O Sono de Mil Ciclos

Ilya abriu os olhos e desejou que aquilo tudo fosse apenas um sonho estranho. Levou as mãos até o pescoço e sentiu a pele fria, macia e de textura rugosa da criatura. Esforçou-se para assentar-se e percebeu que estava faminto. Levantou-se e removeu dos braços e do peito fiapos de palha que estavam grudados em seu corpo. Escutou vozes não muito longe e resolveu se aproximar. Viu Balkan e Skeniev conversando ao lado de uma fogueira, sobre a qual, uma armação de madeira sustentava um caldeirão com algo cozinhando.

A voz de Ilya veio rouca — Ainda bem que não sou o único com fome aqui.

Skeniev não sabia o que dizer, mas Balkan parecia sempre disposto a falar algo — Vejo que estão de pé... E então?

— Isso aí já está pronto? — os olhos de Ilya estavam fixados no guisado.

Skeniev deu com os ombros e disse — Por que não prova e nos diz? — entregou a ele uma concha e um pratinho de metal, parte do equipamento militar que carregavam nas mochilas.

Ilya atacou a comida e, concentrado, repetiu três vezes com apetite voraz. Balkan e Skeniev observaram sem conseguir evitar ficar olhando para a criatura enroscada no pescoço dele.

Depois de saciado, ele indagou, como se nada estranho tivesse acontecido — E então? Onde está Halle? O que vamos fazer agora?

— Boa pergunta — retrucou Balkan.

Skeniev completou apontando para a casa dos Gagarin ao longe — Halle está lá com os tios. Talvez agora o velho esteja mais calmo.

Balkan prosseguiu apontando para o pescoço dele — Como se sente, Ilya? Você o viu, não foi?

— Ah, sim. Isso tudo é muito confuso. Aliás, estamos ambos confusos, não é Sr. Urguda?

A coisa se remexeu e seu pescoço esticou-se fazendo a cabeça aparecer. A cabecinha estava rotacionada vendo tudo de ponta cabeça, mas se endireitou na medida em que falava com sua vozinha tênue e aguda — Verdade... Não consigo entender como a prisão tenha ido parar nas mãos de alguém jovem e inexperiente como você — dirigiu-se a Balkan.

Ele deu com os ombros — Foi um presente... Eu fiquei ansioso.

— Disso eu sei. O que fico pensando é: onde estava a cabeça de que quem lhe ofereceu a prisão de Drogorn como um presente.

— Dro-Drogorn? — gagejou Balkan.

— E agora, graças a você, meu jovem, ele está solto por aí...

Balkan deu com os ombros — Está feito... Poderíamos capturá-lo novamente?

— Para a sorte de vocês, esta região está estéril... Digo, em relação a energias mágicas. Então, ao menos, ele não irá se fortalecer facilmente. O mundo inteiro está assim, ou só esta região?

— Como é mesmo seu nome?

— Urguda.

— Oh — Balkan ficou surpreso. Havia lido sobre ele em livros de história — Bem, mestre Urguda, há alguns locais onde ainda há magia, chamamos esses locais de oásis. Mas oásis onde a magia é muito forte, são raríssimos.

— Com licença, mas não vejo onde essa conversa toda pode nos levar — resmungou Skeniev. — Estamos em guerra, somos foragidos, desertores, e agora Ilya está com este... Urguda.

Ambos ficaram em silêncio por alguns instantes refletindo a respeito do que Skeniev disse.

— Pois então, rapaz, some a tudo isto o fato do Yrkun-Nasca, braço direito do Príncipe do Abismo, Kunx-la, estar solto. E também, haver menodrols por perto. Com efeito, a deserção de vocês pode vir a ser um problema menor.

Skeniev coçou a cabeça. Não conseguia entender bem o que aquela criatura explicava. — Kunx-la? Mas que tipo de nome é esse?

— É um nome wlegdar. E Kunx-la jurou tomar todo este mundo em suas mãos.

— Pois que tome! — Skeniev estava irritado e levantou-se. — Discutam à vontade... Eu vou dar o fora daqui!

— Espere Skeniev! — Recorreu Ilya, que observava toda a conversa quieto, até então. — Eu, mais que ninguém, queria simplesmente dar o fora. Mas aprendi que não podemos ter tudo o que queremos.

— Você não sabe nada sobre o que eu quero, Gregorvich!

— É verdade, eu não sei, mas ao menos sei que estamos vivos. Se não tivéssemos saído da Boca naquele momento, certamente morreríamos num próximo ataque. E... Isto é apenas uma intuição, mas acho que agora estamos chegando mais perto da causa dessa guerra.

— Como é?

— Sim. Por que os menodrols, que ficaram tantos séculos afastados daqui, nos atacaram agora?

— Por causa do escândalo das usinas de Durkheim? Ou por que nossa nação está se fortalecendo e eles ficaram com medo que os atacássemos primeiro? Sabe-se lá? Tantas razões são possíveis...

— Para mim nada disso faz sentido. Há pouco, pude ver as guerras do passado.

— Hã? — Skeniev rolou os olhos.

— Sim, tive acesso através das memórias de Urguda. Os menodrols não fazem guerra porque querem, mas sim por que são comandados. Esta é a natureza deles. Foram fabricados pelos wlegdars para servir como soldados e para eles é impossível desobedecer às ordens de seus criadores.

— Está dizendo que há um wlegdar por trás disso tudo? Por que retornariam?

— Um deles nunca deixou nosso mundo...

— Sim... — confirmou a vozinha de Urguda — o príncipe Kunx-la. Quando seus exércitos eram derrotados, há cerca de cinco séculos, ele estava enfraquecido e construiu um esconderijo para recuperar-se. Ele mergulhou no Sono de Mil Ciclos.

— Então o tal, Kunx-la, acordou?

— Talvez não. — retrucou Urguda. — Um ciclo wlegdar equivale a 0,4687 anos, ou seja, cerca de 468 anos.

— Ele pode bem ter acordado — comentou Balkan — e a libertação de Drogorn poderia ter sido trabalho dele.

— Como assim? — indagou Skeniev. Estava novamente envolvido na discussão.

— E se ele enganou Halle para que a prisão caísse em minhas mãos? — disse Balkan.

— Não entendo essa lógica — reclamou Skeniev — Se ele tinha a garrafa, por que não soltá-lo ele mesmo?

— O jovem pode ter razão — Urguda concordou com Balkan— Afinal, o selo só poderia ser removido por alguém bem intencionado, ou melhor, alguém ainda intocado pelo mal.

— Então é realmente pior que imaginei. — resmungou Skeniev — Alguém foi estúpido o suficiente para criar uma prisão contendo um monstro como aquele e que pudesse ser aberta.

— Mas isso pode ter lá sua razão. — retrucou Balkan.

— É? Me ilumine? — Skeniev mostrou os dentes amarelos e tortos.

— Ora, não é óbvio? — gabou-se Balkan — Para libertar o mestre Urguda.

— O senhor Xir... — lembrou-se Ilya. — O elkin que construiu o portal dos sonhos. Talvez ele soubesse que Balkan iria libertar Drogorn e Urguda junto com ele.

Balkan fez a conexão — Sim, alguém capaz de localizar a tumba de Kunx-la para impedi-lo de despertar.

Ilya concordou — Foi o que Halle me disse... Afirmou que eu seria o único capaz de resolver o enigma das tumbas que ele vem investigando há tantos anos.

Skeniev deu com os ombros — Ora! Estamos dando voltas com hipóteses loucas... Desculpe Ilya, mas dar o fora daqui ainda me parece a melhor opção.

— Você não tem nenhuma lealdade a seu país e a seu povo? — insistiu Ilya.

— Lealdade? Essa é boa Gregorvich! Muito boa! Nosso governo não passa de um grande monstro mentiroso e manipulador. Não dá a mínima para o povo. E o povo não dá a mínima para mim. Sabe o que acho? É que deve ser cada um por si!

— Engraçado, mas não foi assim que você agiu nesses últimos tempos. Lutamos juntos e você não nos deixou para trás.

— Sei que não. — admitiu. — Deixa isso para lá, certo? Acho que ficar pessimista é minha maneira de lidar com toda essa confusão. Quando Bremmen voltar, discutiremos o que fazer em seguida.

Balkan lembrou — Ele está muito preocupado com tudo que está ocorrendo. Aquele papo de ponta do iceberg... Acho que ele sabe o que realmente está acontecendo.

— Verdade — concordou Ilya — Halle sabe mais, isso eu sei dizer.

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