ameaçavam expulsar meu raciocínio para longe.
Respirei fundo ao sentir a brisa gelada do oceano na pele. Havia uma paz errada ali ao lado de fora. Contrastava brutalmente com o caos. As imagens de queimaduras invadiram outra vez meus pensamentos. Estremeci.
Quando notei que era capaz de falar novamente, perguntei a ele:
- Por que não estou queimada, nem cortada? Foi você não foi?
Ele ergueu o rosto coberto pelo capuz e alisou minha pele com a ponta dos dedos, como se procurasse por feridas. Parecia tenso.
Ali, a luz do dia, tive esperança de conseguir ver mais de suas feições. Só constatei o mesmo de antes. A boca convidativa. A pele branca e sedosa. Os cabelos negros.
Notando que era observado, ele cobriu os olhos rapidamente por óculos escuros, e apoiou os cotovelos na bancada dando as costas para mim. Bufei por ter sido completamente ignorada.
- Quem era a mulher que explodiu o aquário? E o homem que me empurrou da árvore solitária? Responda, eu sei que aquilo foi real. Não tente me convencer de que estou mesclando sonho e realidade!
Pude ver as costas dele subirem e descerem com a respiração pesada. Mas ele continuou em silêncio. Apenas as ondas quebrando emitiam algum som.
E eu ficava cada vez mais irritada. Até quando ele iria aparecer sem convite e sumiria sem deixar explicações?
- Pelo visto, não vai me responder, não é?
Girei sob os calcanhares, não ficaria ali insistindo por respostas que obviamente não teria. E meus pais deviam estar absurdamente preocupados.
Dei um passo para ir embora e ele segurou meu pulso. A familiar sensação morna se concentrou onde ele tocou:
- Fique longe de mim. Esqueça que me viu.
Sem nenhum motivo plausível, as palavras dele me magoaram.
É isso. Estou louca. Fico cobrando respostas de um estranho invisível que me salva do perigo.
Sacudi a cabeça e sai apressada. Antes de abrir a porta de vidro, arrisquei espiar por sobre os ombros. Ele havia desaparecido.
Procurei meus pais e Raquel por todos os lados no meio da confusão. O caos estava ainda pior, quando resolvi sair do aquário para tentar encontrá-los na entrada.
Sirenes de ambulância, uma emissora local de televisão, dezenas de pessoas enroladas em cobertores. Gritos, lágrimas, sangue. Era demais. Eu precisava sair dali antes que sufocasse. Só naquele minuto me dei conta: minhas roupas continuavam perfeitamente secas, o que seria fisicamente impossível.
Claro que foi ele quem fez isso.
E mais uma vez, eu não sabia como.
- Liza, Liza!
Olhei para trás e minha mãe veio correndo para cima de mim. Recebi um abraço apertado dela, seguido de um de estalar os ossos, do meu pai:
- Você está bem, filha? Ficamos tão preocupados.
- Estou pai. Err... eu estava olhando os pinguins quando aconteceu.
- Vamos embora, acho que já tivemos bastante aventura por hoje. Hora de continuar com a viagem.
Minha mãe anunciou e seguimos para o carro. Não entendi porque Raquel parecia contrariada:
- Essa viagem está um saco, vocês dois parecem o tempos todo assustados com alguma coisa.
Ninguém respondeu ou falou mais nada no trajeto de volta ao hotel. Mas ela tinha razão. Desde a Golden Gate em São Francisco eu sentia os dois tensos. Como se esperassem um desastre a qualquer momento. Estacionamos no hotel e enquanto eles faziam o check out na recepção, fui no restaurante comer alguma coisa. Talvez se eu enchesse o estômago, teria outra distração para me ocupar além dos pensamentos macabros.
Sentei na mesa e mastiguei o muffin como se fosse papel. Definitivamente havia algo muito errado em todos esses acontecimentos. Uma presença me perseguindo. Colocando todos ao meu redor em perigo. E eu não podia pedir ajuda. Muito menos contar a qualquer um. Meus pais me internariam. Raquel riria da minha cara. Será que Ben e Amanda acreditariam? Amanda, com certeza. Mas de que adiantaria? Talvez só a colocasse mais em risco.
Pedi uma caneta emprestada ao garçom e comecei a rabiscar no guardanapo. De repente se eu listasse os fatos, chegaria a alguma conclusão, alguma saída. Tinha que ter. Eu não podia ficar parada esperando. Ficava cada vez pior. E se alguém morresse? Por minha causa? Meus pais, Raquel, ou um inocente que desse o azar de ficar perto de mim? Pensar nisso me causou calafrios. Inspirei e soltei o ar com força para desacelerar os batimentos cardíacos.
Pensei em pedir para desistirmos da viagem. Pensei em fugir de todos até tudo se acalmar. Assim, eu poderia salvá-los de mim, da presença macabra que eu atraía. Mas ao mesmo tempo, tive que admitir que começava a morrer de medo de ficar sozinha.
Um garçom derrubou um prato no chão e quase dei um pulo da cadeira. A pressão da máquina de expresso atrás do balcão me deixou nervosa. Se a cafeteira explodisse, as pessoas ali teriam sérias queimaduras.
Para Liza. Não vai acontecer nada.
Voltei a atenção para o guardanapo e iniciei a listagem:
“16 anos: quase acidente de carro, agi sem pensar, não recordo de como fui parar na avenida. Fui salva pela presença quente, do perfume intoxicante.
17 anos: meu par da festa de formatura agiu como se estivesse possuído e tentou me obrigar a tomar a bebida na sala de aula...”
Cocei a cabeça frustrada. Isso não adiantaria nada. Larguei a caneta ao ouvir duas vozes familiares atrás de mim. Olhei de esguelha para trás e agradeci silenciosamente pela pilastra me escondendo. Meus pais soavam nervosos:
- Como não ficar preocupado Marie? Temos duas filhas menores de idade.
- Uma delas, infelizmente fará 21 anos Paul. E você sabe o que isso significa. Sabe que isso pode ser muito pior.
- Eu acho que podemos estar fazendo tudo errado. Talvez devêssemos arrumar uma desculpa e cancelar essa viagem.
- Não Paul, por favor. Por Liza.
- Você leu, não leu Marie? O que o jornal dizia sobre a flor de pétalas negras?
- Li. Mas essa pode ser a nossa última chance.
- Então que Deus nos ajude - ouvi o suspiro de meu pai. - Já terminei o café, vamos.
Ouvi um arrastar de cadeiras e levei as mãos ao peito.
Eles sabiam! Sabiam de alguma coisa e não me diziam. Arregalei os olhos, a passagem de ar para os pulmões parecia bloqueada. O que poderia haver de errado comigo, para meus pais falarem dessa maneira?
Encostei a testa na mesa e contei até cem para afastar o terror. Eu daria um jeito de descobrir o que os dois planejavam antes de chegarmos a Los Angeles.
Ergui a cabeça um pouco mais calma e quase gritei com o que me aguardava sobre a mesa. Uma flor de pétalas negras, envolta em um laço de cetim vermelho. Quando olhei o guardanapo, senti o queixo cair.
Um arrepio gelado se instalou em minha nuca.
Segurei o papel com a lista que eu havia deixado pela metade, e meus dedos tremeram com as palavras escritas ali. Alguém completou a lista enquanto eu ouvia meus pais. E naquelas letras bem desenhadas, encontrei o meu destino macabro.
“18 anos: escapei da morte.
19 anos: tomei um banho de sangue.
20 anos: inocentes morreram graças ao acidente na piscina.
21 anos: o ano em que decidi matar a primeira vítima. Eu levantei da mesa da lanchonete do hotel e olhei para o homem atrás da pilastra. Peguei a faca esquecida sobre o balcão, e o segui...”
Agi exatamente como as palavras diziam. Não sei de onde veio aquela faca, mas a segurei.
Dobrei o guardanapo e o guardei no bolso do casaco junto da flor. Os pensamentos trabalhavam subitamente com um único objetivo. De repente, fui dominada pela obsessão. Uma voz permeava os cantos obscuros de minha mente. Dizia que era o certo a ser feito e meu corpo obedecia.
Essa noite, eu mataria o homem misterioso.
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Oi gente! Muito obrigada pelos comentários, o carinho de vocês me ajudou bastante a superar o bloqueio criativo. Decidi postar logo a primeira parte do capítulo pra não terem que esperar muito. =)
Não esqueçam da estrelinha e do comentário!
bjossss
ESTEJAM ATENTOS, PORQUE UMA SOMBRA PODE ESTAR EM QUALQUER LUGAR...
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