Capítulo 10
Não se falava em outra coisa no reino além do grande casamento. O evento era considerado o início de novos tempos em Torim.
Ao contrário das primeiras semanas após a coroação, eu e a rainha Irene II estávamos bastante próximas. Ela fazia questão de me colocar a par de todos os preparativos de seu casamento. Ajudei-a até a escolher detalhes da cerimônia e a decoração da igreja. Ela me abraçava e agradecia por tudo, e até mimava meu filho Nicolau quando o via. Uma época de paz e tranquilidade parecia se aproximar do reino. Mas, ao contrário da aparente calmaria, eu não estava feliz. Seria eu a única a não concordar com o desfecho daquele julgamento? E, para piorar, meus instintos diziam que o turbilhão pelo qual eu e todo o reino havíamos passado não chegara ao seu fim.
A rainha Irene II entraria na igreja acompanhada do juiz Fausto Carrero, grande amigo do noivo. Lorde Donato Arone, por sua vez, receberia o título de rei consorte. Isso significava que ele não seria o mandatário, mas era inegável a grande influência que teria no reino, ainda mais considerando os meios friamente calculados do lorde para chegar a esta posição.
Chegara o grande dia. Com Nicolau em meu colo, saí de minha casa em direção ao palácio. Lá eu iria me arrumar e colocar a roupa que me prepararam para carregar as valiosas alianças do casal real. No meio do caminho, porém, uma voz me chama:
− Jordana, preciso falar com você.
Não escondi minha surpresa ao ver quem me chamara.
− Baronesa de Pomal? O que faz aqui?
Ela aparentava boa saúde, com até menos olheiras e rugas que na época em que comandou Torim. Pelo visto, o soldo mensal recebido pela baronesa lhe fizera bem.
− Estou aqui para dar-lhe um aviso, Jordana.
− Um aviso? − questionei.
− Sim. Vindo diretamente de Irene.
− Então Irene está bem a ponto de fazer-lhe de mensageira? − eu disse, irônica.
− Confesso que sua saúde continua debilitada, mas ela sempre encontra disposição quando se trata das velhas amizades − provocou-me.
− Pois diga logo o que tem para me falar. Não quero que pensem que estou confabulando com a senhora.
− Fique tranquila, minha querida, eu serei rápida. A rainha me pediu para lhe avisar que você tome muito cuidado com a pessoa que mais ama − disse, olhando diretamente para meu filho −, pois as notícias correm, e nunca se sabe o que podem fazer com crianças indefesas, não é?
A fúria me dominou instantaneamente. Num rápido e forte movimento, minha mão direita foi ao encontro do rosto da baronesa. Nicolau, que estava em meu braço esquerdo, mostrou-se assustado. Eu o abracei, protegendo-o, e falei:
− Pense muito bem antes de ameaçar a mim e ao meu filho novamente, sua vadia! Se encostar um dedo em Nicolau, eu mato cada um de vocês!
Com o tapa, a baronesa deu dois passos para trás. Ainda com sua mão no rosto estapeado, ela disse sorrindo:
− Pobre menina. Acha mesmo que serei eu quem encostarei no seu filho? − disse em tom sarcástico. − Não se esqueça, Jordana: isso foi um aviso. Guarde-o bem.
− Saia daqui agora! − gritei.
A baronesa se afastou rapidamente, até sumir da minha vista. Minhas pernas tremiam. Nicolau, assustado, iniciava um choro. Eu o abracei.
− Fique calmo, Nico. Mamãe está aqui para protegê-lo.
Apesar da tensão, o caminho restante até o palácio foi tranquilo. Enquanto andávamos, Nicolau foi acalmando-se. Eu, ao contrário, não conseguia me esquecer daquelas palavras. Com qual intenção a baronesa me procuraria sozinha para me ameaçar? Algo não se encaixava naquilo tudo. Esperta como era, a baronesa dificilmente se exporia daquela forma.
Devido ao inesperado encontro e à estranha ameaça, não tive coragem de deixar Nicolau sob os cuidados da babá do reino. Enquanto me maquiavam, meu filho estava lá. Trabalhei com Nico do meu lado. Não tirava os olhos do meu filho. As palavras da baronesa martelavam em minha mente.
Tudo pronto para a grande festa. Com Nicolau em meu colo, eu já me encontrava em frente à Igreja Matriz de Torim, um templo bem maior que a pequena capela de Santo Expedito. A decoração do espaço era digna de um evento da realeza: possuía grandes vasos de gesso com um interminável número de rosas cor de sangue.
Eu usava um vestido branco e rendado, espartilhos marcando a cintura e uma tiara feita com pedras preciosas emprestada pela própria rainha. Meu filho também estava lindo, com colete escuro e uma calça branca de veludo.
Todo o luxo era a realização de algo que sonhara desde pequena, quando ainda morava no vilarejo: ir às grandes festas, usar roupas caras, adereços valiosos e frequentar os mesmos espaços da nobreza. Naquele momento, entretanto, nada daquilo me fazia sentido. Aquele lugar não me pertencia mais, se é que me pertenceu algum dia.
Entrando na igreja, vi Telma, a babá real, cuidando de duas crianças da nobreza.
− Olá, Telma.
− Olá, dona Jordana.
− Telma, como eu entrarei com as alianças, preciso que cuide de Nico durante a cerimônia.
− Não há problemas, senhora. Ele não me dá trabalho algum − ela disse.
− Você pode me prometer uma coisa?
− Claro, senhora.
− Não tire os olhos dele... não deixe que nada de mal lhe aconteça − pedi.
− Sim, prometo. Mas por que diz isso? Eu fiz algo a seu filho que não tenha gostado, senhora?
− Não é isso, Telma. Você sempre cuidou muito bem de Nico. Confio em você, mas não nos outros. É difícil explicar. Apenas prometa que não tirará os olhos dele, por favor.
− Está prometido, senhora − respondeu-me.
A babá levou Nico e as outras duas crianças para um banco localizado na parte central da igreja. Fiquei aliviada. De lá de trás eu poderia ver onde meu filho se encontrava.
As centenas de convidados já haviam enchido os bancos da matriz. Dom Carlito Peregrini, que realizaria a cerimônia, também já estava preparado. Ana, a mensageira real, entregou-me a pequena almofada com as duas alianças de ouro, adornadas com pequenas pedras de diamantes e safira.
− São lindas, não são? − perguntou-me Ana de forma retórica.
− Sim. Dignas desse conto de fadas, minha amiga − respondi.
Avistei o noivo, lorde Donato Arone, vestindo um terno com um tom escuro de azul, sapatos pretos de couro e calças brancas de veludo. Sua elegância contrastava com seu sorriso de soberba. Mesmo com sua entrada se aproximando, ele foi ao meu encontro.
− Dana, como você está linda − cumprimentou-me ele. − Agora que trabalhará para mim, eu posso lhe chamar de Dana, não é mesmo? Esse apelido combina tão bem com você.
− Sinto muito, lorde Donato, mas prefiro Jordana. Como sabe, o título de rei consorte de Torim implica no aumento das formalidades.
− Tem razão. Nem tudo são flores na realeza, não é mesmo?
Eu sorri.
− Sim, concordo. Mas acredito que o senhor já deve ter colocado na balança há um bom tempo sobre os prós e contras de pertencer à família real. Estou certa? − provoquei.
Ele se aproximou de mim, também sorrindo.
− Agora entendo porque a rainha lhe considera tanto. Sua espontaneidade é mesmo adorável, Dana.
A banda real iniciou a música. As portas se abriram. Era a deixa para o futuro rei de Torim entrar na igreja. Ele fez uma leve reverência para mim e entrou. Assim que as portas se fecharam, vejo a rainha Irene II subindo as escadas, acompanhada do juiz Fausto Carrero.
Ela estava linda. Seus cabelos castanhos estavam envoltos em um véu ornado com flores de laranjeira. O vestido bege feito de um leve tecido em seda possuía detalhes em diamante. Em seu pescoço, um pingente com uma brilhante pedra azul real. Seus olhos verdes, porém, me chamaram ainda mais atenção: eles passavam confiança.
− Você está linda, rainha − eu disse.
− Muito obrigada!
− Espero que esse casamento lhe faça feliz, Majestade.
Sorrindo, a rainha Irene II se aproximou de mim. Enquanto me abraçava, ela disse bem próximo do meu ouvido:
− Sabe, Dana, para que essa coroa chegasse à minha cabeça, foi preciso realizar alguns sacrifícios. Mas, no fim, valeu a pena. Às vezes, eu nem acredito que consegui, Dana. E pensar que nada disso teria acontecido sem a sua ajuda.
Eu não disse uma palavra. Aquilo era verdade. Não fosse por mim, as coisas teriam sido diferentes. Ainda me abraçando, ela prosseguiu:
− Como lhe disse certa vez, eu estava disposta a fazer qualquer coisa para ter o que era meu por direito.
− Apesar dos sacrifícios, tudo deu certo, não é mesmo, Majestade? − eu disse.
− Dana, Dana. Sabe que gosto muito de você, não sabe? Considero a você e ao seu filho como se fossem da família. − Ela olhou diretamente nos meus olhos e prosseguiu: − Mais do que isso, Dana, eu considero Nicolau como se fosse o irmãozinho que nunca tive.
Eu não tive reação ao ouvir suas palavras. A marcha nupcial começou a tocar. A rainha desfez o abraço e se posicionou na entrada, juntamente com o juiz. Enquanto caminhava, seu véu cobria quase todo o tapete vermelho. Aproveitei a deixa e olhei em direção ao banco onde Nicolau estava, e ele acenou para mim. Achei que estava ficando neurótica, com a impressão de que todos me perseguiam. Respirei para me acalmar. Nada de mal aconteceria. Repetia a frase mentalmente. Nada de mal aconteceria. Nada de mal aconteceria. Repeti de forma ininterrupta até que eu mesma acreditasse no que dizia. Mas não acreditei.
Dom Carlito Peregrini iniciou a celebração. Tantas coisas passavam pela minha cabeça que eu mal prestei atenção em suas palavras. Lembrei também de meus pais, e a saudade por eles me atingiu em cheio. Eles não conheciam meu filho e nem sabiam que já eram avós. Depois de tantos anos longe e sem notícias, eu apenas torcia para que eles ainda estivessem vivos. Quando foi que eu me afastei tanto de minhas origens?
Uma voz interrompeu meus pensamentos.
− Jordana, se prepare. Sua entrada é agora − avisou-me Ana.
Coloquei as duas mãos embaixo da almofada vermelha que assentava as duas alianças reluzentes e preciosas. A banda real iniciou uma música. Assim que a porta se abriu, eu esbocei um falso sorriso. Aparentar felicidade é uma das regras de todo casamento.
Fui me aproximando lentamente do altar. Sentados nos bancos, a nobreza dos reinos de Torim e Sobral. Nenhum deles se importava comigo. A estrela daquele momento eram as alianças, não eu. Em verdade, eu e as alianças formávamos um estranho contraste. Não apenas por conta de minha pele negra próxima dos brilhantes anéis, mas, principalmente, porque naquele momento eu me sentia uma intrusa. As alianças pertenciam àquele espaço, eu não.
Continuei a caminhada rumo aos noivos com os olhares de todos voltados a mim. No altar, um juiz vingativo e um padre conivente com um golpe; um lorde oportunista e uma rainha que eu não sabia se era a verdadeira. Nunca um corredor foi tão longo para mim. Cada passo parecia uma tortura. Sentia-me como se estivesse vendendo minha alma. Cheguei na metade do caminho. A rainha olhava para mim, assim como todos os outros. Mas seu sorriso parecia-me diferente. Não era um sorriso de felicidade, nem ao menos tristeza. Aquele sorriso era uma incógnita. Aquele olhar estava em direção a mim.
Lentamente, eu vi a rainha realizar um delicado movimento com suas mãos. Seu braço foi se erguendo com seu dedo indicador, um pouco acima dos outros, em riste. Eu interrompi minha caminhada. Senti um arrepio congelante com o que meus olhos viram. A rainha levou seu dedo indicador em direção ao seu ouvido, coçando-o de forma não muito sutil. Lembrei-me de Bernarda e de sua estranha mania. Seria ela a condessa? Aquilo, então, não passaria de um golpe pela coroa?
Olhei para o lado à procura de Nico. Nem ele e nem a babá e as outras duas crianças se encontravam mais no banco da igreja. Onde estaria Nico? Pela primeira vez na minha vida, senti a sensação torturante de que eu perderia meu filho.
Deixei a almofada vermelha cair. Com a queda, as valiosas alianças rolaram ao chão, cada uma para um lado da igreja. Virei-me em direção à saída. Corri. Corri para fora. Corri em busca de meu filho. Eu não conseguiria viver caso algo lhe acontecesse.
Antes de sair de dentro do templo, pude ouvir a voz da rainha.
− Dana, o que está fazendo? Para onde você está indo? Volte aqui, Dana!
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