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O dinheiro há muito se esgotara, e meu tão estimado piano, assim como a espada que fora meu orgulho, nada valeram no fim. Eu sabia que esse dia haveria de chegar; observei, impotente, enquanto os Archeron consumiam suas riquezas como quem vê areia escoar por entre os dedos, mesmo na mais amarga miséria.
Era incoerente, talvez até revoltante. Ainda assim, confesso que, em certas ocasiões, tentava lhes conceder o benefício da dúvida. Cresceram cercados de luxo, alheios à dureza do mundo, sem jamais experimentar a escassez. Contudo, não eram crianças. Vittório, certamente, não o era. Até mesmo Nestha, com sua altivez, já possuía a razão para discernir. E Elain… ah, Elain se refugiava em uma fragilidade quase exasperante, agarrada a uma inocência que eu suspeitava ser escolhida.
E isso me enfurecia.
Eles nada ofereceram, enquanto eu entreguei tudo. Tudo que, para eles, não foi mais do que um gesto trivial. Na mente de Vittório, isso era apenas minha obrigação — seu julgamento sempre tão claro, quase irônico.
E agora, a propriedade que um dia chamamos de lar, ampla e adornada com tanto conforto, foi enfim tomada, vencida pelas dívidas que nos afogavam como um rio em fúria. Restou-nos apenas um chalé singelo, encravado nos arredores da aldeia.
Mas não era a perda da riqueza que me inquietava. Não, admito que o ouro e o conforto possuem seus encantos, mas jamais desejei essas coisas para mim. Desejava-as para elas. De onde eu estava, o chalé já parecia pequeno e frio, indigno das minhas irmãs.
Um arrepio cortante percorreu meu rosto quando outra mecha de meu cabelo escuro foi arrebatada pelo vento impiedoso. Encolhi-me, apertando as pernas com força e encolhendo as mãos ao redor do casaco, buscando qualquer calor que ainda pudesse restar. A dor surda em minha cabeça ecoava os gritos de Nestha, inconsolável pela perda de seus preciosos livros. Elain, como uma criança mimada, soluçava e golpeava minhas mãos quando não pude devolver-lhe o que queria. E Feyre… Feyre não ergueu a voz, nem as mãos contra mim, mas seu olhar vazio, aquele mesmo olhar que carregava desde o amanhecer, feria mais do que qualquer palavra ou agressão poderia.
Deixei que meu rosto deslizasse, abatido, sobre minha mão gélida, enquanto meus dentes se apertavam em fúria contida. Aqueles olhares... tão cheios de cobrança, como se de mim esperassem a solução para todas as tragédias que se abateram sobre nós. Mas a verdade cruel e inevitável é que não podia. Não havia mais piano, nem espada, joias ou vestidos. Meu arco e flechas, tão preciosos outrora, haviam desaparecido na confusão que nos tragou.
Não restou nada. Eu não possuía mais nada.
Meus dedos se alegraram com o calor tímido oferecido no fundo do bolso do casaco. Contudo, esse breve conforto foi interrompido quando algo áspero roçou minha pele: um pedaço de papel antigo.
Retirei-o cuidadosamente e, ao desdobrá-lo, encontrei um desenho desajeitado. O cabo de uma espada parecia um graveto mal esculpido, e a lâmina, tão torta, que era um milagre o ferreiro ter compreendido o que eu desejava. Mas ele compreendeu. Oh, como compreendeu. E o que ele me entregou foi uma obra perfeita. Lembro-me de como aquele cabo firme se ajustava em minhas mãos, uma criação de aço e metal, adornada com linhas delicadas de ouro que serpenteavam até as pequenas pedras vermelhas incrustadas. A lâmina, por sua vez, era um reflexo do meu desejo: afiada, precisa, imaculada.
A lembrança despertou algo amargo. Tudo aquilo – a espada, o piano, meu arco e as flechas que tanto me esforcei para aprender a fazer, os vestidos, as joias... Tudo foi arrancado. A cada perda, uma parte de mim parecia desvanecer. O que mais eu poderia oferecer?
Dobrei o papel com cuidado, devolvendo-o ao bolso como se guardasse um fragmento daquilo que fui. Levantei-me devagar, sentindo o frio mordaz ainda mais intenso em minhas mãos vazias. Mas, ao voltar para o interior do chalé, meus olhos se detiveram na paisagem ao redor. Havia algo de hipnótico na floresta que nos envolvia, nas árvores cujas folhas dançavam ao vento, nos esquilos que se aventuravam pelos troncos, na melodia suave da água que corria quase congelada. Não havia perigo ali, apenas um convite silencioso à observação.
Ao cruzar o limiar da porta, a madeira rangendo sob meus pés, um pensamento surgiu, tão nítido quanto o frio que me cercava: talvez, apenas talvez, aquilo que aprendi ao longo dos anos pudesse finalmente servir para algo mais do que mera diversão.
Driblei o corpo pelo espaço apertado da sala, esforçando-me para não esbarrar em Nestha, que estava tranquila, absorta em um dos poucos livros que restaram. Elain dormia no colo dela, as feições serenas apesar de tudo. Levantei a perna com cuidado para passar por cima de Feyre, que esfregava restos de tinta nas mãos. Ela ergueu os olhos para mim e, por um instante, sorriu. Eu retribuí, sentindo o calor breve daquela troca. Ainda tínhamos algo.
Mas meu foco não permaneceu. Voltei a me concentrar no que queria, no motivo que me movia. E então, quando levantei a cabeça, lá estava ele.
Vittório.
O pai das três Archeron. Meu pai adotivo.
Ele estava parado, rígido, encarando um ponto fixo no espaço. Havia algo nos olhos castanhos – um misto de mágoa e raiva, mas não qualquer raiva; era a raiva de quem carrega o peso da culpa. Segui seu olhar. Minha garganta secou quando percebi que não era o vazio que ele observava. Seus olhos subiram, deixando as meninas para se fixar em mim.
Tudo travou. Meu corpo congelou, mas minha mente não. Pensamentos vieram como uma avalanche, rápidos e esmagadores. Eu deveria ter percebido. Eu deveria ter entendido. Eu deveria...
Não houve hesitação. Não mais.
A raiva tomou o lugar de qualquer incerteza, cravando garras profundas em meu âmago. Quando dei por mim, Vittório já estava preso contra a parede. Seu corpo arfava sob meus olhos, que agora refletiam toda a crueldade que eu não mais tentava esconder. Minha mão, trêmula, abriu-se, liberando um rastro escarlate que tingiu sua pele. Meus dedos, sujos e feridos, enterraram-se na carne do pescoço dele. Ele tentou me encarar, mas sua garganta tremeu sob a pressão.
Era silencioso. Era limpo. E pela primeira vez, parecia justo.
Eu sabia o que ele via. Ódio puro, ardente e inegável, escorrendo de mim em ondas que vibravam pelo meu corpo. Era um grunhido mudo, uma energia que se concentrava nos meus olhos dourados, fixos nos dele. Meus dedos apertavam sua garganta com tanta força que eu podia jurar que Vittório poderia derreter ali, diante de mim.
— O que está fazendo? — perguntei pausadamente, cada palavra saindo baixa, arranhada, como se eu estivesse despertando de um longo torpor.
Dias. Tantos dias de silêncio sufocante.
— Nada — respondeu ele, a voz falha enquanto tentava desesperadamente afastar minhas mãos de seu pescoço.
Sua pele pálida começou a ruborizar, passando por tons de vermelho até um roxo profundo. O medo tomou conta de seus olhos, substituindo o orgulho rígido. E então, eu o soltei. Minhas mãos trêmulas recuaram, os dedos marcados pelo esforço. Olhei para elas, assustada. Eu o mataria. Eu poderia tê-lo matado. Mas ainda não era o suficiente.
Eu podia fazer mais. Eu deveria fazer mais.
— Vou levá-las para longe. — Minha voz soou firme, mas as palavras saíram como uma promessa sombria.
Vittório abaixou a cabeça, tossindo enquanto recuperava o fôlego.
— E onde ficarão? — perguntou, a voz rouca. — Não temos nem alimento neste inverno sem fim. Para onde irá levá-las, senão direto para a morte no frio?
A bile subiu à minha garganta.
— Elas são suas filhas... Como ousa? Você é desprezível. — A acusação saiu como um chicote.
Ele arfou, ainda segurando a garganta com uma mão trêmula.
— Tenho minhas necessidades.
Minhas mãos, agora vazias, encontraram meu próprio pescoço, apertando como se eu pudesse conter a raiva crescente.
— Suas necessidades podem esperar — sibilei, virando-me de costas para ele. — São crianças. Suas filhas. Sangue do seu sangue.
O silêncio que veio dele foi ensurdecedor. O tipo de silêncio que carregava peso, julgamento e o inevitável. Olhei para as meninas na sala apertada, suas pequenas formas encolhidas, frágeis demais para suportar o mundo cruel ao qual foram lançadas.
— Mas você — ele finalmente falou, a voz carregada com algo entre desprezo e resignação. — Você não é minha filha.
As palavras pairaram no ar como uma sentença.
Sim.
Virei-me devagar, reunindo um fôlego que parecia escapar de mim.
— Você está certo — respondi, a voz fria e firme. — Eu não sou.
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O cheiro de mofo fazia meu nariz arder, impregnando-se no fundo da minha mente como mais uma marca desse lugar sujo e esquecido. A umidade que penetrava no chão gelado fazia minha pele arrepiar, não apenas de desconforto, mas como se todo o peso dos sentimentos mais sombrios do mundo se reunisse ali, dentro de mim.
Ouvi a porta velha do porão bater com um estalo seco, e soube que ele havia saído. Vittório deixara o espaço abafado, mas não a marca de sua presença.
Puxei a barra da camisa com as mãos trêmulas, rasgando um filete de pano com os dentes. O cheiro metálico me atingiu quando vi o vermelho manchando o tecido. Sangue. Resquício de algo que ele havia tomado de mim. Estremeci, mas terminei o que precisava. Com dedos rápidos, vesti as roupas, ajustando-as como se fossem uma armadura improvisada. Talvez não pudessem proteger meu corpo, mas esconderiam minhas fraquezas. Eu precisaria de coragem agora.
Meus pés começaram a se mover, um passo de cada vez. Sabia que estava caminhando porque o vento frio tocava a pele exposta pelo rasgo da camisa. Não importava. Nada importava. Cada segundo era tomado por um desejo latejante de matar Vittório, mas... e se eu o fizesse? O que eu me tornaria? O que minhas irmãs veriam em mim? Não fui treinada para ser uma assassina. Sou uma caçadora, nada mais.
Mesmo assim, o olhar de Nestha queimava nas minhas costas. Um olhar de nojo que desenhava cada traço de desprezo em seu rosto. Não importava. Eu continuei andando.
Algo quente e molhado escorreu por minhas mãos. Lágrimas desceram até o sangue seco que ainda manchava meus dedos, vestígios do coelho que acabara de matar. Minhas pernas cederam, e eu caí de joelhos na neve, apertando os dois pequenos corpos felpudos contra meu peito. O soluço veio como uma onda inevitável, carregando a dor que assolava minha mente, quebrava minha alma e deixava cicatrizes invisíveis.
Eu sou uma muralha. Sempre fui. Mas hoje, por um momento, desmoronei.
Encostada em uma árvore com o cheiro de sangue fresco e neve ao meu redor, lembrei-me de algo terrível e ao mesmo tempo libertador: eu ainda estava viva. O sangue em minhas mãos era prova disso. Cada lágrima escorrida dizia que eu ainda respirava, que minha existência, por mais dolorosa, ainda era real.
Hoje, caí na solidão dessa floresta nevada. Mas, quando minhas lágrimas cessaram, limpei a dor com sangue e levantei-me novamente. Eu me reconstruí. E sempre me reconstruiria.
Então repeti as palavras, que agora soavam como a linha que me segurava entre a perdição e a salvação:
— Meu nome é Elle Archeron, e eu não terei medo.
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