𝐎𝟑 ; 𝗰αpítulo 𝘁rês

𝓐nos 𝐃epoıs

Eu monitorava os limites dos arbustos há mais de uma hora, com olhos fixos e músculos tensos, enquanto o vento rugia ao meu redor como um predador invisível. Meu único ponto de vantagem, uma concavidade precária em um galho alto, perdera rapidamente sua utilidade. O frio cortante não me poupava, queimando minha pele exposta como lâminas finas e fazendo com que cada respiração fosse uma batalha contra o ar gelado que ameaçava congelar meus pulmões.

O vento soprava incessante, varrendo a neve em redemoinhos espessos que cobriam as pegadas que deixei para trás, como se o próprio inverno desejasse apagar minha presença na vastidão da floresta. A fome de minhas irmãs me forçara a aventurar-me mais fundo do que o habitual, cada passo afastando-me da segurança humilde de nossa pequena casa. Mas o inverno sempre fora assim – implacável, cruel.

Minhas mãos, enluvadas com improvisos de pano rasgado, tremiam ao segurar o arco com firmeza. A corda gasta rangia sob a pressão de meus dedos congelados, pronta para ser esticada ao menor movimento entre os arbustos. Os animais haviam se recolhido, refugiando-se nas profundezas do bosque, em lugares tão remotos que, mesmo para mim, caçar tornara-se uma tarefa hercúlea – algo que antes fluía tão naturalmente quanto o ato de respirar. Agora, restava-me perseguir os desgarrados, aqueles tolos o bastante para não se esconderem de meus olhos atentos. Um a um, eu os caçaria, rezando em silêncio para que suas vidas se prolongassem o suficiente para nos sustentar até a primavera. Mas minhas preces nunca encontravam ouvidos dispostos a atendê-las.

Meus dedos, entorpecidos pelo frio, esfregaram meus olhos cansados, afastando os flocos de neve que se acumulavam em meus cílios como pequenas partículas de gelo. Eu olhei ao redor, buscando algum sinal, qualquer indício de vida. Mas ali, não havia troncos de árvores com cascas arrancadas – marcas que denunciariam a passagem de cervos. Ainda estavam por perto, talvez, persistindo até que não houvesse mais casca para roer.

Quando o alimento se esgotasse, eles seguiriam seu caminho para o norte, além dos territórios ocupados pelos lobos, rumo às terras feéricas de Prythian. Uma fronteira inalcançável para qualquer mortal que prezasse pela própria vida. Afinal, só os insensatos cruzavam as linhas que separavam nosso mundo do deles, e o preço por essa ousadia era sempre o mesmo: sangue e morte.

Desde a infância, aprendi que o medo não é apenas uma fraqueza; é uma arma. É ele que nos mantém vivos, que nos força a enfrentar batalhas que, de outra forma, pareceriam perdidas. Eu conhecia a força daqueles seres – aquelas criaturas além das fronteiras humanas – e odiava cada fragmento de poder que possuíam, especialmente por terem um dia virado essa força contra nós, os mortais. Mas, se um deles ousasse cruzar meu caminho com a intenção de me matar, eu só poderia desejar que tivesse sorte e fosse rápida.

Sacudi a cabeça, afastando os pensamentos sombrios que sussurravam promessas de uma morte precoce. Esses pensamentos me acompanhavam há anos, uma sombra constante em minha mente, mas nunca se concretizavam, nunca se tornavam mais do que isso: uma praga silenciosa, crescendo e recuando, como a maré. Assim, voltei meus olhos para a floresta à minha frente, buscando mais uma vez por sinais de vida. Era tudo o que eu podia fazer agora – tudo o que tenho feito por anos: me focar em sobreviver. Sobreviver à semana, ao dia, à próxima hora.

A neve caía espessa, turvando o horizonte, mas ainda havia clareiras onde minha visão alcançava. Pelo menos, ainda podia ver além, mesmo que não houvesse nada à vista.

Contive um resmungo enquanto os músculos endurecidos de meus braços e pernas protestavam contra o movimento, relutantes em obedecer. Com um suspiro pesado, afrouxei a tensão do arco e desci da árvore, sentindo o impacto frio da neve compacta estalando sob minhas botas gastas. A cada passo, meu corpo enrijecido reclamava, e o som seco do gelo quebrado parecia ecoar pela floresta silenciosa, denunciando minha posição. Trinquei os dentes. Visibilidade ruim, ruídos desnecessários. Tudo isso tornava a caçada ainda mais ingrata.

Restavam-me apenas algumas horas de luz, e o tempo parecia uma sombra constante, pressionando minhas decisões. Se não partisse logo, a escuridão cairia sobre mim, e eu não tinha intenção de me arriscar na noite. Os avisos murmurados pelos caçadores da aldeia ainda ressoavam em minha mente como um sino distante: lobos gigantes rondavam essas terras, mais numerosos do que o habitual, e famintos.

Mas havia algo pior, algo que apertava meu peito com um medo que eu não ousava admitir. Rumores de figuras estranhas à espreita, vistas por aqueles corajosos – ou tolos – o suficiente para se aventurarem longe demais. Altos, de um porte antinatural, com uma aura que exalava perigo e morte. Histórias murmuradas, mas carregadas de verdade suficiente para me fazer ajustar o arco nos ombros com dedos inquietos.

Qualquer coisa, menos feéricos. Essa era a súplica dos caçadores aos deuses há muito esquecidos, entoadas como preces entre dentes trêmulos de medo. Mas para mim, eram palavras vazias. Eu havia deixado de acreditar em qualquer deus que pudesse existir. Não havia salvação divina esperando por mim, nunca houve. Nenhuma entidade interveio quando precisei, nenhuma força maior empunhou uma lâmina em meu nome. Eu lutei por mim mesma. Sempre lutei. E agora, luto por aqueles que não podem se defender, mesmo que isso deixe meu caminho marcado por sangue.

Nos anos em que morei na aldeia, há dois dias de viagem da fronteira imortal de Prythian, ouvi muitas histórias de terror. Diziam que já tínhamos sido poupados de ataques feéricos, uma proteção inexplicável que agora parecia mais fragilidade do que bênção. Porém, os caixeiros-viajantes traziam outras histórias, mais sombrias. Histórias de aldeias inteiras, mais próximas da fronteira, reduzidas a lascas de madeira, ossos e cinzas.

Esses relatos, antes raros e descartados como boatos pelos anciões da aldeia, haviam se tornado algo mais próximo de um presságio. Sussurros nas feiras diárias, olhares furtivos e mãos que tremiam ao falar. O perigo que parecia tão distante agora apertava seu cerco, como uma fera à espreita no escuro. Eu sabia disso. Todos sabíamos. E mesmo assim, continuávamos. Porque a alternativa era desistir.

Eu sabia o que estava arriscando ao me aventurar tão profundamente na floresta: minha vida. Mas, na noite anterior, dividira o último pedaço de pão entre minhas irmãs, junto com as migalhas restantes de carne seca. Mesmo que as garotas Archeron achassem que eu estava desafiando a Morte com minha imprudência, a realidade era muito mais simples. Eu enfrentaria o que fosse necessário: monstros, demônios, o inverno cruel que transformava o ar em navalhas. Suportaria o tormento da neve queimando e congelando minha pele, suportaria o desespero do vazio implacável dentro de mim.

Tudo isso, por elas.

Não suportaria ouvir as barrigas delas rugirem de fome outra vez, ver o brilho de esperança desaparecer de seus olhos. Se isso significava me arriscar até onde nenhum mortal deveria ir, que assim fosse. E talvez, pensei, se fosse preciso, eu me entregaria.

Me entregaria aos dentes de um lobo, às garras de algum monstro que rondava essa floresta. Me sacrificaria, se isso as garantisse mais um dia de vida.

A ideia me arrancou uma risada áspera, seca, que arranhou minha garganta irritada. Uma risada amarga. Não havia muito em mim para se banquetear. O que antes era um corpo forte e ágil, moldado por anos de trabalho e sobrevivência, havia sido consumido pelo inverno implacável. Agora, não restava mais que uma sombra do que eu fora. Meu corpo era todo ossos e pele, cada costela uma evidência gritante da fome, cada osso do quadril um lembrete cruel de quanto eu havia perdido.

Mas eu continuaria. Por elas, eu sempre continuaria.

Me movi com rapidez entre as árvores, cada passo cuidadosamente medido para não trair minha presença. O vento cortava minha pele como lâminas invisíveis, mas era o vazio na barriga que mais doía, um aperto constante que parecia consumir tudo em mim. Evitei pressionar a mão contra o estômago, temendo que o gesto denunciasse minha fraqueza até para mim mesma. Mas não conseguia evitar os pensamentos que surgiam, cruéis e insistentes, enquanto o frio e a fome lutavam para me quebrar.

Eu sabia exatamente o que me aguardava se voltasse sem nada outra vez. A expressão no rosto delas. Não era raiva, nem desespero. Era algo pior: o vazio. O olhar de quem já perdeu a esperança, de quem nem sequer ousa esperar mais.

Esse olhar me perseguia, como uma sombra que nunca desaparecia.

E, ainda assim, às vezes não conseguia evitar o peso da culpa. Anos atrás, quando eu era jovem e rica, tanto ouro havia sido gasto no meu treinamento. Cada aula de luta, cada lição de caça, tudo para me tornar capaz.

Capaz de sobreviver. Capaz de proteger. Mas agora... agora eu poderia voltar de mãos vazias? Depois de tudo?

A ideia era um punhal girando em meu peito, cruel e implacável. E, mesmo assim, eu continuei andando. Mais rápido, mais silenciosa, tentando provar a mim mesma que a resposta seria "não".

Recusei-me a ceder à ideia de mais uma noite faminta. O fracasso não era uma opção. Após alguns minutos vasculhando cada detalhe da floresta, abaixei-me próximo a um emaranhado de arbustos espinhentos cobertos de neve. Ali, entre os galhos entrelaçados, a visão da clareira se desdobrava diante de mim. O riacho que a atravessava ainda fluía, embora parcialmente congelado, e os buracos no gelo deixavam pistas claras de que aquele lugar continuava sendo visitado.

A posição era vantajosa. Relativamente protegida e silenciosa, dava-me uma visão decente do espaço aberto à frente.

Então, esperei. Talvez algo passasse. Com sorte.

Eu precisava acreditar na sorte, mesmo que ela nunca parecesse se lembrar de mim.

Suspirei pelo nariz, sufocando o peso daquela frase na mente. Com um gesto automático, enterrei a ponta do arco no chão e encostei a testa contra a curva tosca da madeira, buscando um consolo que nunca vinha. Eu sabia que não duraria mais uma semana sem comida. Minhas irmãs, tão acostumadas a ter algo — mesmo que fosse pouco —, não suportariam. Eu, por outro lado, podia resistir. Meu treinamento havia me ensinado a sobreviver com o mínimo, e agora, com os dias se arrastando sem uma refeição decente, essa lição parecia mais uma maldição do que um dom.

Eu havia aprendido mais do que a essência da caça; aprendi o que era a fome, a dor que consome a carne e o espírito. Ainda assim, a ideia de voltar para casa, magra como um saco de ossos, era uma vergonha que latejava em cada fibra do meu ser.

Fraca.

A palavra pulsava dentro de mim, mas eu a empurrava para longe. Não podia ceder à fraqueza. Não agora.

Me acomodei com cuidado, sentindo os músculos tensos e doloridos se ajustarem. Respirei fundo, tentando manter a calma, silenciosa como a morte. O vento cortava, mas eu me concentrei além dele, nos sons da floresta que se misturavam ao farfalhar das árvores e ao suave estalar da neve. O mundo estava envolto em nevoeiro branco, a neve caía suavemente, cobrindo a terra com uma camada imaculada contra o marrom e o cinza do inverno.

Observei tudo com atenção, o silêncio penetrando minha alma, e algo dentro de mim ainda ansiava por essa quietude. Em outros tempos, essa solidão era doce, quase instintiva, como se eu fosse uma extensão da floresta. A caça não era só necessidade; era uma dança, uma euforia silenciosa. Mas agora, isso se tornara um fardo.

O prazer havia se transformado em obrigação. Pensar nisso cortou como uma lâmina, fria e implacável.

O pensamento de voltar para as estradas lamacentas e congeladas, ou para o calor abafado do chalé, fez meu corpo se encolher. Fechei os olhos por um segundo, desejando que tudo fosse como antes... Mas eu sabia, no fundo, que nada seria mais feliz ou bom em minha vida novamente.

Arbustos farfalharam na clareira. Abrir os olhos e sacar o arco foi uma questão de instinto. Olhei entre os espinhos e prendi o fôlego. A menos de trinta passos estava uma pequena corça, ainda não muito magricela devido ao inverno, mas desesperada o suficiente para arrancar a casca de uma árvore na clareira. Uma corça como aquela poderia alimentar minhas irmãs durante uma semana ou mais. Minha boca se curvou em um sorriso. Com o tempo, a morte da caça se tornou isso: ao menos uma diversão que eu poderia ter entre tudo isso.

Silenciosa como o vento que ciciava entre as árvores mortas, mirei. Ela estava tão distraída, tão alheia ao fato de que a própria morte esperava a metros de distância. A corça continuou rasgando tiras de casca, mastigando devagar. Eu imaginei o que poderia fazer com a carne: secá-la para conservar, comer o restante em ensopados, tortas... A pele poderia ser vendida ou transformada em roupas.

Eu precisava de botas novas por tanto andar entre as florestas, mas Elain precisava de um manto e a jovem Feyre de um casaco, e Nestha... Bem, Nestha queria qualquer coisa que fosse dos outros.

A força seria minha salvação. Inspirei profundamente para me acalmar, verificando a mira mais uma vez. Tudo dependia dessa flecha. O resto poderia esperar.

Mas então, um par de olhos dourados brilhou entre os arbustos. A floresta, que até então sussurrava com o vento, silenciou. A neve, que caía em flocos suaves, cessou, como se o próprio ar contivesse a respiração. Em uma breve, porém pesada respiração, aqueles olhos dourados se fixaram nos meus. Eu os encarei, sentindo minha boca secar, como se a própria terra abaixo de mim estivesse paralisada.

Era um medo profundo, refletido nas pupilas do enorme lobo. Havia neles uma fragilidade imensa, uma angústia que parecia tão real quanto a minha própria fome. Tão assombrado, tão perdido quanto eu me sentia, tão perto da morte quanto a existência de todos nós naquela terra gélida.

E, ainda assim, minha mente, traiçoeira como sempre, não podia deixar de fantasiar. A pele dele... Meu olhar percorreu a enorme fera, imaginando o que poderia ser feito com sua pelagem, com as presas que seriam uma joia para o pescoço de Elain, com a carne que aliviararia a fome de Feyre, com o manto que Nestha usaria... Mas, mesmo tão perto da morte, algo mais profundo me impediu de seguir esse pensamento.

Com um esforço quase doloroso, os meus lábios, rachados pelo frio e pela privação, murmuraram, como se fosse uma oração, um último suspiro de humanidade:

Vá embora... — sussurrei, meus olhos fixos nos dele, um pedido, não de medo, mas de compaixão.

Se o lobo não fosse o que era, eu teria que matá-lo, apagar sua vida e destruir sua essência. Mas não queria fazer isso. O lobo, atento e predador, não desviava o olhar da minha figura, seus olhos dourados brilhando na neve. A corça, ignorante do perigo que se aproximava, continuava a raspar a casca da árvore, mas a atenção do lobo era unicamente voltada para mim. O dilema dentro de mim se formava, pesado como uma rocha: matá-lo ou deixá-lo ir, a escolha que não queria tomar, mas talvez fosse forçada a fazer.

Vá embora... — sussurrei, a voz rouca e carregada de uma tensão que me apertava o peito. O dedo puxou a corda do arco, sentindo a pena fria roçar minha bochecha, enquanto retinha a respiração, o tempo congelado, o peso do momento.

Eu poderia matar a corça. Ela estava perto o suficiente. Mas o lobo também estava, e eu teria que ser rápida, mais rápida do que a própria morte. Mais rápida do que a necessidade de alimentar a fome que me corroía. Eu não queria, mas sabia que poderia ser minha única chance.

O lobo se esgueirou mais para perto. Um galho seco estalou sob uma das patas traseiras do animal, cada uma maior que minhas mãos, e a corça ficou imóvel, uma tensão evidente em sua postura. Seus olhos se arregalaram, e suas orelhas, finas e alertas, se voltaram para o som do vento cortante que soprava por entre as árvores. O lobo estava abaixado, seu corpo, tão bem camuflado nas sombras e na neve, parecia quase se fundir com o cenário gelado. A corça, alheia à verdadeira ameaça, ainda não o viu. Ela olhava na direção errada, inconsciente de que a morte já a observava.

Soltei a corda, e o som da flecha cortando o ar foi seguido pelo impacto seco. A lâmina encontrou seu alvo, penetrando entre os olhos da corça. O sangue jorrou como um rio rubro, tingindo a neve branca, e a criatura tombou, sua vida se esvaindo no campo gélido. Respirei com dificuldade, a dor na garganta apertando a cada suspiro, mas sem hesitar, coloquei outra flecha no arco, apontando diretamente para os olhos dourados que me observavam com uma intensidade que beirava o sobrenatural.

Foi quando percebi. O lobo não se moveu. A única parte do corpo dele que se moveu foi a sua visão. Seus olhos dourados, profundos como poços antigos, se fixaram em mim. Não, não estavam em mim. Estavam além. Parte do meu corpo paralisou ao acompanhar a direção de seu interesse.

Feyre.

Feyre estava ali, seu corpo tenso, o arco que eu mesma lhe dei dias atrás agora nas mãos dela, tremendo levemente enquanto tentava se concentrar, mirando o lobo com uma postura desajeitada, como quem estava à beira de um abismo, prestes a ceder ao peso da decisão. Ela não percebia, mas estava encarando a morte, e a cada segundo eu via a linha tênue entre ela e o precipício, prestes a cair sem volta.

Então, os olhos dourados do lobo voltaram-se para mim. Sua gaze atravessou o ar gelado e encontrou os meus, fixando-me com uma intensidade que me fez tremer. Eu vi, claramente, a maneira com que ele me encarava, e, em sua visão, percebi uma quase curiosidade, uma compreensão silente.

Não. Não podia ser. Não poderia ser verdade.

— Não — a palavra saiu de mim, trovejando como um raio cortando o céu cinzento e pesado. Minha voz, rasgada pela urgência, se espalhou no ar frio da floresta. — Vá embora agora!

Mas o lobo não se moveu para longe de mim. Em vez disso, ele se virou e começou a correr, não em minha direção, mas na direção de Feyre. O terror se apertou no meu peito, e antes que pudesse entender completamente o que estava acontecendo, soltei a flecha. Acordada pelo impulso, eu sabia que, com precisão, aquela flecha deveria ser a minha última chance. Mas, ao atravessar o ar, a flecha não encontrou o alvo. Não fez efeito.

Com um suspiro abafado, um choro silencioso, meu corpo estremeceu. A flecha de freixo que eu atirara não havia parado o lobo, mas fora o suficiente para alertar Feyre, e, agora, as implicações do que estava diante de mim caíam como uma chuva gelada. Ela havia se aproximado de mim minutos antes de partir, com uma fala enigmática que eu, tola, não soubera ler até agora. Ela queria algo. E esse algo parecia ser a morte, tanto a nossa quanto a dela, entrelaçadas em uma tragédia sem fim.

O arco escorregou das minhas mãos, caindo na neve, enquanto eu segurava apenas as flechas desgastadas. Uma sede faminta de proteger Feyre, uma chama feroz queimando em minhas veias, me consumia com uma urgência desesperadora. Mas, naquele momento, algo em mim se quebrou, como se eu fosse apenas uma folha levada pelo vento, empurrada por forças maiores que eu não podia controlar.

Eu não sabia mais o que fazer. Só sentia o peso do destino se aproximando.

O lobo e eu, parecia que lutávamos numa corrida silenciosa para ver quem alcançaria Feyre primeiro. Ele, com a intenção de matá-la, e eu, com a única missão de salvá-la. Era uma batalha tola e inconsequente, eu sabia que jamais seria capaz de superá-lo, mas algo em mim gritou mais alto, algo que me empurrou adiante. E, contra toda razão, eu estava um passo à frente dele. Minhas mãos se estenderam, empurrando Feyre para longe, tirando-a do caminho. Ela caiu para o lado, sem entender o que acontecia, mas eu não tinha tempo para explicações.

Então, seus dentes rasgaram minha carne, o impacto do seu ataque fez meu corpo se curvar para frente, uma dor lancinante explodindo no meu quadril. Meu rosto se contorceu numa careta desesperada, o som da dor se misturando com o ruído da neve esmagada sob os pés. Minha respiração se tornou um grito rouco e abafado, as palavras foram engolidas pela agonia.

Era o preço da luta. O preço por salvar quem eu amava.

Feyre tossiu, se recuperando da queda, mas em minha mente, ela parecia distante. Eu a havia empurrado com tanta força que ela caíra longe de mim, e, naquele momento, não me importava. Não me importava mais o que acontecia com ela, porque o lobo estava me devorando. O que restava de mim era uma fúria bruta, uma tentativa desesperada de sobreviver.

Com uma força desesperada, empurrei sua cabeça, chutando e grunhindo como uma fera, como se tivesse sido tomada pela selvageria. O som de meu próprio grito misturava-se ao do lobo, em uma cacofonia de dor e luta. Minha pele estava quente, pegajosa, manchada de sangue, a visão embaçada pelo vermelhão que se espalhava por tudo ao meu redor.

Vermelho. O mundo todo era vermelho, uma pintura de dor, de desespero, de vida prestes a se esvair.

Eu já não sabia mais o que fazia. Só sabia que precisava lutar.

Um último suspiro rasgou o silêncio, e então Feyre, com as mãos trêmulas, fincou a flecha de freixo no lobo com toda a força que ainda possuía. O sangue jorrou, espalhando-se pelo ar e sujando meu rosto com a marca de sua morte iminente. Mas, ao contrário da raiva e do medo que sentia, havia algo mais nos olhos do lobo. Algo que me fez prender a respiração.

Chorosos. Cheios de dor.

Me perdoe. Me perdoe. Me perdoe.

As palavras não ditas ressoaram em minha mente, pesarosas e profundas, como uma súplica que atravessava o espaço entre nós.

Lágrimas se formaram nos olhos do lobo, como se ele também chorasse, como se compreendesse que sua própria sentença estava sendo selada. Feyre, com mais uma tentativa, fincou a flecha de freixo no olho esquerdo do animal, sangue escorrendo por seu nariz e manchando a neve ao seu redor.

Os dentes, que antes estavam cravados em minha carne, se soltaram. A pressão diminuiu, mas o lobo não estava morto. Não ainda. Mas estava à beira disso, com a morte se aproximando a passos largos.

Ele emitiu um som, um ruído de dor tão humano que cortou meu coração. E então ele me olhou, diretamente nos olhos, por um segundo. Um único segundo. Mas naquele instante, senti como se ele me tivesse analisado, visto algo mais dentro de mim, algo que foi capaz de mudar o que antes parecia inevitável.

Sinto muito. A voz ecoou na minha mente, suave, dolorosa.

E, por um breve momento, não sabia se era o lobo ou a minha própria alma que falava.

Feyre me envolveu em seus braços, puxando-me para longe do lobo ainda agoniando. O sangue manchava o chão, o sangue dele se misturava com o meu, criando uma visão grotesca e surda ao redor. A dor era tão intensa que me consumia a cada respiração, mas, em meio ao turbilhão, as palavras de Feyre chegaram até mim, como se vivessem em outro mundo.

— Você está ferida. — Sua voz soava distante, como se ecoasse através de um véu. — Elle! Por favor, olhe para mim. O que eu faço?

O que eu faço? Pensava comigo mesma, presa dentro de mim. Olhei para aqueles olhos, aqueles olhos dourados ainda presentes em minha mente, e uma parte de mim desejou entender, desejar o perdão que nunca chegaria.

Me perdoe.

E então, o lobo estava morto. Seu sofrimento havia cessado, sua vida apagada no campo gelado. E, com isso, o silêncio tomou conta do momento.

Mãos quentes, agora cobertas pelo sangue de ambos, seguraram meu rosto. Levantei os olhos para Feyre, seus olhos assustados e aterrorizados refletindo a mesma visão de desespero que eu sentia por dentro. Eu encarava as marcas de minha própria dor: a ferida no quadril, o buraco profundo em minha perna, as cicatrizes que manchavam minha coxa. Tomei um fôlego pesado, um suspiro entrecortado, e com a mesma calma quebrada que ainda habitava meu ser, comecei a rasgar minha camisa novamente.

— Tire a pele do lobo — murmurei, minha voz grave e rouca. Amarrei o pedaço de tecido em minha perna, apertando o casaco ao redor do ferimento no quadril. — Vai ter que arrastar a corça para o chalé também.

— Mas e você? — Feyre questionou, a preocupação estampada em seu rosto.

Eu não respondi. O vermelho ainda me envolvia, como uma praga indesejada, em um pesadelo de sangue e dor. Através da névoa de sofrimento, me apoiei no chão, as mãos geladas agarrando a terra fria enquanto me levantava, cambaleando.

Uma muralha se mantém em pé... Eu me mantenho em pé, erguida e orgulhosa.

— Eu... Eu vou voltar para casa, junto de você.

Algo dentro do meu peito doeu. Mas isso era a floresta, era o inverno. Era o medo.

Eu não me curvo para o medo.

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𝗰ontınuα...

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