Convite
Ilya e Halle estavam subindo os degraus das ladeiras íngremes de Vetrocrav. Acabavam de sair da casa de outro amigo de Halle chamado Rorhe. Ele arranjaria animais e os conduziria até o sítio das ruínas de Kaleor. Não encontrar Rorhe foi uma surpresa para Halle, mas para Ilya ficou de cabelos em pé com o fato.
— Relaxa Frango, são só uns poucos dias.
— Acho melhor sairmos da cidade e retornar depois.
— Você está paranóico. As pessoas aqui não estão nem aí se há desertores ou não. E mesmo que encontrassem um, há mais chances de acolhê-lo do que de entregá-lo. E se o pior acontecer, há sempre o suborno. Como acha que estou livre até hoje?
— Você já subornou alguém para não ser capturado?
— É preciso dizer isso com todas as palavras?
Ilya estava contrariado. — Skeniev falou sobre tomarmos o caminho das montanhas e irmos para Karisheim.
— Ele está delirando, Ilya. Esse caminho pode facilmente nos levar à morte. Há o mau tempo, neve, gelo e também criaturas...
— Então vamos para fora da cidade, na oficina de seu amigo.
— Eu não quero colocar mais pressão sobre ele. O melhor é ficarmos no hotel. É impessoal. Se formos pegos ou denunciados ficando na oficina de Kamil, lhe causaremos problemas.
— Você é teimoso e impossível! — irritou-se Ilya, ficando todo vermelho.
— Por que você não se tranca no quarto e vai cuidar de seus estudos?
— Que estudos?
— Sei lá, Frango. Pega um caderno e vai escrever aquelas suas equações. Quem sabe você acaba descobrindo algo novo?
Aquela sugestão interrompeu a contrariedade de Ilya. Há muito tempo havia deixado de lado o desenvolvimento de sua nova tese, e agora, sem o remédio, havia recuperado sua agilidade mental como antes. Além disso, poderia perguntar mais a Urguda sobre o passado e treinar um pouco seus cálculos de física aplicada.
— Está bem... Quantos dias exatamente?
— Rorhe deve voltar em cinco ou seis dias.
Chegaram até a praça cheia de imensas coníferas. Ali, Skeniev tentava, há algum tempo, ensinar a Balkan como apreciar um bom fumo.
— Mais uma vez — insistiu Skeniev enquanto Balkan tossia muito com o rosto todo vermelho.
— Quando pegar o jeito você verá que ajuda a relaxar e pensar melhor.
— Quem sabe depois... cof, cof! Ao menos pensar é fácil sem isso aí.
— Lá vem a dupla, louco e monstro. — Skeniev apontou com o cigarro para Bremmen e Gregorvich vindo ao longe.
— E então, Aspira — pressionou Skeniev depois de uma baforada. — Você vai continuar na trilha deles ou vem comigo para sairmos do país?
— Não sei — ponderou Balkan. — Esse caminho pelas montanhas parece perigoso. E ir até Sisqua é impraticável sem transporte. Além do mais, você não ficou curioso com o que descobrimos naquela tumba? Não quer descobrir algo mais?
— A curiosidade matou o gato, não é?
— Sim, mas estou disposto a ouvir o que eles têm a dizer. Talvez, mais tarde, levemos Ilya até Sisqua. No Castelo Primm, deve haver algum feiticeiro capaz de remover o simbionte do corpo dele.
— Castelo Primm?
— Desculpe. É onde funciona a principal escola de magia de Sisqua.
— Rã, rã...
— Alguns de meus professores em Voln estudaram lá.
— Eu não tive sorte quanto aos estudos. Completei apenas o ciclo elementar. Opção do meu pai. A revolução era para trazer igualdade, mas acho que ainda seria preciso dez revoluções para chegar a isto.
A opção do pai de Skeniev era muito comum entre a classe operária, pois trazia mais renda para casa, mais cedo.
— É verdade que há desigualdade aqui em Durkheim, mas conheci alguns estudantes estrangeiros que pensam que nosso país é o paraíso sobre a terra. Eles dizem que não sabemos o que é pobreza ou miséria de verdade.
— E você acha que deveríamos agradecer o estado por isto?
— Não acho nada... apenas sei que fiz uma grande besteira libertando aquele Yrkun-Nasca. Algo que não sei se poderei consertar.
— É, você ferrou o pobre Ilya.
— Ele está até bem... Fico imaginando o que aquele monstro possa estar fazendo numa hora destas. Belo genista que sou... Certamente serei expulso da ordem se descobrirem o que fiz.
— Hoy, que cara é essa, hã Gregorvich? — o soldado indagou.
— Vamos ter que passar uns dias num hotel.
— Conheço um bom lugar — disse Halle.
— Por que vocês não vão em frente? Eu prefiro ficar aqui, fumar e pensar mais um pouco. — sugeriu Skeniev.
A roupa de Ilya remexeu-se e a cabeça de Urguda despontou em meio às dobras do cachecol. — Fumo, você disse? Puxa, como preciso disso.
Skeniev sentiu asco ao imaginar aquela coisa-lagosta fumando na mesma piteira que ele. Mas deu com os ombros e sorriu... — Por que não? — E ofereceu o fumo à criaturinha.
Ilya sentou-se ao lado de Skeniev e Urguda esticou o pescoço de modo que sua cabeça e boca ficassem próximas da boca de Ilya. Quem olhasse de longe teria a impressão de quem fumava era o rapaz.
— Vamos na frente — disse Halle a Balkan. — Há um assunto que gostaria de discutir com você.
Balkan levantou-se batendo a poeira das mãos. Halle indicou um antigo prédio de quatro andares com acabamento em madeira e telhado escuro.
— O hotel é ali. Eu vou providenciar dois quartos.
A dupla se afastou e Halle começou — Sabe Ian, posso chamá-lo assim?
Balkan deu com os ombros.
— Fiquei muito impressionado com o que tem feito ultimamente. Já nos livrou de problemas três vezes.
— É? Eu me considero um tanto desastrado. Ainda tenho muito o que aprender, na verdade, fico mais tempo pensando em minhas falhas do que nos acertos. Como no caso do Yrkun-Nasca.
— É... — ponderou Halle — Capturá-lo ainda será um grande problema.
— Pensa que é possível?
— Sim, na verdade, é sobre isso que queria lhe falar. Você já ouviu falar na ordem dos caçadores, certo?
— Sim, por que?
— Bem, não há outro jeito de dizer isto, mas eu sou um membro desta ordem e penso que você tem tudo para ser um grande caçador.
Balkan torceu o rosto espantado com aquela ideia — Eu, caçador? Mas eu sou um genista do estado, entende?
— Será que ainda é mesmo? Afinal, um desertor é um desertor. Sem mencionar a cagada que você fez libertando aquele monstro... Dificilmente passará sem alguma punição severa.
O jovem caminhou, um pouco, em silêncio, levando em consideração as palavras de Halle.
— Não sei... Como que essa ordem funciona?
— Veja, a ordem não é exatamente coesa. Devido a perseguições que os membros sofreram, não há mais uma liderança formal. Sendo que muitos dos caçadores nem se conhecem. E quanto a regras, são muito variadas. Cada núcleo tem seu conjunto de regras, mas há algo que nos une... nosso lema.
Balkan olhou-o com interesse, gesticulando para que proseguisse.
— Servir às pessoas através do combate ao legado sombrio dos wlegdars. E fazemos isto tomando ação e responsabilidade. Não delegamos responsabilidades ao governo, polícia ou qualquer ordem superior.
— Me pareceu um bom lema.
— E é! Mas este serviço é para poucos. E para ingressar, é preciso ser indicado por um membro.
— Se eu aceitar o convite?
— Será tomado como aprendiz por algum tempo até se tornar um membro pleno.
— E quanto tempo isso dura?
— Varia. No meu caso, foram sete anos.
— Isso é muito tempo!
Halle riu — Mê dê um desconto... Eu fui um mau aprendiz. Outros conseguem isso com um ou dois.
— Então, seu eu disser sim, já serei um aprendiz?
— Não, sua indicação precisa ser aprovada por ao menos dois outros membros. Por sorte, você terá a chance de conhecer mais alguns de nós, em poucos dias.
— Certo. Gostei da causa. Estou disposto a tentar.
— Excelete! — Halle espremeu um dos ombros de Balkan.
— O Ilya faz parte da ordem?
— Não, ele não sabe nada sobre isso, mas acho que desconfia de algo.
— Você vai convidá-lo também?
— Não penso que essa vida seja para ele. Ele é um azarado... Problemas parecem persegui-lo, mas quando se livrar disto, ele poderá ter uma vida mais produtiva e feliz sendo um professor, casando-se, tendo filhos e assim por diante. Perseguir criaturas das sombras pelo resto da vida não é moleza, entende?
— Sim. Eu nunca pensei em ter família, minha verdadeira ambição é... digo era, ser um grão mestre genista. Pensando bem, isso tudo está me escapando agora... — Balkan falou um pouco tristonho.
— Bem, todos temos que lidar com alguma perda em algum momento... Melhor seguirmos e cuidar de nossa hospedagem.
***
— Aqui está, senhor. — Hurtog entregou a cópia do teletexto ao superior. Tinha o peito inflado com orgulho. — Acredito que seja uma mensagem enviada por Halle Bremmen. Estou certo de que a pessoa que ele menciona como Frango é o foragido Ilya Gregorvich.
— Uma suposição e tanto... — o Major Drakeen estava cético, tamborilando os dedos de sua única mão sobre a mesa.
— Não é suposição, senhor. Na universidade de Voln, eu e Gregorvich tínhamos alojamentos no mesmo prédio. Frango, ou Frangote era o apelido dele.
— Hum... muito bem.
— Devo ir a Dusseloris procurá-los?
— Não acredito que esteja lá.
— Mas a mensagem veio da agência de Dusseloris...
— Estou certo que contam com uma rede de mensageiros para ofuscar a origem das mensagens. Em tempos normais, seria possível rastrear, mas agora, isto seria muito difícil.
— Entendo... É o caso de esperarmos as próximas mensagens, e tentar rastrear a origem?
— Duvido. Heis o que vocês irão fazer: pegarão os trilhos rumo a Nergorod para investigar. Pelas informações que levantei junto à AID, Bremmen vem trabalhando em escavações na região. Aqui diz que ele possui família na região e contatos nas montanhas. É possível que tenham subido para Vetrocrav ou alguma localidade próxima. Vocês vão na frente, eu ainda preciso resolver algumas coisas.
Os olhos de Hurtog brilharam com excitação.
Drakeen prosseguiu — Nos encontraremos em Nergorod. E sargento...
— Sim, senhor?
— Lembre-se que quero Balkan em boa forma, sim? Sem exageros.
Hurtog prestou continência e virou-se. Um sorriso malicioso esboçou-se em seu rosto e pensou "O tal Balkan virá ileso... Quanto a Gregorvich e Bremmen..."
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top