Recruta Gregorvich
Os recrutas da nonagésima sexta companhia foram bem avaliados pelo comando do exército de Durkheim. Uma boa avaliação assim era típica para os recrutas treinados pelo Sargento Yurenko, do quarto batalhão de infantaria localizado em Vetrocrav. A fama do sargento era grande no exército e aumentou nos tempos de guerra após a veiculação, nos teatros de cinema, de um filme publicitário do exército sobre o recrutamento, treinamento e serviço nas forças armadas. Neste filme, Yurenko aparecia como narrador e foi retratado de modo a exacerbar o nacionalismo que sentia e como dedicava-se com afinco à sua missão de treinar os novos recrutas. Surgiram comentários sobre a autenticidade de sua personalidade. Seria ele autêntico em sua conduta? Ou era um bom treinador justamente por sua capacidade de atuação? Apenas quem o conheceu de perto, como Ilya Gregorvich, sabia que na realidade ele era um sujeito sádico e que seu maior prazer era causar sofrimento aos recrutas que instruía. Justificava sua falha moral sob o pretexto do dever de ensinar o ofício do soldado, mesmo utilizando-se de métodos severos e até cruéis.
Ilya sentiu-se vitorioso e jubilososo no dia em que deixou o quarto batalhão junto com cento e vinte recrutas para engajar-se na frente de batalha. Finalmente estava livre de Yurenko. O sargento havia escolhido entre os recrutas uns poucos que dedicou especial atenção. Ilya por ter porte físico fraco e pouca disposição para atividades físicas, sentiu-se especialmente perseguido por Yurenko. Sua sanidade estava abalada. Acordava no meio da noite com pesadelos em que o implacável sargento o perseguia. Eram gritos ao lado de sua orelha, agressões físicas e principalmente, muitas humilhações.
O rapaz examinava seu fuzil TNV20 fabricado pela empresa bélica estatal, Thonva. Era uma arma pesada feita para homens mais fortes que Ilya, com a qual precisava se adapatar. Os cristais na haste emitiam um brilho tênue avermelhado. Um tiro da arma era capaz de abrir um rombo no inimigo. Não era uma arma de projétil, mas sim uma cuspidora de fogo concentrado chamado de Igna.
Uma forte ansiedade crescia no rapaz. Ele sabia que um confronto com o inimigo se aproximava. Ele e os membros de sua companhia ocupavam dois vagões apertados. Estar num trem trazia lembranças de quando ele e seu colega, Halle Bremmem, estiveram encrencados. Estavam sendo perseguidos pelo Vorn-Nasca, uma criatura das trevas que quase pôs fim à vida de ambos. Agora se sentia novamente acossado do mesmo modo diante de um futuro incerto com a morte à sua espreita.
Além do medo, havia forte sensação de inadequação, pois alguém com tanto talento para matemática poderia ser útil ao estado de algum outro modo no contexto da guerra. A culpa consumia sua alma. Pensava que se não fossem suas ações no passado a guerra não teria acontecido. A guerra era culpa sua. Muitas vezes aquilo martelava em sua cabeça. Ele tentava racionalizar o assunto, mas percebia que suas ações foram apenas uma mera centelha que causou a explosão da guerra. A verdadeira culpa era dos corruptos que usavam de suas posições no estado para obter benefício próprio. Não compreendia bem as questões ligadas às relações internacionais, por demais complexas e confusas, e sem realmente compreender os motivos da guerra, retornava ao raciocínio que fazia a culpa recair sobre si. Se ele não tivesse entregado as provas para a imprensa, o escândalo da Usina de Nergorod não teria sido notícia internacional. E segundo pensava, o Império Makluskey precisava apenas de um álibi para justificar seu ataque. Uma ação de defesa contra a ameaça de Durkheim que crescia para vir a ser a nação mais poderosa do mundo.
Seus pensamentos voltavam para os óculos que passou a chamar de lentes da perdição. Lembrava-se do dia em que tomou posse deles após da morte misteriosa daquele desconhecido. Quando aquilo aconteceu ele não sabia que as lentes eram especiais e que permitiam enxergar a verdadeira natureza de seres sobrenaturais, ou mesmo, outras manifestações de energia manótica. Sendo assim, não chegou a imaginar o que aquele homem que morreu teria visto com as lentes antes de morrer. Teria visto um Vorn-Nasca? Algo pior? Como os óculos foram parar em suas mãos? Seria ele um conhecido de Orgeila Bertonk, o funcionário que tentou levar a público a existência da terrível usina subterrânea em Nergorod? Estaria ele tentando levar as provas adiante? E se foi morto por alguém, por que o assassino não levou os óculos naquela ocasião? Estas perguntas incômodas circulavam em sua mente como assombrações. Um enigma insolúvel. De qualquer forma, as lentes agora estavam nas mãos da organização criminosa daquele Vorn-Nasca. O monstro que Ilya e Halle destruíram com a ajuda do veneno oferecido pelo velho elkin Firnamul'Xir.
— Hoy, Gregorvich — chamou Skeniev, um dos companheiros de Ilya — Será que pode parar de fazer essas caretas? Comeu estrume, hã? Sua cara feia me incomoda!
— À merda com seu incômodo, Skeniev!
Este sorriu mostrando dentes tortos e amarelos. Tirou da tûnica cinza uma garrafa de metal e apontou para Ilya — tome um trago. Está precisando.
Ilya aceitou. A aguardente queimou a garganta e fez os olhos lacrimejarem.
— Essas caretas são de medo da morte, hã? Ou medo de uma morte horrível e dolorosa? — sorriu sarcástico. Ele era um sujeito magro, rosto fino, olhos cor de chumbo com pálpebras protuberantes, nariz e bochechas vermelhas, queimadas de sol e de frio.
Ilya gargalhou — Medo da morte? Há! Eu com medo da morte? A morte é minha melhor amiga e velha companheira. Se não fosse ela, eu nunca teria ficado noivo da Marya.
— Marya? Então as caretas são por causa de sua garota, hã?
Ilya mostrou uma foto para Skeniev. — Antes fossem por causa dela...
— Uuhú! Ela é muito bonita! Nem é mulher feita, certo?
— E daí? Nem eu sou homem feito. Ficamos noivos uns poucos dias antes de ser recrutado.
— E vocês dois já...
— Pensei que estava interessado no porquê de minhas caretas.
— Verdade.
Ilya estava cansado de não ter ninguém para conversar há tanto tempo. Cansado daquele estúpido treinamento militar. Abriu-se então a um estranho. Contou-lhe toda sua história. Conversaram durante horas e mais horas durante a longa viagem. Encontraram um no outro um confidente que os ajudaria a enfrentar a vindoura frente de batalha. Skeniev era um bom ouvinte e também contou um pouco de sua história. Havia nascido e crescido no subúrbio de Kassev, a maior cidade de Durkheim. Era solteiro e trabalhou muitos anos como operário numa indústria preparando e envasando conservas de pepinos, aspargos, raiz de mokris, ovos de mandraques e coisas do gênero. As três garrafinhas de aguardente que o soldado trazia foram consumidas madrugada adentro até que ambos caíram no sono.
O oficial Soukanthikoff, encarregado pelos recrutas daquele grupamento, precisou acordar Ilya na base dos pontapés. Gregorvich ergueu o tronco de sobressalto sentido a ressaca martelar sua cabeça. O vagão estava vazio.
— Você está fedendo a álcool, recruta Gregorvich! — berrou o oficial.
— Sim senhor! Quero dizer, me desculpe senhor! — o rapaz tinha o rosto e cabelos curtos amassados.
— Vamos, de pé de uma vez!
Ele obedeceu como pode e uniu-se aos demais recrutas do seu grupamento, cerca de setenta homens.
Soukanthikoff vestia o uniforme cinzento e escuro dos oficiais. Tinha o nome de guerra bordado em amarelo no lado direito e duas faixas azuis cruzavam os braços indicando sua patente de segundo tenente. Era um homem muito jovem, de queixo quadrado com covinha, cabelos alaranjados espetados e olhos azuis-violeta que evidenciavam sua etinia karis. Tinha sotaque forte de interiorano, um olhar frio e atitude circunspecta. Não sorria e tão pouco usava humor para aliviar as tensões.
— Vamos lá, bando de molengas! Marcharemos para o sudeste por três dias. Não quero saber de atrasos e de bebidas.
Ilya olhava à sua volta tentando entender onde estavam. Não havia uma estação de manotrilho por perto. Estavam no meio do nada.
— Recruta Gregorvich! — chamou o segundo tenente — irá receber apenas meia ração e o triplo de serviços como punição por bebedeira.
Skeniev involuntariamente mostrou os dentes, imaginando que escaparia de uma punição.
— Você! — apontou Soukanthikoff para ele. Fez uma pausa para ler o nome bordado de preto na túnica amarela desbotada — Recruta Skeniev! Vai marchar sem ração por trazer bebia e distribuí-la a outros recrutas.
Skeniev baixou os olhos, desanimado.
Logo, receberam instruções, formaram filas e marcharam rumo sudeste sem saber direito para onde iam. Ilya era o mais magro e fraco entre os recrutas. Os equipamentos eram pesados. Além do mochilão cheio de material de campanha, carregavam o fuzil que parecia feito de chumbo. Os braços e pernas latejavam após algumas horas de marcha e para Ilya, que ainda carregava consigo a valise com cerca de duzentas doses do soro, a coisa toda era mais penosa. Tinha que aplicar uma dose diária do soro para manter o tumor em seu cérebro estabilizado. As fortes enxaquecas que sentia diminuíram ao longo do tratamento, mas junto com elas minguou sua capacidade fenomenal de fazer cálculos mentais. Ele estimava que sua capacidade havia sido reduzida a um quinto e para resolver problemas mais complexos precisava de caderno para tomar notas. Mas aquilo pouco importava. Em verdade, a única coisa que importava naquele momento era quantos passos ainda teria de dar antes que o tenente Soukanthikoff resolvesse ordenar uma pausa para descanso. Felizmente, o descanso veio antes do rapaz desmoronar. O treinamento servira para algo, afinal. Antes dele, não teria feito um décimo do caminho sem desmaiar de cansaço. Talvez, sem a ressaca, a marcha matutina poderia ter sido até tranquila. Como prometido, ele recebeu apenas meia ração e sentiu-se compelido a dividi-la com Skeniev.
— Melhor comer alguma coisa — ofereceu Ilya.
— Bondade sua, mas melhor não.
— Tem certeza?
Skeniev fez que sim.
— Pegue, meia fatia de queijo, ao menos.
— Eu dou meu jeito, obrigado Gregorvich.
— Faz bem, este queijo está horrível, sal puro! — mastigou desanimado e sentado na campina, sob o agradável sol do meio dia, adormeceu sentado com a cabeça pendendo para frente.
O sonho veio muito rápido. Corriam em meio a fogo e explosões. Era um sonho recorrente. Havia sonhado aquilo há mais de um ano na estufa do velho elkin, Firnamul'Xir. Agora soube que o sonho seria verdade, pois reconheceu os rostos de Skeniev, do segundo tenente e outros. Estavam próximos da costa marítima. Centenas de menodrols desembarcavam em botes e à distância navios artilheiros disparavam seus canhões contra fortificações improvisadas ao longo da costa. Os navios Makluskey eram compostos de madeira e metal, largos e retangulares como balsas e muito altos, com cinco conveses empilhados. Grandes paletas como as de moinhos d'água eram impulsionadas por imensos fornos de carvão e a fumaça negra expelida pelas altas chaminés enegreciam o céu do litoral. Toda lateral dos navios era cravejada de canhões manomagnéticos que zumbiam e cuspiam bombas de óleo e metal em chamas que explodiam formando cogumelos ardentes de fogo esverdeado.
A infantaria inimiga não tinha rosto. Todos menodrols usavam máscaras metálicas com traços lupinos e com expressões agressivas, dentes à mostra e olhares fixos. Disparavam seus rifles traçando o ar com rastros de fogo azulado.
A casamata na qual Ilya e seu pelotão se abrigavam ruiu após ser atingida por três bombas seriadas. Alguns perderam suas vidas e Soukanthikoff comandou a retirada. — Para fora! Rápido homens, para fora!
Ilya estava em choque, pois viu morrer horrivelmente um jovem por quem sentia forte empatia. Chocado e catatônico sentou-se observando o local onde o rapaz estava antes de explodir em pedaços.
— Gregorvich! — chamou o tenente — Levante-se de uma vez!
Ele despertou sentindo a bota do mesmo tenente pressionando seu peito.
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