Capítulo 1


Eu estava feliz. Já acostumada à vida no palácio. Há anos eu havia saído do pequeno vilarejo onde nasci. Quem diria que aquela pobre menina conviveria um dia tão próxima da realeza?

Eu caminhava em direção ao estábulo. Logo, parte da família real voltaria de seu passeio à cavalo: o rei Basílio Lecce, a princesa Irene Lecce e sua prima, a condessa Bernarda Dioli. Chegando ao local, avistei um homem de meia-idade e com um vasto bigode acariciando um grande puro-sangue inglês.

− Boa tarde, senhora − ele me disse.

− Senhorita − corrigi.

Percebi que o homem olhou de forma não tão discreta para minha barriga. A gestação de cinco meses já se fazia visível.

− Desculpe, senhorita. Como se chama?

− Sou Jordana Modeste, dama de companhia da princesa Irene. E quanto ao seu nome? Você trabalha aqui?

− Sim. Sou o novo veterinário do estábulo. Meu nome é Sancho Floriano. Encantado −disse ele em uma leve reverência.

Nossa breve conversa parecia ter chegado ao fim. Porém, antes que o silêncio se tornasse constrangedor, ouvimos o barulho do trote dos cavalos. O trio real já podia ser visto ao longe.

− Fico impressionada com o quanto a princesa Irene e a condessa Bernarda se parecem. Ainda que eu conviva diretamente com a princesa, dessa distância eu não consigo identificar quem é quem − comentei.

− Elas realmente são parecidas. Ambas de pele branca, olhos verdes e o mesmo tom castanho dos cabelos. Soma-se a essas semelhanças o fato de usarem o mesmo penteado, o mesmo estilo de vestimenta. Acredite ou não, até a raça dos cavalos das duas é igual: dois belos andaluzes negros.

− Mas de certo é a... − interrompi o que seria um comentário indelicado.

− Pois se começou falando, termine − insistiu ele.

− Termino... mas terá de perdoar minha indiscrição.

− Já está perdoada.

− Estava eu dizendo que a condessa Bernarda é quem vive à sombra da princesa, sempre repetindo cada passo e gesto de nossa futura monarca − confessei.

− Pois é o que dizem: as princesas ditam a tendência da moda na corte, não é mesmo?

Rimos os dois. Enquanto isso, o trio real desmontava de seus cavalos. O rei Basílio, alto em comparação aos homens do reino, ostentava uma barba com alguns fios grisalhos. A princesa, ainda que jovem, já se portava com uma elegância digna da realeza. Da mesma forma Bernarda, não fosse pela estranha mania de coçar o orifício auricular com o seu dedo mindinho, produzindo um barulho bem característico.

− Já souberam que hoje é dia de festa aqui no Reino de Torim? − perguntou-nos o rei.

− Não, mas festas sempre me animam, Majestade − respondeu Sancho.

− Será uma festa em comemoração ao fim da guerra contra o Reino de Lume. Toda a corte, a igreja, o parlamento e os juízes estão convidados.

− Perdoe-me a pergunta, Majestade, mas o rei Augusto, monarca de Lume, não é seu parente? − questionou o veterinário.

− Sim, somos primos. Mas não há sangue que resolva as diferenças quando do outro lado não há disposição ao diálogo. Porém, num acordo entre cavalheiros, decidimos cessar definitivamente os conflitos. Se é que a palavra de Augusto ainda vale de algo.

Enquanto os cavalheiros conversavam, a princesa Irene veio em minha direção. Bernarda a acompanhava como se fosse sua sombra.

− Dana − ela era a única a me chamar por esse apelido −, venha ver o lindo potro que nasceu hoje pela manhã.

A princesa praticamente me empurrava para dentro do estábulo. O rei Basílio, Sancho e a quieta condessa Bernarda seguiram-nos. O local, feito de madeira e junco, possuía algumas janelas grandes e muita palha dentro das baias dos vários cavalos de raças nobres. Os olhos da filha do rei brilharam quando viram o pequeno animal.

− Esse potro é um cruzamento de uma égua andaluz e um cavalo alter. Dará um lindo garanhão − disse Sancho.

− É um belo bebê. Papai acompanhou o seu nascimento − afirmou a princesa Irene.

O rei aproveitou a deixa e se virou para mim.

− Por falar em bebês... Jordana, coloquei os médicos da corte à sua disposição para acompanhar a sua gestação. Não hesite em recorrer a eles. Você sabe o quanto nós lhe queremos bem, não sabe?

− Agradeço a gentileza, Majestade − respondi.

− Majestade − disse Sancho −, sei o quanto gosta de acompanhar nascimentos de potros. Acredito que o filhote da égua puro-sangue nasça ainda no final desta tarde, caso queira ver.

− Que rapidez! Pensava que esse potro nasceria apenas no mês seguinte. Mas se o nascimento acontecer antes do grande jantar, farei questão de acompanhar − afirmou o rei, dirigindo-se para a saída do estábulo.

A porta do local, porém, parecia emperrada. Sancho foi ajudá-lo.

− É preciso dar uma erguida na porta, Majestade. Pronto, está aberta.

− Logo se vê a idade chegando, quando o rei precisa de ajuda para abrir uma porta − disse o monarca, acompanhado pelo riso de todos.

− Peço licença para retirar-me a fim de me preparar para o grande jantar e ver se meus pais precisam de algo. − Era a primeira vez no dia que ouvia a voz da condessa Bernarda. Enquanto se afastava, pude escutar o som do seu coçar de ouvidos.

− Da mesma forma irei eu. Você vem também, Dana? − perguntou-me a princesa.

− Sim, mas não agora, minha princesa. Com sua licença, precisarei ir à minha casa antes.

Despedimo-nos todos. O trio real caminhou em direção ao palácio enquanto Sancho permaneceu no estábulo. Eu, ao contrário do que havia dito, não iria até minha casa, mas sim à igreja. Apesar de não frequentar missas há um tempo, eu havia crescido em uma família religiosa e, por isso, senti a necessidade de me confessar. Pediria perdão pelo meu pecado.

Avistei a capela central. A capela de Santo Expedito fazia-me recordar de minha mãe, sua devota. Há sete anos não a via e nem a meu pai. Apesar da saudade, voltar ao vilarejo, ainda que de passagem, não era uma opção naquele momento.

A capela era extremamente bela apesar de não tão imponente. Paredes brancas adornadas por grandes pedras cinzas em suas extremidades e uma alta torre com sino. Eu já estava em frente à entrada principal. Geralmente a capela ficava aberta no período da tarde. Naquele dia, porém, a porta de madeira encontrava-se fechada. Forcei-a, mas estava trancada. Quase fui embora, quando vi o portão lateral semi-aberto. Decidi entrar.

− Padre? Padre Joel? − chamei enquanto entrava.

Sem resposta, decidi espiar pela janela que dava para o salão anexo à capela. O que vi naquele momento me causou, no mínimo, um grande estranhamento. Uma mulher seminua era apalpada pelas mãos do velho padre. Ambos entregues a beijos ardentes. Ela me era familiar. Uma dama da corte. Casada. Estava ali um padre hipócrita que pregava a moral e bons costumes envolvendo-se com uma mulher adúltera. Desisti da minha confissão naquele momento. Não confessaria meus pecados carnais a um padre vítima da mesma fraqueza.

Decidi voltar ao palácio. Ajudaria a princesa Irene a se vestir. No caminho, um leve mal estar. Nada sério, apenas sintomas de minha gravidez. Continuei rumo à residência real. O palácio, ao contrário da capela, era imponente. Alto, construído com um belo tipo de pedra clara, além de uma infinidade de quartos, cômodos e móveis feitos de madeira de lei. Uma verdadeira morada de reis e rainhas.

Entrei, subi a escadaria e bati levemente na porta dos aposentos da princesa.

− Peço licença, princesa.

− Pode entrar, Dana.

Seu quarto era imenso. Cama forrada com uma manta de seda. Nas paredes, estantes com vários objetos artesanais em gesso, todos feitos pelas mãos da própria princesa: alguns santos, pequenos animais e outros ornamentos. Suas habilidades artesanais sempre me impressionavam.

Ao me ver admirando suas obras, ela desabafou:

− Acredita que Bernarda está aprendendo artesanato em gesso também? Já não aguento mais ela repetindo tudo o que faço, Dana. Achei que isso passaria com o tempo, mas temos 16 anos e tudo continua da mesma forma!

− Um dia ela encontrará seu caminho, minha princesa.

− Sim... eu bem soube que ela já encontrou seu caminho nos braços de um homem bem mais velho... − insinuou Irene num divertido tom de maldade.

− O que quer dizer com isso? − perguntei, curiosa.

− Não é nada. Esqueça.

− Por favor, Alteza. Eu sei guardar segredos. Além do mais, somos amigas, não somos?

− Pois somos, é claro. Mas espalhar fofocas de minha prima não parece de bom tom.

− Tem razão, princesa. − Após alguns segundos de silêncio, resolvi mudar o assunto − Já escolheu o vestido para esta noite?

− Já sim. Vestirei este azul-real. Estou certa de que Bernarda não possui um vestido dessa cor − disse, rindo. − Dana, já que somos amigas, gostaria de perguntar-lhe algo. Isso, claro, se não for invasivo de minha parte.

− O que quiser.

− Esse bebê que está esperando... quem é o pai?

Nesse momento tudo o que aconteceu voltou à minha memória. O que eu falaria? Fiquei nervosa e o súbito nervosismo intensificou meu mal-estar. Minha testa suava e meu estômago quase regurgitou o alimento do almoço.

− Você está bem, Dana?

Eu precisava urgentemente de um banheiro, e o mais próximo era o da princesa. Não aguentaria chegar ao toalete comum da corte.

− É um desconforto devido à gravidez, minha princesa. Peço desculpas pelo pedido, mas será que eu poderia utilizar o banheiro dos seus aposentos? − pedi, envergonhada.

− Mas é claro, Dana!

A princesa, sempre solícita, deixou-me apoiar nela enquanto me ajudava a caminhar até o banheiro real. Apoiei-me na pia de mármore. De dentro do banheiro ouço uma voz.

− Irene, minha prima. Onde você está?

Era Bernarda.

− Estou aqui. O que houve? − disse a princesa, enquanto saía do banheiro.

− Seu pai, o rei. Algo grave aconteceu. Ele está caído no estábulo. Venha, rápido!

Ouvi os passos apressados das duas ao saírem do quarto. Eu, ainda que não totalmente recuperada, decidi ir em direção ao estábulo. "O que teria acontecido ao rei?", pensei. Com meus passos incertos devido ao mal-estar, desci a grande escadaria de forma cambaleante. Avistei o barão e a baronesa de Pomal, pais de Bernarda. Eles me lançaram um nada sutil olhar de reprovação. Acredito que consideravam-me indigna de conviver na corte, ainda mais após ter engravidado antes de casar. Dei de ombros e segui o mais rápido que pude para a saída do palácio.

Ao sair, avistei ao longe as duas correndo. Vi quando a princesa e sua prima entraram no estábulo. A ânsia e mal-estar pioravam enquanto eu acelerava o ritmo das minhas passadas. Quando estava há aproximadamente 50 passos de distância do local, ouvi um estrondo seguido de uma forte luz: parte do estábulo havia explodido. A última coisa que ouvi foram gritos, antes de minha vista escurecer completamente. Caí desmaiada.

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