A criatura

A viagem até Nergorod foi tensa e teria acabado com a captura do quarteto, não fosse pelo carro modificado de Halle, que propiciou fugas para fora das estradas, e pela intervenção dos gênios de Balkan, em outra ocasião. Chegaram até a fazenda que ficava um pouco isolada, no meio de uma região cheia de colinas, no distrito rural de Nergorod. A cidade ficava no sopé da cordilheira que separava Durkheim e Karisheim. Influenciada pelos ideais que culminaram com a revolução de 1873 em Durkheim, a revolução de Karisheim foi mais branda e os nobres foram depostos sem serem executados. Foram banidos para outros países, ou então, assinaram termos em que concordavam a viver como cidadãos comuns. A nobreza de Karisheim merecia, pois agia de modo menos abusivo. Muitos escolheram o exílio, mas os que decidiram ficar, ajudaram a reconstruir, ou mesmo, reinventar o país. Sem seguir o modelo radical de Durkheim, os karis adotaram o governo com múltiplos partidos e representantes eleitos, inspirados na República de Salzbragg e outros países do sul. O pedido de ajuda de Durkheim contra os menodrols de Makluskey passou por votação no congresso karis e todo esse processo demorou mais do que Durkheim podia suportar. Ainda havia muito ódio pelos menodrols entre os karis, pois também foram escravizados por eles, por muitos séculos.

No interior de Durkheim, especialmente a porção leste, havia muitas família da etnia karis e isto se mostrava além da aparência e forma de pensar. Halle estacionou seu carro próximo ao celeiro, cerca de quinhentos metros de distância da casa da família Gagarin. O rigor do alistamento não havia atingido as regiões ermas, mas ainda assim, dois dos cinco filhos de Piotr alistaram-se voluntariamente. Um deles feneceu em combate e o outro participava da guerrilha em torno de Voln.

— Que diacho é isso? — foi a única coisa que Piotr Gagarin conseguiu dizer ao ver Halle e Skeniev tirando Ilya do carro.

— É agora que sua tia vai endoidar! — resmungou o velho que tinha cabelos brancos, longos, mas ralos. O rosto era bem vermelho e enrugado, mas seus olhos eram de um violeta límpido e vívido. Suas roupas eram cinzentas e bem sujas, típicas de quem trabalha numa fazenda. Halle ignorou o velho Piotr por alguns instantes enquanto carregava Ilya para dentro do celeiro.

O outro desceu e apresentou-se sorridente — Sou Ian Balkan.

Piotr olhou-o torto e disse — Ocê é algum tipo de vendedor?

Balkan olhou-o intrigado, ainda com a mão estendida.

— Pra quié que ocê carrega essas garrafinhas, filho? É azeite, vinagre? — Balkan desistiu e abaixou a mão.

Halle falou de dentro do celeiro — Melhor não explicar, Balkan. Tio Piotr! Deixa esse moleque aí e venha nos ajudar.

— O quié que ocê inventou agora, Lelé?

— Precisamos de uns baldes e água.

O celeiro era amplo e ali dentro havia um cheiro forte de animais, especialmente estrume. Talvez uma centena de pancos(1) estivesse ali àquela hora do dia para receber as rações.

Skeniev e Halle colocaram Ilya sobre uma mesa improvisada com uma tábua e cavaletes. Ele estava além da palidez e seus aspecto físico era bastante ruim. Por outro lado, a criatura que envolvia seu pescoço e tórax parecia ter se recuperado. Tinha a face encolhida para dentro do corpo escondendo-a do mesmo modo que os jabutis.

— Eu vô é pegar um facão — disse o velho depois de olhar para a criatura mais de perto.

— Calma tio, isso aqui é igual a um bicho de pé, só que maior.

— Maior e horroroso!

Uma vozinha respondeu assim que a criatura esticou seu pescoço rugoso e expôs a cabecinha feiosa — Este corpo pode vos parecer horrível, ou mesmo asqueroso, mas essa criatura possui faculdades incríveis.

O velho deu um salto para trás — O troço fala! — e correu assustado celeiro adentro.

— O que você fez com o Ilya? — indagou Halle, nervoso.

— Desculpem quanto ao rapaz, mas não havia outro meio — retrucou a voz pífia e trêmula.

— Desculpe-me — intrometeu-se Balkan — mas você é mesmo essa criatura?

— Nem sempre fui assim, mas temo não haver mais meios para eu reaver minha forma original.

— Que era? — Balkan ergueu as sobrancelhas.

— Nasci como um elkin. — a criatura gemeu — ao que parece, a limpeza deu mesmo certo.

— Limpeza? — questionou Balkan.

— Já não há magia no ar... Sinto apenas, hum, apenas um aroma.

Piotr retornou do fundo com uma pesada espada em mãos.

— Que é isso tio? Essa coisa era para estar num museu! — zombou Halle.

O velho não estava para brincadeiras. Ergueu a espada e avançou contra Ilya gritando — Aberração!

Skeniev moveu-se rápido o suficiente e deteu o golpe segurando ambos os braços de Piotr.

O monstrinho se contorceu e Ilya abriu os olhos subitamente. Piotr não havia desistido. Foi necessário que Halle e Skeniev o segurassem. Enquanto o velho esbravejava, Balkan perguntou a Ilya — Ei, você está bem?

O rapaz se levantou sem se incomodar com a criatura presa a seu corpo.

— Acho que sim, mas estou meio zonzo.

— Entendo...

— Onde estamos? Por que ele está tão nervoso? Quem é ele? — Ilya parecia calmo.

— É o tio de Halle...

— Calma tio. Olha, o Ilya está se recuperando.

— É, e o monstrengo? — arfou o velho.

— Monstrengo? Do que ele está falando?

— Isso aí no seu pescoço, filho! — apontou Piotr.

Ilya olhou para si mesmo, examinou sem encontrar nada de incomum.

— Ué? Tem alguma coisa aqui? — indagou Ilya e viu nos olhares de todos, que viam algo. Especialmente o velho que estava enojado.

— Tá vendo Lelé? O bicho derreteu a mente do rapaz.

Ilya saiu do celeiro coçando a cabeça — Mas que lugar é esse? E que velho louco é esse? — Deu mais três passos e parou, sentiu um calafrio percorrer a espinha, suas memórias retornavam. Lembrou-se da madrugada e da criatura que combateram. E após sua derrota, aquela coisa pulou em cima dele. Sentiu uma coisa fria e úmida em volta do pescoço e no tórax. A confusão de sua mente se dissipou. Virou-se desesperado e disse — Me ajudem! Tem uma coisa agarrada em mim!

— Desculpe — disse a vozinha, que ressoou alto na mente do rapaz — mas será mais fácil para você entender tudo após um cochilo.

Ilya sentou-se e dormiu. Ao seu redor, os três companheiros seguiram na discussão com o velho Piotr.

***

(1)  Gado ruminante comum em Durkheim. Muito peludos, de pernas longas e fortes e pequenos chifres torcidos. Semelhantes a ovelhas, mas produzem muito leite.

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