• Capítulo 10 •


Aos poucos e conforme os dias foram se passando, uma rotina se estabeleceu lentamente na grande casa.

E Beatrice não poderia dizer que não gostava dela ao todo.

Às sete e meia, quando o dia já havia amanhecido por completo, Bea acordava sem que o despertador do celular precisasse tocar. Realizando suas higienes matinais e abarrotando-se de roupas quentes já pela manhã, ela saia do quarto e traçava o caminho até a sala de jantar, onde partilhava quase todas as refeições com Frederick.

Quatro dias tinham se passado desde aquela noite horrível – e sem dúvida intrigante – em que Beatrice encontrara o dono da mansão, e desde então ela havia conhecido muitos outros criados da casa, fizera amizades e se tornara ainda mais próxima daqueles que já gostava.

Samantha, Howard e Luke estavam sempre por perto, fazendo-a rir mesmo nos momentos em que só conseguia pensar em voltar para casa, para seu trabalho e para seu pai. Todos os três eram... inacreditáveis, mas com certeza de um jeito bom. Bea já tinha certeza que, mesmo quando voltasse para Roseville, manteria todo o contato possível com aquelas pessoas.

Frederick já era outra história.

Beatrice já percebera que ele tinha momentos bons e momentos ruins, e era impossível dizer com qual dos humores você o encontraria em determinado momento. Às vezes ele ficava calado durante uma refeição inteira, resmungando respostas sem sentido para tudo que ela perguntasse a ele, outras vezes poderia considerá-lo até mesmo falante, curioso para saber sobre sua vida em Roseville e consideravelmente amigável. Porém, na maior parte das vezes, ele estava irritado ou com aquela mania incômoda de nunca olhar para ela enquanto conversavam.

Beatrice já tinha percebido que Frederick era do tipo que não admitia ser contrariado. O jeito típico de alguém que com certeza fora mimado a vida toda, e ela, que dificilmente tolerava aquele tipo de comportamento, não aguentava suas grosserias calada, o que sempre resultava em uma ou outra discussão.

Desde que soubera sobre a TEI, naquela mesma noite em que ele a pegara na ala oeste e a salvara do meio da neve, Bea tentava ser mais compreensiva e até mesmo paciente. Mas ele era tão difícil!

De um jeito ou de outro, eles estavam morando na mesma casa por um tempo indeterminado. Era óbvio que na maior parte das vezes tinham que se controlar para não esganar um ao outro, mas Bea aos poucos se sentia mais segura perto dele e não se permitia intimidar com seu mau gênio.

No mais, eles só se viam durante o café, o almoço e o jantar. Durante todo o resto do dia Beatrice não sabia o que ele estava fazendo, e ela tentava se ocupar com qualquer coisa para que não caísse naquela insuportável monotonia.

Bea ligava para seu pai todos os dias pela noite, quando sabia que ele já estaria em casa. Apesar de conseguir cuidar muito bem de si mesmo, ela não conseguia deixar de se preocupar com ele. Toda a vida havia sido só os dois, um pelo outro sempre. Ficar tantos dias sem poder vê-lo e não fazer a mínima ideia se estava conseguindo se virar sem ela era aterrorizante.

Eliza, por sua vez, a mantinha sempre informada sobre as novidades no café e em Roseville, o que consistia basicamente em um novo casal se divorciando na cidade – sempre com os mexericos de quem havia traído quem -, a abertura ou o fechamento de mais uma lojinha no centro, os adolescentes bagunceiros do bairro Estival que tinham causado mais uma degradação ao patrimônio público e como Gavin estava completamente louco por ter Beatrice longe por tanto tempo.

E, de fato, Gavin mandava mensagens para ela todos os dias.

Ele tentava puxar assunto em qualquer horário, sobre qualquer coisa, sempre perguntando quando ela voltaria para Roseville. Às vezes ele até mesmo ligava, mas ela colocava o celular no mudo e simplesmente ignorava a ligação.

Aparentemente, ser clara como água de que ela nunca daria sequer uma chance para ele, não havia adiantado muito.

Definitivamente, Gavin estava entrando para a sua lista de pessoas mais odiadas. E Beatrice não odiava muitas pessoas assim.

Tentando afastar os pensamentos, Bea se concentrou em terminar de se arrumar para o almoço. Estava passando um suéter pela cabeça quando ouviu uma batida na porta.

Ela franziu as sobrancelhas, sem fazer ideia de quem poderia ser.

Já havia decorado o caminho para a sala de jantar com bastante facilidade, além de Howard ter trazido mais roupas limpas para ela naquela manhã depois do café. Realmente, não esperava ninguém.

Dirigindo-se até a porta, Bea a abriu.

"Samantha?"

"Olá, querida. Trouxe seu almoço."

A mulher entrou no quarto, um pouco encurvada pela bandeja cheia que carregava.

"Mas eu já estava indo almoçar", Bea disse quando Samantha se virou para ela. "Com Frederick."

"Ele mandou avisá-la que não vai poder comer com você hoje", informou Samantha. "Frederick está... resolvendo algumas coisas. Então achei melhor trazer a comida para você. Aquela mesa é grande demais para se comer sozinha, não é?", ela soltou uma risadinha e Bea apressou-se para pegar a bandeja dos braços dela.

Quando seus olhos se voltaram para o prato a sua frente - cheio até não dar mais - e o enorme copo de suco, Beatrice sentiu o coração bater mais forte.

De repente, não quis ficar sozinha.

"Obrigada", esforçou-se a dizer para Samantha. "Acha que ele vai aparecer para o jantar?"

"Não faço ideia", a mulher respondeu com sinceridade, os olhos de repente se desviando dos dela. "Mas venho avisá-la de qualquer modo. Se quiser dar uma volta pela casa mais tarde..."

"Chamo Howard ou Luke", completou Bea com um pequeno sorriso. "Obrigada, Samantha."

"Por nada, meu bem."

A mulher então deu um leve beijo na bochecha de Beatrice e saiu do quarto, deixando-a sozinha com o almoço fumegante.

Sentando-se na cama, Bea olhou para a comida e sentiu o estômago roncar. Sem dúvida, parecia delicioso.

Ela comeu com gosto, até a última garfada, e quando a culpa e os pensamentos enlouquecedores vieram, Beatrice não resistiu muito.

Afinal, estava se tornando mais fraca a cada dia.

Na ala oeste, em meio a bagunça e destruição crescente do seu quarto, Adrien tentava não gritar com a mãe ao telefone.

"Você não está com o juízo perfeito", ela disse daquela vez, a voz cansada. "Não pode fazer isso."

"Você pediu cinco meses, mãe", ele respondeu, andando de um lado para o outro, tentando fazer com que ela o escutasse pelo menos uma vez. "E agora falta pouco para esse tempo acabar."

"Cinco meses para que você pensasse e repensasse mil vezes nessa sua decisão idiota", ela retrucou do outro lado da linha. "Duvido muito que tenha feito isso."

"Eu já pensei, certo?", respondeu ele, sua voz subindo algumas oitavas. "Mas minha decisão já estava tomada antes mesmo de você insistir com essa baboseira de esperar mais um tempo para que eu pudesse pensar melhor."

"Adrien...", ela suspirou.

"Eu tenho vinte e um anos, mãe", ele disse para ela. "Não pode me impedir."

O silêncio do outro lado foi esmagador, e Adrien quase disse algo que pudesse tranquilizá-la, até perceber que não havia nada que pudesse ser dito.

"Você sabe dos riscos", a mãe disse por fim, a voz carregando aquela dureza que ele sempre ouvira ao longo dos anos. "Sabe tão bem quanto eu e seu pai, mas, se mesmo assim quer arriscar sua vida por..."

"Vai ser diferente agora", Adrien a cortou, passando uma mão pelos cabelos nervosamente. "Outros médicos, um procedimento diferente."

Do outro lado da linha, ela soltou uma risada seca.

"Outros médicos?", perguntou ela, irônica. "Quais médicos, Adrien? Você não sai dessa casa há dois anos, nem mesmo consultou um especialista."

Adrien engoliu em seco, tentando não gritar com ela.

"Ainda faltam seis semanas para completar os cinco meses, lembra?"

"E do que adianta isso? Já tomou sua decisão, não é?", ela estava ácida, amargurada. Adrien fechou os olhos, respirando fundo.

"O inverno está rigoroso por aqui, de todo modo vou ter que esperar mais um pouco."

Eles ficaram em silêncio por um bom tempo, e com o celular na orelha, Adrien pensou que a mãe tivesse desligado.

"Adrien", ele a ouviu chamar. "Não há nada que eu possa fazer para que mude de ideia?"

Adrien Fletcher fitou a neve que caia novamente pelas portas da sacada, pousou os olhos na rosa que morria em sua mesa e nos restos do espelho que muito tempo antes tinha destruído.

"Não."

Silêncio.

"Eu sei que seu pai e eu não estamos te visitando com tanta frequência", ela continuou falando depois de uma longa pausa. Sua voz parecia ligeiramente embargada, o que espantou Adrien de um modo que ele próprio não conseguiu descrever. Sua mãe nunca chorava. "Mas é que..."

"Eu já sei", Adrien apresou-se em responder, lembrando-se da última vez que vira os pais. Tinha sido há quanto tempo? Sete meses antes? Ou oito? "Não precisa tentar encontrar desculpas, ok? Prefiro que não venham a ter que assistir meu pai quase que sem conseguir olhar para mim."

"Você sabe que isso não é verdade", ela falou no mesma instante, mas ele nem quis escutar.

"Mãe, você ligou para saber se estava tudo bem por aqui e se eu tinha mudado de ideia. Está tudo bem e eu não mudei de ideia. Acho que não temos mais nada para conversar."

"Quando entrar na sala de cirurgia", ela começou a dizer, agora com a voz tremendo de raiva e mágoa, "saiba que eu não vou estar ao seu lado."

"Nunca pedi que estivesse."

"Sua aparência é assim tão importante para você?", ela agora estava quase gritando. "Tão importante a ponto de você se esconder do mundo nessa casa, nunca mais sair e agora arriscar sua vida em uma cirurgia de risco?!", Adrien pensou em desligar, mas ela continuou falando. "Vamos, Adrien, responda. Quão importante é seu rosto para que arrisque jogar sua vida fora desse jeito?"

Adrien pensou na vida que tinha antes. Seus amigos, as festas, a fama... Ele era do mundo, e, de repente, havia se transformado naquilo que sempre abominara.

"É muito importante."

Porque, na verdade, era a única coisa que eu realmente tinha.

"A vida é sua", ouviu a mãe dizer por fim, antes de desligar. "Só se lembre do que os médicos disseram da última vez."

Adrien afastou o celular da orelha, lentamente, como se seu corpo pouco a pouco desacelerasse, em uma espécie de letargia.

Ele caminhou até sua cama, apoiando os cotovelos nos joelhos e escondendo o rosto nas mãos em concha.

Aos poucos, as lembranças de dois anos antes foram lhe invadindo.

Durante o primeiro ano depois do acidente, quando Adrien ainda morava com os pais e aos poucos se recuperava, a cirurgia plástica se tornou sua esperança de todos os dias, a esperança de ser ele mesmo de novo, de poder seguir com sua vida como se nada daquilo tivesse acontecido e não passasse de um pesadelo.

Ele só conseguira a permissão para a cirurgia um ano depois do acidente. Seu pai pagou os melhores médicos, os melhores tratamentos e tudo para que a operação fosse um sucesso.

Mas não foi.

Com dezenove anos, Adrien Fletcher ficou próximo da morte mais uma vez, mas desta vez na sala de cirurgia, e também nos dias que se seguiram durante seu internamento.

A cirurgia não havia dado certo, seu corpo simplesmente se recusou a cooperar com o procedimento. Várias outras complicações – entre elas a quantidade de cicatrizes e os lugares sensíveis onde se encontravam – fizeram com que ele quase morresse.

As três semanas que se seguiram àquilo foram as piores da vida de Adrien, com exceção aquelas primeiras de quando tinha acordado no hospital, com o rosto completamente desfigurado.

Quando voltou para casa, do mesmo jeito que antes e com o concelho insistente dos médicos que a tentativa de uma nova cirurgia provavelmente não teria mais sucesso que a primeira, Adrien não gastou cinco minutos para que destruísse alguns dos cômodos da casa.

Ele não se lembrava de como seus pais o tinham acalmado, embora lembrasse vagamente de ter Samantha por perto, tentando pará-lo.

Um mês depois e a mudança ficou certa.

A mídia estava enlouquecida para ter uma informação, uma foto ou qualquer coisa de Adrien, e ele jamais permitiria ser visto de novo. Não daquele jeito.

A mansão que seu pai passou para seu nome quando fez dezoito anos tornou-se sua casa, embora a visse mais como uma prisão.

Mais um ano se passou, e foi aquele tempo confinado na casa que fez Adrien perceber que jamais aguentaria viver daquele jeito.

Ele faria uma nova cirurgia, com médicos melhores e um acompanhamento de meses antes da operação, com todos os cuidados necessários para que seu rosto pudesse ser restaurado. Poderia dar certo, realmente poderia.

Ele então teria uma vida de novo, e isso era tudo o que Adrien mais desejava.

Chega de se esconder e não suportar ver seu próprio reflexo, chega de temer ser visto pelas outras pessoas. Aquele pesadelo acabaria.

Quando contou para seus pais sua ideia, em uma das últimas visitas deles, ambos acharam que ele tinha enlouquecido de vez.

Era irônico, supunha Adrien, que seu pai mal conseguisse olhar para ele e mesmo assim não o apoiava na decisão de concertar tudo aquilo.

Sua mãe, que fora de longe a mais difícil de convencer, tinha atrasado e muito os planos de Adrien para acabar com aquela tortura.

Quando já não suportava mais aquela vida e estava pronto para começar a procurar os médicos certos e dar início a todo o procedimento, sua mãe implorara por mais um tempo, para que ele pensasse melhor.

Cinco meses.

E Adrien lhe dera o tempo, não porque sabia que poderia mudar de ideia, mas para convencê-la de que não voltaria atrás e que, quando os cinco meses acabassem, o trato seria desfeito e ele faria a cirurgia.

E agora, finalmente, um mês e meio era o que faltava.

Adrien não era idiota, sabia dos riscos, de todos eles, mas simplesmente não conseguia mais viver daquele jeito.

Ele era alguém que queria o mundo, ver pessoas e lugares, viver cada aspecto da vida e aproveitar sua juventude. Ser daquele jeito, mais abominável do que todas as pessoas que já humilhara por suas aparências horríveis juntas, era algo que ele não podia suportar.

O acidente tinha destruído tudo, sem deixar muita coisa para trás.

Levantando-se da cama, Adrien encarou seu reflexo pelos cacos que ainda estavam presos nas beiradas do antigo espelho do quarto. Sua garganta se fechou por completo e ele desviou o olhar de si mesmo.

De repente, e sem que soubesse o porquê, a voz de Beatrice Morgan lhe veio à cabeça.

"Essas cicatrizes não são um problema para mim."

Mas como não poderiam ser?

Ele simplesmente não conseguia entender.

Adrien Fletcher não queria mais viver daquele jeito, sem a única coisa que lhe era mais importante na sua antiga vida. Como poderia?

Para ele, anos antes e quando acordara no hospital, sabia que sua vida já estava destruída. Seus amigos, se o vissem, não se aproximariam mais, nem as garotas e nem ninguém, andar na rua seria uma tortura, com os olhares vacilantes de todos ao seu redor.

Fitando a neve que caia cada vez mais lá fora, Adrien sabia dos riscos de uma nova tentativa de cirurgia plástica. Sim, ele sabia.

Mas, de todo modo, não havia mais muito em sua vida que ele amasse o suficiente para fazê-lo temer um mal resultado na operação.

Na verdade, ele não tinha nada a perder.

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Oii gente! Tudo bem com vocês? Espero que sim!

Então, o que acharam desse capítulo? Conseguiram ter algum spoiler pela prévia que postei na sexta? hahaha

Espero que tenham gostado! Estou louca para saber o que vocês estão achando do livro no geral e suas teorias para os próximos capítulos!

Beijos e até quarta,

Ceci.

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