Capítulo 2
Contaram-me que o incêndio se alastrou rapidamente e demorou para ser controlado, já que o estábulo era feito de materiais inflamáveis. Para tristeza geral de todos nós do reino, o rei Basílio fora retirado de dentro do local totalmente sem vida. A princesa Irene sobreviveu, mas, de acordo com os boatos, grande parte do seu corpo havia sofrido sérias queimaduras. Além dos dois, toda a cavalaria real ardeu em chamas. As suspeitas eram de que havia sido um incêndio criminoso.
Quanto à Bernarda, ninguém soube de seu paradeiro. A condessa sumiu completamente do mapa como se fosse fumaça. Tendo sido um incêndio criminoso, por lógica, ela seria a suspeita mais óbvia, penso eu. Mas ninguém teria coragem de acusar formalmente um membro da família real sem provas. A culpa, como sempre, recaiu nos ombros do lado mais fraco: Sancho. A guarda real buscou-o por alguns meses, até encontrar seu corpo sem vida. O veterinário havia sido assassinado.
Três anos após a explosão no estábulo, as mudanças no Reino de Torim ainda eram visíveis. Principalmente para nós, que convivíamos no palácio. Desde o incêndio, a princesa permanecera reclusa em seu quarto. Apenas os médicos e seus tios, o barão e a baronesa de Pomal, tinham acesso a seus aposentos. O casal, por sinal, na ausência de outro membro real apto, atuava como representante da monarquia em eventos, encontros e cerimônias oficiais. O poder do Reino de Torim, porém, passou a ser centralizado no parlamento, composto por membros da alta sociedade, e encabeçado por seu líder, o lorde Donato Arone.
Eu, na ausência de uma princesa para fazer as vezes de sua dama de companhia, fui remanejada a governanta do palácio. Se de um lado minhas responsabilidades aumentaram, por outro, o convívio com os barões de Pomal era tenso e não passava de formalidades. Sentia falta da carinhosa amizade da princesa Irene.
Ao menos o meu filho, Nicolau, agora com pouco mais de dois anos, preenchia minha carência de afeto. Enquanto eu trabalhava, ele brincava com as crianças da corte. Orgulhava-me poder proporcionar a ele uma infância ao lado dos filhos dos nobres de Torim.
Havia muitas tarefas para realizar no palácio, mas, especialmente naquele dia, as coisas estavam agitadas por lá. Após anos de reclusão, a princesa Irene seria reapresentada à sociedade e coroada a nova rainha. Todos estavam curiosos para o evento. Ninguém sabia ao certo o real estado de saúde da princesa. Havia todo um mistério por trás dessa cerimônia.
− Jordana, o barão e a baronesa de Pomal solicitam sua presença na sala de reuniões − informou-me Ana, a mensageira real.
Agradeci e fui em direção ao local. A porta da sala de reuniões não estava totalmente fechada, o que me permitiu ouvir parte do que era falado entre o casal de barões e um outro homem.
− É que temo pela saúde da princesa ao assumir o trono de Torim. − Era a voz da baronesa.
− Concordo. Você deveria acalmar os seus pares para podermos adiar por mais alguns meses a coroação − disse o barão.
− Isto está fora de cogitação. Não há como um reino sobreviver tanto tempo sem um rei ou uma rainha. − Não conseguia identificar pela voz quem era esse homem.
− O que quer dizer com isso? − perguntou ela.
− Quero dizer que já há movimentos no parlamento para a queda da monarquia.
− Que curioso! − disse o barão, num misto de ódio e ironia. − Corrija-me se eu estiver errado: em um sistema parlamentar, você, como líder do parlamento, seria o candidato natural ao cargo máximo, estou certo?
− Não falo isso por interesse próprio, mas sim pelo bem de Torim.
− Que vergonha! Um lorde ameaçando destronar a família real! Isso seria traição! − afirmou a baronesa em tom severo.
O até então não identificado homem era o líder do parlamento de Torim, lorde Donato Arone.
− Tentarei ser o mais objetivo possível, senhores. A princesa não possui herdeiros. Caso ela não se mostre em condições de assumir o trono, há duas opções: o parlamentarismo ou a continuidade da monarquia. Porém, devo lembrá-los de que o próximo na linha de sucessão ao trono de Torim não são vocês. Segundo as leis do reino, um membro real está apto a assumir a coroa apenas se estiver em idade fértil ou tiver herdeiros. Após o sumiço da condessa Bernarda, vocês não cumprem nenhum desses requisitos. Logo, o próximo da linha sucessória é Augusto, o rei de Lume. Mas todos sabemos o quanto o nosso falecido rei detestava seu primo. Traição verdadeira seria deixar um desafeto do rei Basílio assumir o poder de Torim.
− Entenda que o estado de saúde dela é delicado! Pedimos apenas mais alguns meses − solicitou a baronesa.
−Em nome do parlamento, dou-lhes um ultimato: se Irene não for coroada rainha, derrubaremos a monarquia. A escolha é de vocês.
Ouvi passos aproximando-se da saída. Bati levemente na porta e entrei pedindo licença. Percebi o clima tenso no ar.
− Perdão pela interrupção, senhores.
− Não há problema. Lorde Donato já estava de saída, não é mesmo? − provocou o barão.
− Sim. Irei preparar-me para a grande cerimônia de coroação. Vejo vocês em breve. Deus abençoe a futura rainha! − disse o lorde, saindo do cômodo.
Lorde Donato Arone era um homem de idade relativamente avançada e beleza não mais que mediana. Passaria despercebido por qualquer lugar, não fosse pelo seu olhar perspicaz e andar confiante, quase esnobe.
A baronesa esperou o lorde sair completamente de seu campo visual e disse-me:
− Jordana, quero que você cancele o jantar da cerimônia de coroação.
− Mas senhora, a comida já está...
− Espero não estar falando grego com você − interrompeu-me. − Cancele o jantar e quaisquer homenagens que alonguem a cerimônia. Ela não deverá durar mais de 20 minutos. Está entendido?
− Sim, senhora.
Saí espantada. Essa seria a primeira cerimônia de coroação que eu presenciaria, mas ouvira dizer que nelas havia sempre grandes jantares, longas homenagens ao novo monarca e ritos centenários que não duravam menos de três horas. Algo muito grave estava ocorrendo.
Avisei a equipe da cozinha real. Lagostas, ostras, queijos, carnes e frutas... uma quantidade imensa de comida seria jogada aos animais ou no lixo. Avisei também a guarda real para que impedisse gentilmente qualquer homenagem pós-coroação. Essa seria uma noite bastante peculiar na história de Torim.
A noite chegava e com ela as centenas de convidados. O salão de eventos do palácio estava abarrotado de abastados senhores e senhoras, nobres e monarcas de toda a região. Eu já me encontrava sentada em uma das cadeiras, com Nicolau em meu colo. Ele dormia tranquilamente enquanto a ansiedade me dominava. Após alguns anos veria a princesa novamente, torcendo para sua saúde não estar tão frágil quanto o barão e a baronesa insinuaram.
As cornetas da banda real soavam por todo o espaço, anunciando a aproximação da futura rainha de Torim. Havia certamente mais de 500 pessoas no local. No centro do salão de eventos, um trono adornado com ouro e pedras preciosas. Próximo a ele, em posição de destaque, estavam o barão e baronesa de Pomal, como representantes da monarquia; Lorde Donato, representando o parlamento; o arcebispo Dom Carlito Peregrini, nome máximo da Igreja no reino; e o grão-juiz Romeu de Sorti, do Palácio da Justiça.
Os instrumentos pararam de tocar. Chegara o grande momento. Cinco segundos de silêncio absoluto. Do fundo do salão de eventos, a passos lentos, começa a surgir uma figura bizarra. Vestindo longas luvas cor de gelo, um grande e emplumado vestido azul-real e uma faixa nos cabelos, além de − o mais estranho de tudo − uma máscara branca de gesso cobrindo-lhe o rosto. Ela entrava no salão apoiada em um homem que auxiliava sua caminhada. Eu quase não respirava diante de tal visão, assim como praticamente todos os convidados. Eu mal conseguia acreditar que a bela princesa que um dia fora minha amiga havia se transformado naquele ser anômalo.
Enquanto o espanto nos emudecia, a estranha princesa mascarada sentou no trono, não sem uma certa dificuldade.
− Nobres senhores e senhoras, diante de todos vocês e de Deus, eis aqui a princesa Irene Lecce, futura rainha de Torim − conclamou o arcebispo, segurando uma bíblia.
− Deus abençoe a rainha! − disseram alguns poucos convidados.
Era tradição no início da cerimônia que o público repetisse essa frase três vezes. A maior parte, porém, permanecia em choque.
− Deus abençoe a rainha! − Nesta, pôde-se ouvir pouco mais da metade dos convidados.
− Deus abençoe a rainha! − Disseram todos, enfim, em uníssono.
O arcebispo aproximou a bíblia da monarca. Ela, por sua vez, repousou a mão direita em cima do livro sagrado.
− Rainha Irene Lecce, você promete honrar e ser fiel ao seu povo?
O homem que a acompanhou na entrada se inclinou para ouvi-la.
− Sua Majestade disse sim.
Parecia que a futura rainha de Torim não tinha forças para realizar o juramento com sua própria voz num volume minimamente audível.
− Rainha Irene Lecce, você promete honrar e ser fiel à justiça e às leis de Torim?
Mais uma vez, o homem se inclinou e respondeu pela monarca.
− Sua Majestade disse sim.
− Rainha Irene Lecce, você promete honrar e ser fiel à igreja e a Deus?
− Sua Majestade disse sim.
− Diante de todos vocês e diante de Deus, com os poderes que me foram concedidos pela Santa Igreja, estamos diante da nova rainha de Torim − disse o arcebispo, colocando a preciosa coroa na cabeça da nova líder do reino.
Enquanto o público aplaudia e gritava "Deus abençoe a rainha!", a guarda real se posicionou entre os convidados e a realeza. Muitos dos nobres já se preparavam para suas homenagens quando perceberam que a rainha saía do local. A mais rápida cerimônia de coroação da história de Torim estava encerrada.
Percebendo a ausência de um jantar da coroação, os convidados foram retirando-se visivelmente desapontados. Assim como eles, eu também retornaria para minha casa. Sentia meu corpo bastante cansado. O dia havia sido intenso para todos nós.
− Mamãe, por que a rainha usava uma máscara? − perguntou-me Nicolau.
− É que ela está com o rosto machucado, Nico − respondi.
Carregava meu filho nos braços. Quando faltava pouco mais dez minutos de caminhada para, enfim, chegar à minha casa, ouço uma voz.
− Jordana? Jordana Modeste?
Olhei para o lado. Vi uma silhueta, mas não conseguia identificar quem era.
− Sim, sou eu. Quem é você?
− Graças a Deus eu a encontrei. Que saudade!
A silhueta foi aproximando-se de mim. Uma mulher de olhos verdes e cabelos bem curtos, vestindo uma roupa de miséria.
− O que foi, Dana? Não está me reconhecendo? − perguntou ela.
Eu não poderia acreditar naquilo.
− Como... como você...?
− Por favor, Dana, precisarei muito de sua ajuda. Sou Irene, a verdadeira rainha de Torim. Aquela outra é uma impostora.
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