Capítulo 11
Sentia as pernas tremerem enquanto eu saía de dentro da igreja. Minha cabeça se movimentava de forma frenética para a direita e para a esquerda à procura de meu filho Nicolau. Meus instintos me levaram direto ao jardim da Igreja Matriz, onde avistei não apenas Nico, a babá e as outras duas crianças filhas dos nobres, como também um jovem homem entre eles. O homem conversava com Telma, a babá, enquanto brincava com as crianças, especialmente com Nico. Aproximei-me deles indo diretamente abraçar o meu filho. No nosso primeiro contato, eu chorei, numa mistura de alívio e desespero.
− Graças a Deus, meu filho!
− O que houve, dona Jordana?
− Por que você saiu de lá, Telma? Por quê? − questionei em prantos.
− Eles quiseram sair para brincar, senhora... −respondeu-me a babá.
− Quem é esse homem? − perguntei, olhando para o rapaz.
Os olhos do homem se mostraram assustados.
− Ele... apenas se aproximou e começou a brincar com as crianças, senhora.
− Saiam daqui vocês dois! Saiam daqui! − gritei.
Os dois voltaram para dentro da igreja juntamente com as outras duas crianças. Segurei Nicolau em meu colo e saí.
− Por que você está chorando, mamãe?
− Estou chorando de saudade, Nico. De saudade.
Parti rapidamente em direção à minha casa. Lá, peguei a carta, uma certa quantia em dinheiro de minhas economias e algumas roupas e caminhei em direção à estação de carruagens. Apenas quando cheguei à estação é que percebi que minhas vestes continuavam as mesmas do casamento, incluindo a preciosa tiara. Os olhares de todos miravam em mim como se eu fosse uma atração. Fui em direção a um dos cocheiros.
− Boa tarde, senhora. Para onde vamos?
− Preciso ir à Zona Estiada.
− Zona Estiada? − questionou-me, espantado.
− Sim. Preciso ir para o vilarejo.
− Mas são muitas horas de viagem, minha senhora. Acredito que não...
Antes de ele completar sua frase, eu lhe entreguei uma generosa quantia de coroas torimenses.
− Acredito que esse dinheiro seja mais que o suficiente, estou certa?
− Sim, senhora − concordou.
O caminho de volta ao vilarejo trouxe à tona minhas recordações. Lembrei-me da primeira vez − há dez anos − que avistei o Reino de Torim, bem como o Palácio Real. Todas aquelas escolhas haviam cobrado seu preço. A carruagem me levaria de volta para o ponto de partida, onde minha vida havia se iniciado.
Avistei o Lago Lecce à esquerda. Após quase duas horas, passávamos ao lado das últimas árvores verdes do Bosque dos Açoites. Nos aproximávamos da Zona Estiada. De lá, seriam mais algumas longas horas até chegar ao vilarejo.
A Cordilheira dos Açoites podia ser vista bem ao fundo do horizonte. Ela impedia que as chuvas chegassem à Zona Estiada, sendo a responsável pelas longas secas da região que castigavam os moradores do entorno. Quem morava lá sentia a morte espreitando diante de tantas dificuldades. O que não nos contavam, entretanto, era que nas verdes terras do reino, a morte também se fazia presente. Ao contrário do vilarejo, porém, ela tinha rosto: o rosto dos senhores e das senhoras de sangue azul. Descobri que a grande diferença entre as duas terras não era a riqueza, mas a dissimulação. Quanto mais me afastava do reino, mais aliviado meu coração ficava.
O sol ainda estava forte e, devido ao tédio, à fome e ao cansaço, Nico chorava enquanto eu tentava acalmá-lo. Antes mesmo de avistar o vilarejo, eu pedi ao cocheiro para parar a carruagem.
− Ficaremos por aqui, Senhor.
− Não quer que eu lhe deixe dentro do vilarejo, senhora? − questionou-me.
− Não. Obrigada − desci da carruagem com Nico. − Tenha uma boa viagem de volta.
O vilarejo era, na verdade, um local com pequenas aglomerações de casas de pessoas humildes. Pela nossa própria segurança, decidi que nem mesmo um cocheiro deveria saber a localização exata de nosso futuro lar. Eu não confiaria em mais ninguém daquele reino.
Caminhamos por um bom tempo. Eu estava cansada. Cansada pela viagem, por tudo o que ocorrera nesses últimos meses e pelo peso que carregava. Em um braço, a trouxa com as roupas que consegui levar. No outro, segurava meu menino Nicolau. Ele, que chorara em parte da viagem, havia se acalmado. Parecia saber que nos aproximávamos de um porto seguro, onde ninguém nos faria mal.
Meu vestido branco já se mostrava sujo com a areia seca do local. Fazia tempo que eu não pisava por aquelas terras. Dez anos, para ser exata. Desde que eu escolhi uma vida mais próxima do Palácio Real. Nunca quis viver no vilarejo. Achava tudo muito quieto, parado e sofrido. A roça não era para mim. O pouco que ouvia falar sobre a vida no palácio me deixava maravilhada. Sempre acreditei que um dia eu seria da corte. E fui. Que um dia conviveria com a família real. E convivi. Mas os tempos eram outros e o palácio já não era mais seguro para nós.
Os meus braços não aguentavam mais o peso de Nicolau. Coloquei-o no chão. Após mais 20 minutos de caminhada, avistei o casebre onde nasci. Parecia que o tempo não havia passado por lá. As paredes de taipa, forro de palha, tudo continuava o mesmo. Até a vassoura, apoiada ao lado da porta de entrada, parecia estar do mesmo jeito de quando eu saí.
− Que cheiro bom, mamãe! – disse Nicolau.
− Sim, Nico. Aposto que é a sua vovó cozinhando.
O cheiro lembrava a minha infância. Conseguia quase saborear a comida pelo aroma. Arroz e frango. Talvez umas laranjas de acompanhamento. Lar, doce lar.
Fomos entrando no terreno sem grades. Pela janela avistei minha mãe. Sentado à mesa, meu pai esperava pelo jantar. Se a casa continuava a mesma, em meus pais as rugas e o corpo mais frágil que há dez anos denunciavam o passar do tempo. Suas peles estavam mais negras do que me recordava, mostrando o quanto o sol daquele lugar era severo. Ainda assim, senti-me aliviada. Ambos estavam vivos. Eu teria mais uma chance de abraçá-los.
− Alguém em casa? – anunciei-me enquanto entrava.
Os olhos de mamãe se arregalaram em espanto. Papai permaneceu sentado, mas percebi que seus olhos marejaram.
− Ô fia, eu rezei tanto pra Santo Expedito prucê voltar pra nóis. Num quiria morrer antes de abraçar ocê de novo! – disse mamãe, já em prantos.
Nos abraçamos instantaneamente. Eu chorava muito. Mais até que ela. Afogava-me em lágrimas, como se aqueles braços pudessem abarcar todo meu infortúnio. Ficamos assim por longos minutos.
− Peça bença para sua avó, Nico.
− Bença, vovó.
− Eu tenho um neto? – perguntou-me ela, enquanto abraçava forte o meu menino, tentando recuperar todo o tempo perdido.
Enquanto os dois tinham seu primeiro momento avó-neto, dirigi-me à mesa de jantar.
− Pai... eu voltei.
Meu pai, também em prantos, movimentou as mãos em minha direção, querendo alcançar meu rosto, mas sem saber exatamente sua localização. Notei que seus olhos estavam perdidos e sem cor.
− Se aproxima mais, minha fia. Quero te vê.
Aproximei-me. Sua mão áspera tocava meu rosto, como se seus olhos estivessem na ponta de seus dedos. Papai não enxergava mais.
− Peça bença pro seu avô tamém – pediu mamãe a Nico. – Fia, nóis num sabia que ocê vinha. Hoje a janta tá simples. Se ocê ficar inté amanhã eu faço algo mió.
− Eu fico até amanhã sim, mamãe – afirmei sorrindo.
De roupa trocada, iniciamos o jantar. Eu estava com saudade daquela comida. Minha mãe seria uma excelente cozinheira real. Fazia milagre com a pouca variedade de alimentos disponível. Eu poderia reconhecer aquele tempero de olhos fechados.
Durante a refeição, meus pais, apesar de visivelmente curiosos em relação à minha vida, deram-me um tempo, perguntando apenas sobre amenidades. Questionaram sobre a aparência do Palácio, a quantidade de funcionários, a casa onde eu morava, o cardápio da realeza e também sobre o neto que acabaram de conhecer. O tom das perguntas mudou logo após a minha última garfada do suculento frango.
− Seu pai falava que ele num tinha mais esperança que ocê voltasse pra visitar nóis – confessou-me mamãe.
− Dez anos, minha fia. Dez anos – reclamou ele.
− A vida no palácio era cheia de tarefas e compromissos... − tentei desculpar-me, em vão. − Mas não há justificativas. Foi tempo demais longe de vocês. Eu só posso lhes pedir desculpas.
− É claro que nóis perdoa ocê – respondeu meu pai, com os olhos marejados novamente.
− Ocê vai ficar com nóis por quanto tempo, fia? – questionou-me mamãe.
− Pra sempre, se vocês me permitirem.
Os dois sorriram.
− Ô fia, é claro que nóis permite. Ocês dois é bem-vindo – disse papai. Após uma pausa de alguns segundos, ele continuou – Mas tem um num-sei-o-quê me dizendo que ocê num vortô pra cá só por saudade não.
− Nóis tá te achando triste, minha fia.
Passados dez anos, eles ainda me conheciam melhor até que a mim mesma. Nico, com sono, caminhou até uma cadeira para dormir. Melhor assim, pois esta seria uma longa conversa.
− Vocês estavam certos desde o início. Lá não é um lugar para mim. Viver no palácio se mostrou perigoso.
− Conta pra nóis o que aconteceu, fia – pediu-me mamãe.
− Sim, mamãe. Contarei tudo. Desde o começo.
Falei para eles sobre o que ocorrera: a minha chegada ao palácio, a gravidez e a explosão do estábulo, passando pela coroação, a aparição da atual rainha e a movimentação política em busca do poder. Os dois ouviram tudo atentamente.
− Mas isso num tá claro pra mim ainda. E aquele veterinário, fia? Ele era mesmo uma pessoa ruim?
− O Sancho? Não sei... dizem que ele contribuiu na morte do rei, mas não tenho certeza sobre isso. Não tenho certeza sobre nada, papai.
− Tamém num entendi quem que é a verdadeira rainha... − disse minha mãe.
− Isso não importa...
− Como assim, fia? − perguntou-me.
− As duas foram consumidas pelo ódio e pelo poder. Por isso minha resposta no tribunal foi que nenhuma das duas era a princesa: não consigo reconhecer Irene em nenhuma delas. − Após alguns segundos de silêncio, eu concluí: − Elas nunca foram tão parecidas entre si quanto são agora. As duas se parecem com Bernarda.
Meus pais ainda digeriam toda aquela informação. Meu pai, pensativo, questionou-me:
− Conte uma coisa, fia: o pai de Nico... é o rei Basílio, num é?
− Como... como soube?
Ele sorriu.
− Toda vez que ocê falava do rei, sua voz ficava diferente.
− Isso quer dizer que nosso neto vai ser rei? − questionou-me mamãe.
− Sendo o único filho homem de Basílio, ele poderá ser o rei, sim. Mas, honestamente, não quero que ele volte para lá. É muito perigoso.
− Minha fia, num dá pra impedir o que tá destinado - disse mamãe. - E sendo sangue do seu sangue, se for essa a vontade dele quando crescer, ele num vai sossegar enquanto num voltar pro reino e arrumar essa injustiça.
− Espero que não, mamãe. Mas se for da vontade dele, eu farei questão de lembrá-lo que ele sempre terá um lugar pra voltar. Assim como vocês estão me recebendo de volta depois de tantos anos. Eu amo muito vocês. Muito!
Nos abraçamos durante um longo tempo. Quando Nico acordou, meus pais se aproximaram dele e lhe encheram de carinho. Enquanto eles se ocupavam intensamente de suas companhias, eu abri a carta que carreguei comigo durante todos esses anos e a li novamente.
À minha amada Jordana
Não penses mal de mim. A guerra contra Lume ocupa meus dias a ponto de não conseguir dar a atenção merecida à mulher que amo e ao meu filho que carregas em teu ventre. Pelo futuro de nosso filho, estou me esforçando ao máximo para que essa guerra cesse. Muitas vidas já foram perdidas. O nascimento do futuro rei de Torim é, para mim, um recado de Deus para que as mortes sejam interrompidas. Mas, antes que me pergunte: Sim! Estou certo de que Deus colocou um menino homem em seu ventre e que ele herdará a coroa do reino.
Amor de minha vida, tudo o que mais quero é estar com você. Algumas formalidades da coroa, porém, me impedem de assumir publicamente nossa relação. Sabes que, apesar de ser um direito, haverá quem se oponha a essa união. Estou me esforçando para que leis sejam criadas não apenas para proteger todos os direitos da criança de pertencer à família real, como também para que sejas minha rainha consorte. Quero-te ao meu lado. Tocar-te novamente e amar-te como mereces. Irene também quer-te muito bem. Seremos uma família feliz, e essa felicidade será o espelho de nosso reino.
Com amor,
Rei Basílio Lecce
Dobrei a carta e guardei-a. Meus pais ainda brincavam com Nicolau. Eu me sentia em paz pela primeira vez em muitos anos. Algo havia mudado. Não o reino, muito menos o vilarejo, mas eu. Abri um sorriso de alegria. A felicidade estava ali, ao meu alcance: minha família. E eu não poderia pedir nada mais além disso.
FIM
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