Capítulo 6

Gritamos, fugimos, dançamos

Olhei por sobre os ombros e o senhor sorria de um jeito alucinado. Fitei o banco do carro e a marcha. Nenhum objeto que eu pudesse usar ao meu favor.

Ele apertava meus pulsos para trás. Perfeitamente recuperado da asma forjada. Eu havia de fato caído em uma armadilha. Torci os braços tentando me livrar e senti algo ainda pior tocar minha pele. Meu perto disparou com força.

O senhor absurdamente forte para sua idade, passava algo entre meus pulsos e pela textura, deduzi que fosse uma corda.

- Me solta! Soco...

Ele cobriu minha boca com a mão.

- Shhh. Não adianta gritar. Você finalmente é minha.

A voz dele trouxe um calafrio doloroso que percorreu minha coluna. Senti o mesmomto que gelado de meus outros aniversários. Aquele pressentimento sufocante de que algo horrível estava prestes a acontecer.

Continuei lutando para me libertar mas ele era forte demais. Torci para que meus pais voltassem e me vissem ali, mas o Palace of fine arts poderia levar horas para ser percorrido. E meu celular estava no bolso da calça. Fora do meu alcance.

Ouvi o senhor abrir o porta luva e de relance o vi tirar um chumaço grande de algodão e uma embalagem de vidro. Ele abriu a tampa e mesmo a distância inalei um aroma forte. Eu não podia deixar ele encostar aquilo em mim. Poderia ser algum veneno ou uma substância para me apagar.

Minhas entranhas se reviraram. Com os pulsos amarrados eu não poderia fazer nada. Ele enterrou os dedos em minha nuca e me obrigou a erguer a cabeça com um puxão.

Girei o rosto para o lado e gritei. O algodão umedecido estava a centímetros de mim. Eu não podia inalar aquilo. Não podia.

De repente ouvi aquela voz. Perto. Bem perto. Como se falasse dentro dos meus pensamentos.

"Se entregue Liza. Você nasceu para ser minha."

Enfraqueci. Pontos escuros salpicaram minha visão. Minha cabeça parou de se mover. E esperou obediente pelo próximo movimento dele.

Ele pressionou o algodão sobre meu nariz, o resquício de consciência que havia em mim, fez o desespero nascer. Eu desmaiaria e acordaria sem a menor noção de onde estava, com quem estava ou o pior. O que ele faria comigo?

Tudo ficou escuro.

Não sei quanto tempo depois, abri os olhos. Com o corpo trêmulo de medo do que poderia encontrar. Mas a sensação que me inundava era de paz. Braços quentes me envolviam. Mãos suaves acariciavam meus pulsos antes presos pela corda.

Uma presença tão viva, foi como se eu estivesse aninhada em seu colo. Respirei um perfume masculino e reconheci o aroma. Olhei para cima completamente grogue. A vista embaçada me atrapalhava a identificar o rosto de quem me segurava. 

- Fique calma. Ele fugiu, e não vai tocar em um fio do seu cabelo. Eu prometo.

- Você? – arfei vergonhosamente. - É você?

Esfreguei o rosto mas não consegui vê-lo. Eu enxergava apenas um rosto desfocado, com uma forte luz branca por trás. Ele exalava algo morno para mim. Um toque protetor. E se não fosse efeito do que o senhor havia colocado no algodão, tive o vislumbre de um sorriso.

Ele passou o polegar por minha bochecha.

- Você está bem. Já vou te soltar. Só preciso que melhore um pouco.

Eu não queria que ele me soltasse. Minha lógica ignorava toda a estranheza da situação e desejava ficar ao lado dele. Não fazia o menor sentido. Se eu contasse a alguém que havia algo macabro atrás de mim e que havia ainda uma presença morna, que sempre me salvava, provavelmente seria internada em um hospício.

Pisquei com força. O rosto dele começava a ganhar nitidez. Cabelos negros. Pele branca. Mas óculos escuros escondiam os olhos. E o gorro apertado no rosto não me deixava ver suas feições.

Sem pensar no que fazia, ergui a mão para tocá-lo. Eu precisava senti-lo. Tirar aquele gorro e descobrir o rosto dele, dar forma ao homem que começava a invadir meus pensamentos e sonhos.

Ele segurou minha mão. Seu toque quente me atingiu como volts de eletricidade. Mas de um jeito prazeroso.

- Eu preciso ir. – Ele avisou.

Antes que eu pudesse protestar, ele desapareceu.

Ergui o tronco e fitei os cisnes no lago. Olhei para trás e vi uma silhueta atrás de uma coluna. Talvez fosse alucinação, talvez meu desejo de conhecê-lo me fizesse ver coisas mas não me importei. Tive um vislumbre de cabelos negros. Igual a todos as outras vezes. Mas dessa vez ele estava mais perto. Corri para alcançá-lo.

Cheguei a coluna e não havia absolutamente nada.

Eu não estou maluca.

- Liza, por que você esta correndo desse jeito? O papai e a mamãe estão no carro esperando a gente. Você não ouviu o papai buzinando?
- Não ouvi – respondi a Raquel.
Esfreguei os olhos e fiquei encarando a coluna.
Será que eu adormeci na grama e sonhei com isso tudo?
Raquel deu um tampinha no meu braço.
- Ei! Acorda!
Eu podia afirmar. Havia um homem ali. E foi ele quem me salvou daquele senhor.

Fitei a esquina onde quase fui sequestrada e fiquei enjoada ao ver que não havia carro nenhum.

Andei muda com Raquel até o carro de meus pais.

Eu sabia que meu aniversário de 21 anos traria coisas ruins. E pelo visto não poderia fazer nada para evitá-las.

- Gostou do passeio filha? Eu achei lindo!

- Adorei mãe. - Tentei imprimir um sorriso na voz enquanto sentava no banco de trás.

- Você sumiu. Acabamos não tirando nenhuma foto juntas.

- Na estrada a gente tira, mãe. Pra onde vamos agora? - Mudei de assunto antes que alguém notasse minha confusão mental.

- Monterey. Vamos pernoitar em um hotel e seguiremos de manhã depois de visitar o aquário.

Encostei a cabeça no vidro e comecei a reunir fragmentos dos últimos aniversários. Tinha que existir alguma lógica. Alguma explicação.

Mas os desastres aconteciam de forma totalmente diferentes. O de dezesseis anos, por exemplo um acidente de carro, uma semana depois do dia do meu aniversário. O de dezessete, foi no meu baile de formatura da escola.

A noite com que toda garota sonha. Mas a minha, por pouco não foi transformada em pesadelo.

****

Amanda vasculhava empolgadíssima meu armário, quando eu disse a ela que estava desanimada. Na verdade, eu sentia medo da noite, porque um sopro gelado pairava no meu quarto. E eu sabia muito bem o que aquilo significava.

Amanda jogou o terceiro vestido em cima de mim:

-        E esse? Anda Liza! Você precisa escolher alguma roupa!

-        Tem certeza que eu preciso ir nesse baile?

-        Pirou? Hoje é nossa formatura e seu aniversário! Quem me dera ter a sorte de comemorar as duas coisas juntas.

-        Grande coisa Amanda. Você sabe que eu não ligo muito para festas.

-        Liza, nem começa. O Ben está vindo de Winterhill só para esse baile. Ele vai te matar se você não for.

Suspirei desanimada. Ela tinha razão. Escolhi o vestido vinho tomara que caia com comprimento até os joelhos. Amanda retocava a maquiagem no espelho enquanto eu me vestia em câmera lenta.

-        Anda Liza/Lesma. Desse jeito vamos chegar atrasadas.

-        Seu par pelo menos é o Ben. E o meu? O Joseph nem virá me buscar em casa porque o carro dele quebrou.

-        Você acha que eu prefiro ir com um amigo? Eu queria um gatinho. Mas entre os espinhentos da nossa turma e Ben, eu fico com ele. Mesmo que essa noite não dê em nada.

-        Se quiser eu troco Amanda. Vai com o Joseph e eu fico com o Ben.

-        Nem pensar Liza. Você está há muito tempo encalhada.

Amanda sorriu. Franzi o cenho para ela. Aqueles cabelos loiros e olhos azuis angelicais não deixavam ninguém desconfiar de sua língua afiada. Ela piscou e abriu a porta.

Depois de me despedir de pais chorosos ao ver a filha formada, e de fugir da irmã mais nova que não aceitava o fato de não poder ir ao baile, saímos.

Ben nos esperava encostado no capô. Com o costumeiro sorriso largo de quem aprontou alguma, o corpo alto dentro de um terno impecável. O cabelo baixo e raspado arrumado com gel.

O acompanhante perfeito. Ele abraçou nós duas ao mesmo tempo:

-        Que saudade das minhas garotas! Até que enfim vão se livrar dessa escola e poderão morar comigo em Winterhill.

-        Você não contou pra ele, Liza?

-        Ainda não. Obrigada por estragar a surpresa Amanda.

-        O que foi que a miss responsabilidade aprontou? – Ben arqueou as sobrancelhas.

-        Consegui uma bolsa naquela faculdade de psicologia.

-        Parabéns garota! – ele me tirou do chão. – Mas seria muito mais divertido nós três morando juntos.

-        Você só quer morar com duas mulheres porque acha que vamos cuidar de tudo. – Amanda abriu a porta do carro e sentou no carona. – Pode tirar o cavalo da chuva. Não vou lavar nem uma roupa sua.

-        Por isso que eu gosto mais da Liza. Você é uma preguiçosa.

Ben piscou para mim e sentou no banco da frente. Amanda bufou e eu ri.

Entrei atrás e seguimos para a festa. A companhia dos dois de certa forma me deixava mais tranquila. Mas ainda assim eu continuava a espreita do desastre. Eu não sabia quando poderia acontecer. Ano passado, o acidente ocorreu seis dias depois. E se esse ano fosse diferente? E se houvesse algo macabro me aguardando no baile?

Joseph me esperava na porta. O terno parecia grande demais para o corpo dele, mas estava bonito. O cabelo loiro balançava com o vento. Ele sorriu, meio tímido, quando nos encontramos na porta do ginásio e me deu um beijo na bochecha.

Subitamente senti um toque morno em meus ombros. E pensei no vislumbre de cabelos negros do ano passado no hospital, quando acordei do acidente. Cheguei a procurar pelos lados. Joseph me ofereceu o braço e entramos na festa.

-        Que foi, Liza? – Amanda cochichou enquanto andávamos pelo salão.

-        Nada não.

Corri os olhos pelo salão. Bolas e flores brancas. Luzes de pista de dança. Uma faixa pendurada sob o palco: “Parabéns aos formandos da turma de 1995.”

Uma música mais lenta começou a tocar e Joseph não perdeu tempo:

-        Quer dançar, Liza?

Amanda me deu um sorriso encorajador e foi para a mesa com Ben.

Assenti sem a menor vontade. Eu estava ficando louca. Mas só conseguia pensar na presença morna e no vislumbre de cabelos negros.

Isso não existe. Volta para a realidade Liza.

Joseph colou o corpo no meu e inalei seu perfume. O oposto do aroma marcante e masculino que eu almejava. Ele pisou no meu pé. Dançava ainda pior do que eu. Era por esse e outros motivos que eu detestava festas.

Esperei pacientemente a música terminar e pedi licença para ir ao banheiro.

Dessa vez, não era o frio que me desconsertava. Era o morno. Eu sentia braços em volta de mim. Quase possessivos. Como se quisessem me impedir de dançar com outra pessoa.

Isso é surreal.

Enchi as mãos de água e lavei o rosto na pia. Voltei ao salão, mas em vez de procurar por Joseph, analisei cada rosto masculino de cabelos pretos. Eu sabia que não chegaria a nada. Eu não sabia como ele se parecia. Não sabia nem se existia. No entanto algo forte gritava dentro de mim.

Ele estava ali. Tinha que estar.

Joseph me encontrou. Estranhei seu hálito. Ardia como se tivesse ingerido álcool puro. Ele me ofereceu um copo e me mostrou a garrafinha dentro do bolso do terno.

Que ótimo. Meu par quer se embriagar.

-        Eu não bebo, Joseph. Obrigada.

Ele parecia arrependido de ter me convidado. Entediado. Joseph suspirou, virou o copo em um só gole e me ofereceu o braço.

-        Vamos dar uma volta no pátio?

Seria melhor do que dançar. Aceitei o braço dele. No meio do caminho, me dei conta de que Joseph andou comigo para os fundos da escola, o pátio ficava do outro lado. Mas resolvi ignorar o sinal de alerta piscando na minha cabeça.

Joseph abriu a porta de uma das salas de aula e o toque gelado veio. Forte. Brusco. E de súbito. Estremeci.

Uma das janelas estava aberta, mas não entrava nenhum vento por ali para justificar o gelo correndo por minhas veias.

Joseph acendeu a luz e sorriu de um jeito muito estranho. O oposto do garoto bem educado e tímido que eu conhecia. Estaquei na porta:

-        Joseph, você não queria ir para o pátio? Podemos arrumar problemas se nos pegarem aqui.

-        Liza, Liza. Sempre responsável. Sempre medrosa.

Pouco tempo havia se passado. A arrogância não podia ser efeito da bebida. Virei as costas pronta para descer o corredor correndo, mas Joseph me puxou pelo cotovelo e bateu a porta atrás de mim. Depois cruzou os braços e encostou na porta bloqueando minha saída.

-        Calma, Liza. Só quero te dar uns amassos. Não é isso o que adolescentes devem fazer em bailes?

-       Isso não tem graça, Joseph. Anda, saia da frente da porta. Ben e Amanda vão ficar preocupados.

-        Você é tão certinha e sem sal. As vezes acho difícil acreditar que seja mesmo você a ser minha.

Eu, a ser dele?

Arqueei as sobrancelhas. Joseph não fazia o menor sentido e de repente parecia perigoso. O vento gelado me obrigou a esfregar os braços para me aquecer. O brilho no olhar dele e o sorriso de obstinação fizeram meus poros se arrepiarem.

Ninguém nos procuraria ali. E com a música alta no salão, se eu gritasse, ninguém escutaria. Comecei a me sentir realmente encurralada. Sufocada.

Meu celular estava dentro da bolsa, em cima da mesa no meio do salão. E eu tinha certeza de que o giz usado no quadro negro, não seria uma boa arma. Mas aquele era o Joseph, não era? Talvez se eu conversasse com ele, desviasse sua atenção para outros assuntos, ele me deixasse em paz.

Enquanto a esperança tentava me convencer disso. O medo me dizia para correr e ficar o mais distante possível.

Joseph descruzou os braços e pegou o frasco prateado dentro do paletó:

-        Bebe Liza.

-        Não, obrigada.

Joseph trincou o maxilar, segurou meus ombros e me girou violentamente. Bati com as costas na porta:

-        Eu mandei você beber.

Os olhos dele. Aquilo não podia ser real. Sombras negras se moviam por suas íris. Joseph colou a testa na minha e trouxe a garrafa para perto dos meus lábios:

-        Abre a boca.

-        Pare, Joseph! Por que está fazendo isso?

-        Abre. A. Boca!

Entortei o pescoço. Ele me puxou pelo queixo e entornou o líquido em mim. Consegui desviar. A bebida escorreu da bochecha para o decote do meu vestido. Isso o deixou furioso. Ele esmurrou a porta muito perto do meu rosto. Por pouco não fui atingida. Joseph me deu uma rasteira. Cai no chão e ele veio por cima de mim. Joseph me obrigou a abrir a boca e entornou o líquido.

Engasguei com a ardência na garganta. Minha mente ficou turva. Os pensamentos rodaram. E o que vi depois, me convenceu de que eu estava mesmo alucinando. Daquela vez, não foi só um vislumbre de cabelos negros.

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Oláá amores! Se gostaram não esqueçam da estrelinha e do comentário! Quero saber o que estão achando! =)

Beijossss e bom restinho de domingo pra vocês!

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