4 - A história do guerreiro
Um garoto simples ele era. Nasceu numa aldeia chamada Satíria que se encontra a aproximadamente uns três dias de viagem de Hati, que nessa época não era tão bem organizada e vivia sofrendo constantes ataques dos soldados vermelhos, como eram conhecidos os cladianos, dado a cor de seus uniformes de batalha.
Ele tinha dezesseis anos quando, cansado de ser um simples lavrador, dirigiu-se ao castelo em busca de uma vida melhor, contra a vontade dos pais, e nessa primeira viagem que fez por pouco não foi aprisionado pelos inimigos que seguiam em direção contrária à sua. Acabou percebendo a movimentação no horizonte e teve tempo hábil para se esconder atrás de algumas árvores que ainda restavam antes de entrar em solo arenoso.
Chegando ao castelo e percebendo o clima de tensão que tomava conta do lugar, quis saber como poderia ajudar, pois, mesmo sendo incomum por se tratar de apenas um lavrador, já sabia manejar muito bem uma espada. Foi conduzido então para a minha presença e logo de cara percebi que se tratava de um rapaz que possuía um grande futuro pela frente, creio que foi por intuição, acredito muito nisso.
Mas percebi também que ele ainda não estava pronto para os desafios que poderia encontrar no caminho e como já havia treinado antes alguns outros guerreiros, resolvi me dedicar a este também. Dei-lhe valiosos conselhos que ele, apesar de se sentir apto a enfrentar qualquer tipo de situação, acabou ouvindo e me atendendo. Permaneceu então sob meus cuidados no castelo por dois anos ainda, recebendo minhas instruções e ao perceber que ele já poderia ser testado, dei-lhe sua primeira missão que consistia em encontrar uma estatueta que fora furtada há muitos anos do castelo e as pistas indicavam que ela havia sido escondida em uma caverna escura que fica ao norte de Hati. Esta estatueta pertenceu ao segundo rei do castelo azul, e um grande prêmio em ouro foi oferecido para quem a devolvesse na época, mas, mesmo assim, ela jamais havia retornado para Hati.
Ele não precisou pensar duas vezes antes de aceitar a missão e armado com um bom equipamento, iniciou sua segunda viagem. A primeira, de sua vila até o castelo, tinha sido sua passagem até os meus ensinamentos; a segunda tinha agora como objetivo promovê-lo realmente a um guerreiro do reino.
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Cláudio, que viera ao castelo imaginando se tornar um guerreiro somente por ver alguns lutando na arena de Cabidan, jamais ousou acreditar que um ser deste tipo e ainda tão jovem pudesse ter existido, a não ser nas lendas, e não conseguiu se conter, interrompendo a narrativa de Deiron.
"Senhor capitão, creio que vim para Hati pelos motivos errados, me espelhando nos homens errados, esse guerreiro sim me parece uma grande inspiração."
"Você tem razão loiro, mas ainda não ouviu nada de importante, estou ainda no começo, escute..."
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Nesta época em que ele partiu, Hati já se tornara poderosa novamente e conseguira afastar os vermelhos para além de suas fronteiras, então ele teria mais facilidades para encontrar o caminho e retornar vivo. Sim, retornar vivo era o mínimo que eu esperava, mas ele me surpreendeu. Em pouco mais de duas semanas ele retornou com a estatueta e creio que até o ladrão que a havia furtado ele descobriu. Havia enfrentando o medo e a solidão, já parecendo disposto a enfrentar algum novo desafio, como se eu tivesse lhe enviado para uma brincadeira de criança. Eu lhe disse que não, que descansasse pelo menos por algumas semanas antes de fazer um novo teste e ele aparentemente concordou, me pedindo que o deixasse visitar sua família em Satíria, o que prontamente eu cedi.
Duas semanas se passaram e meu novo aprendiz não deu sinal de vida, então mandei um soldado buscá-lo em sua casa e ele retornou sozinho, trazendo a informação que meu pupilo não passara nem perto de lá, segundo informaram também os vigias da aldeia, muito atentos em épocas de guerra. A princípio achei que ele me desobedecera e partira para alguma aventura proibida, mas com o passar de mais duas semanas sem notícias dele, cheguei à conclusão que poderia estar enganado e que ele desistira do treinamento, só que eu não estava certo e para que entenda o que aconteceu, preciso tocar numa história bem mais antiga que esta que narro, que vem dos princípios da fundação de Hati.
O nome Hati vem de seu fundador, Carreus Hati, um valente explorador que diziam desconhecer o medo. Quando Carreus era ainda jovem teve o azar de se aproximar demais de um belo castelo do noroeste, do qual vivemos falando a todo momento. Vagava de forma descuidada, pois não existia nenhuma guerra declarada naquela época e acabou sendo preso, torturado e muito humilhado pelos cladianos, e quando finalmente conseguiu escapar ferido tanto física quanto espiritualmente, rumou para o sudeste por dias a fio, sem se alimentar direito, deixando para trás objetos valiosos e pessoais, entre eles uma espada que vinha há gerações sendo passada de pai para filho.
Na área onde existe hoje o castelo de Hati, veio a acampar e foi surpreendido durante a noite por um grupo de nômades, que em vez de atacá-lo, cuidaram dele. Em recompensa pela bondade deste povo errante, Carreus decidiu se unir a eles e formaram uma aldeia. Conheceu então Hanice e resolveu constituir família e com sua inteligência e longa experiência, tornou o povoado próspero e durante anos viveram em paz, mas Carreus guardava na memória uma mágoa antiga contra os cladianos e jurara para si mesmo que um dia para lá voltaria para resgatar seus tesouros roubados e com sua própria espada destroçaria os inimigos. Mas o tempo passou rápido e o povo de Clad parecia ter coisas melhores para fazer e ele vivia feliz com sua família e a sua gente enquanto os anos aceleraram e com isso o castelo de Hati foi surgindo sobre a aldeia a muito construída, tomando então Carreus como rei.
Após mais alguns anos, com o rei já velho, os cladianos colocaram novamente seus olhos maus sobre Carreus e resolveram atacar agora o seu já próspero reino, mas foram surpreendidos pela organização que fora implantada, sendo facilmente vencidos e expulsos. Foi então assinada uma trégua de cinquenta anos para que cada povo continuasse seu caminho e este tratado acabou perdurando por quase todo o tempo previsto, sendo desfeito quando os cladianos o quebraram, atacando a fronteira de Hati em busca de diversão. Nenhum nobre de Hati voltou a pôr os pés em Clad até os dias daquele guerreiro que treinei e ele foi o responsável por um fato que entrou para a história de todo o mundo conhecido naquele tempo.
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"Incrível essa história de Hati, senhor capitão. Já escutara uma parte dela, mas jamais com tamanha profundidade de detalhes. Como sabe tanto sobre ela?"
"Esta é uma das vantagens de se trabalhar a tantos anos a serviço do rei, você tem acesso a informações importantes diretamente dele. Essa que lhe contei veio direto do monarca atual e são detalhes passados de geração em geração na família real..."
"Mas, senhor capitão, isso de certa forma não incita o ódio entre os dois povos?"
"Não creio que esse seja o objetivo, mas um deles certamente é alertar que se existe um inimigo a ser considerado como perigoso, esse reside em Clad. Mas continuemos..."
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Voltava ele então para sua aldeia quando o desejo forte que o dominava em relação aos desafios aflorou em seu peito e ele se deixou levar. Seguiu rumo a Clad, atravessando a fronteira fortemente vigiada desde o tempo do rei Carreus. Para os soldados da fronteira disse estar numa nova missão que o levava aos maiores perigos que qualquer hatiano já poderia ter imaginado e o precisava realizar sozinho. E os soldados, diante de um homem já formado, agora com dezoito anos, forte e armado, com a voz de uma avalanche, não precisaram ouvir duas vezes para liberar sua passagem, não sem antes fazer-lhe todos os votos de sorte. Foi por estes soldados que eu fiquei sabendo da loucura que o meu aprendiz tramava, quando estes retornaram para Hati, num revezamento que fazemos mensalmente nas fronteiras.
Havia me apegado tanto a ele que foi como se eu tivesse perdido um filho e pensando como tal, retornei à Hati e convenci o soberano que era hora de limpar a honra do antigo rei Carreus, com o agravante de que os cladianos a cada dia faziam expedições mais audaciosas dentro de nossos territórios, levando dor e um grande sofrimento ao povo que nele confiava. O rei, inflamado por minhas palavras, me deu total autonomia para conduzir um exército até os muros de Clad e eu não perdi um só instante. Em uma semana uma numerosa força comandada por mim ultrapassava as fronteiras em marcha acelerada. Tinha a esperança de ainda encontrar o meu pupilo com vida e era este sentimento que me fazia arrancar todo o esforço dos soldados que me acompanhavam de perto.
A um dia de Clad, meus batedores retornaram ao nosso acampamento dizendo terem visto um soldado azul rumando sozinho em nossa direção. Poderia também ser um dos batedores inimigos disfarçado e nos preparamos para o pior, porém armamos uma emboscada para este soldado solitário. Ele vinha sem medo, com a cabeça oculta por um capacete e a minha ordem foi capturá-lo vivo para arrancar informações, numa tática comum de guerra. Ele não esboçou reação nenhuma ao ser cercado por uma dezena de soldados, jogou uma das espadas que trazia consigo no chão e com a mão livre arrancou o capacete enquanto erguia a outra espada, soltando um grito forte numa voz conhecida por alguns e que seria memorizada por todos, certamente pelo resto de suas vidas.
"Eis aqui um guerreiro que se orgulha do povo ao qual serve!" – berrou ele – "E eis aqui faiscando sob a luz das estrelas a espada do nosso eterno Carreus. A lendária espada de Hati! Aquela que estava perdida, agora será brandida."
Era Gustavo, o guerreiro, que até hoje permanece inigualável em seus atos. Foi ele o meu mais brilhante aprendiz.
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