II - A Luz
O pior é que eu acreditava em Juliana. Eu já tinha certeza que aquele lugar inteiro era mal assombrado.
– Ju, quer saber? Vamos embora daqui! Essa cidade não é de Deus não!
Por um instante, pareceu que ela acataria minha sugestão; mas logo meneou a cabeça e murmurou:
– Não, já chegamos... Quero ver minha tia – acenou para uma casinha verde alguns metros adiante. – É ali que ela mora.
– É melhor cairmos fora desse lugar, sério!
– Por favor, Breno!
Suspirei, derrotado.
Saí do carro e ajudei Juliana a descer. Ela ainda estava abalada e tinha as pernas bambas. Passei o braço em sua cintura e começamos a cruzar a rua, rumo à casa de tia Miranda.
Ah, mas nunca senti tantos arrepios na minha vida! Enquanto caminhávamos, começamos a ouvir sussurros cortando o ar e passos furtivos se arrastando pelo chão. Era como se uma multidão de espíritos, fazendo um esforço imenso pra não ser ouvida, estivesse nos cercando.
"São só as pessoas nas casas", minha parte racional tentou argumentar.
Mas por que as pessoas da cidade aparentavam se esconder de nós? Afinal, apesar de o lugar ser claramente habitado, até agora não tínhamos esbarrado com um ser vivo sequer, exceto os braços flutuantes vistos por Juliana.
Alcançamos a casa verde. Juliana bateu palmas:
– Tia Miranda!
Quase de imediato, a porta da entrada se abriu. Os sussurros e passos na rua cessaram, como se os espíritos que nos seguiam tivessem entrado em expectativa.
Aguardamos que alguém aparecesse à porta, mas isso não aconteceu.
– Será que ela espera que a gente entre? – falei.
Juliana avançou com passos vacilantes, ao que a segui.
Adentramos a casa e nos vimos numa confortável sala de estar. Tudo estava arrumadinho, cheirando a lavanda, e a tevê, numa estante ao centro, estava ligada na novela das seis.
– Tia Miranda? – chamou Juliana.
– Aqui, querida! – a voz fraca de uma senhora respondeu, vinda de um quarto ao fundo.
Foi a primeira vez que não ficamos assustados com um barulho. Não só porque Juliana reconheceu a voz da tia, mas porque aquela voz saíra de um dos quartos, e não do nosso lado.
Visivelmente aliviada, Juliana saiu da sala, entrou num corredor e abriu a porta do primeiro quarto à esquerda, de onde a voz ecoara.
Segui-a com a educada insegurança de quem era um estranho no lar.
Assim que empurrou a porta do cômodo, Juliana deu um berro e desmaiou. Corri a tempo de evitar que ela fosse ao chão.
Sustentando Juliana, olhei o interior daquele quarto.
Sobre uma cama forrada com lençóis floridos, a cabeça incorpórea, mórbida e enrugada de uma velha, que reconheci como tia Miranda pelas fotos que já vira dela, flutuava no ar.
Sem perder mais nenhum segundo, peguei Juliana em meus braços e desatei a correr para longe dali. Ainda escutei a cabeça flutuante nos chamando, antes de eu cruzar a sala e deixar aquela casa amaldiçoada.
Atravessei a rua num pulo e alcancei o carro batido. Coloquei Juliana no assento, passei o cinto em seu corpo e, saltando ao banco do motorista, travei as portas. Tudo isso no mais frenético e desesperado dos ritmos.
Cantando pneus, girei o carro e comecei a dirigir pelo caminho de volta.
– Você poderia ao menos me deixar sair? – disse a voz de uma menina no banco de trás.
– AH! - gritei em terror, pois não se via ninguém além de mim e Juliana ali. Pisei ainda mais forte no acelerador.
– Me deixa sair! – gritou a voz de menina.
"Eu só preciso vazar desse lugar", pensei alucinado, aumentando a velocidade.
Mas quanto mais eu me aproximava da saída da cidade, mais a voz no fundo se tornava estridente, e agora eu podia ouvir o som de pancadas na janela.
– Me deixa sair! Me deixa sair! – e mais pancadas. – Eu quero sair!
Como se não bastasse, espíritos na rua fizeram coro:
– Pare! Pare! Pare!
E uma pedra atingiu o carro.
Olhei para o lado. Juliana ainda estava desacordada.
Desesperado, quase em lágrimas, perguntei-me o que eu poderia fazer pra acabar com aquele pesadelo. Até que uma ideia, insana, me veio à cabeça: e se eu obedecesse ao pedido do espírito?
Com o coração saltando pela boca, parei o veículo:
– Desce então, fantasma do inferno!
– Eu não sou um fantasma – a voz meninil respondeu, arfante. – Não sou!
Aquilo foi dito em tom tão convicto que, por um instante, minha curiosidade superou o medo.
– Se você não é um fantasma... então o que vo-você é? – gaguejei.
– Alguém tão normal quanto você – foi a resposta do assento. – Ou eu era... antes da fumaça.
– Que fumaça?
– A fumaça que veio do monte.
– Tá falando da... Serra da Luz? – perguntei, lembrando-me da cena que eu e Juliana tínhamos visto uma hora atrás. – O vulcão?
Fez-se um período de silêncio; era como se a espectral menina estivesse pensando no que responder. Ou talvez só estivesse recuperando o ar. Por fim, ela disse, mais calma:
– Sim, a Serra. Aquele vapor que ela solta não é um vapor comum – enquanto falava, ia deixando de soar eufórica e se tornando apenas triste. – Ah, se gente imaginasse... Teria deixado a cidade no dia em que o monte acordou...
Como a voz se calara de novo, insisti:
– Por quê?
– A fumaça é radioativa – ela suspirou. – Ela altera a forma como nossas moléculas refletem a luz.
– Não entendo...
– Nossos corpos agora só refletem ondas de luz mais curtas que o espectro visível pelo olho humano - ela respondeu, já totalmente calma, embora no tom de quem repetia palavras decoradas.
– Tá dizendo que... a fumaça fez vocês ficarem invisíveis?
– É o que professor Simão nos explicou. Conseguimos nos enxergar, mas... não podemos ser vistos pelos não contaminados.
Eu não conseguia crer. Vulcões radioativos? Aquela história era absurda. Mas não era igualmente absurda a ideia de que aquilo ali atrás fosse um fantasma?
– Então todos aqui... foram afetados...?
– Sim, pessoas, animais, alguns objetos... Em alguns de nós, porém, a contaminação ainda não fez efeito completamente – nesse momento ela pareceu sorrir: – Talvez vocês até consigam enxergar partes do nosso corpo flutuando por aí. Mas é só questão de tempo até sumirem também.
Fiquei digerindo aquele relato, descrente, até que a menina murmurou:
– Preciso ir. Entrei aqui só pra deixar uma carta, mas você apareceu e começou a me levar embora!
– Uma carta?
– Sim, da vó Miranda. Pra moça.
A porta do carro abriu sozinha:
– Adeus, moço! E... Melhor não voltarem mais na cidade. Se ficarem por muito tempo, vai acontecer com vocês também.
A porta bateu e escutei passos se afastando. A garota invisível nos deixara. Burbúrios na rua indicavam que ela se reunira aos seus.
Virei-me para Juliana. Ela me encarava, tão pálida quanto uma folha de papel. Entendi que ela já acordara há algum tempo e escutara aquela conversa.
– Você tá bem, amor? – perguntei.
Ela fez que não.
Perturbado, liguei o carro e, finalmente, deixamos a cidade.
***
Horas depois, quando já estávamos a mais de duzentos quilômetros da Serra, Juliana falou pela primeira vez:
– Onde está a carta?
Demorei algum tempo para entendê-la. Então levei o braço ao banco de trás e, tateando, achei um envelope no lugar em que a menina provavelmente estivera sentada. Entreguei-o pra Juliana.
Ela abriu e leu em voz alta:
Querida sobrinha,
perdoe meu egoísmo. Eu sabia o impacto que essa viagem causaria em você, mas a vontade de te ver uma última vez me cegou a razão. Espero que a cidade tenha conseguido se comportar, como me prometeram, e você não tenha tido grandes sustos.
Há 5 anos que a Serra despertou e alterou nossas vidas. Aqui, aprendemos a lidar com isso, ainda que, pela chance de ter uma vida normal, precisemos pagar o preço do isolamento.
Não conte ao mundo sobre nós, ou até essa chance terá fim.
Se consegui te ver dois segundos, posso morrer feliz. Portanto, não volte mais, para que meu destino não se torne o seu.
Adeus,
Tia Miranda.
Juliana desmanchou-se em lágrimas.
Algum tempo depois, paramos na primeira cidade que encontramos – aquela em que Judas perdeu as botas – e dormimos num hotel. Ao acordar no outro dia, boa parte do susto já havia passado, e só nos restava a reflexão sobre o que tínhamos testemunhado.
Juliana acreditava na história da menina e na carta da tia. Eu, porém, ainda achava que aquela cidade inteira era morada de espíritos. Em uma coisa concordávamos, contudo. Nenhum de nós andava pensando em voltar, tão cedo, para perto da Serra da Luz.
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Número de palavras: 3481
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Muito obrigado a todos que leram!
Um grande abraço!
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