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Não havia passado muito tempo, pelo menos não o suficiente para que o luto das jovens Archeron fosse superado. Mas bastou o pouco que se passou para que tudo mudasse. Eu via isso todos os dias.
Nestha, aquela garota chorosa que se agarrou ao meu casaco quando corremos juntas para o quarto de nossa mãe, não existia mais. Ela se tornara fria, implacável, suas palavras sempre amargas, sua presença sempre ácida. Elain, mesmo jovem, compreendia mais do que aparentava. Sua doçura, eu percebia agora, não era mais do que uma máscara esculpida à força, um escudo criado no momento mais sombrio do medo. Por isso, eu agradecia. Era sua forma de sobreviver.
Já Feyre, a pequena Feyre, mal começara a aprender as letras e palavras do mundo. Entendia tão pouco... e talvez por isso ainda mantivesse a mesma essência de antes. Era como uma luz na escuridão, uma centelha de esperança para mim.
Mas eu via também o afastamento. Sentia-o como uma sombra. A união que costumávamos ter foi engolida por essa nova dinâmica. Nestha se afeiçoara a Elain de forma obsessiva, cultivando em si uma irmã protetora, quase possessiva, enquanto excluía Feyre e até mesmo a mim. Eu entendia – talvez, no fundo, Nestha quisesse ser como Elain: uma flor nascida da lama, usando a sujeira para nutrir uma falsa delicadeza, escondendo o medo que a consumia. Mas, ao contrário de Elain, tudo o que Nestha parecia enxergar no mundo era o que havia de pior.
E assim, eu restava para cuidar de Feyre quando podia, tratando os machucados que ela ganhava com seu espírito selvagem. Perdi a conta de quantas vezes limpei seus joelhos ralados.
De qualquer forma, havia pouco que eu pudesse dizer. Sempre fui a criança deixada na porta, aceita apenas porque a senhora Archeron não conseguia conceber filhos. Mas, um dia, os deuses sorriram para ela, e Nestha nasceu – uma verdadeira filha do sangue Archeron, alguém que sua mãe poderia amar de verdade. A partir desse dia, eu conheci algo que ousei chamar de liberdade.
Agora, aos meus vinte anos, enfrentava a dificuldade que ameaçava nos destruir. As três estavam paradas diante de mim, enquanto eu fazia o melhor para esconder o pavor que me envolvia como um véu escuro.
— Teremos que vender algumas coisas... As cobranças não param de chegar.
Nestha foi a primeira a erguer os olhos. Seus olhos azul-acinzentados fixaram-se nos meus dourados, cheios de raiva. Elain, ao seu lado, resmungou baixo, sabendo que suas ferramentas de jardinagem seriam uma das primeiras a serem sacrificadas. E Feyre... Feyre apenas me olhou. Não havia raiva ou mágoa voltada diretamente para mim, mas uma tristeza tão profunda que fez meu olhar recair sobre sua bochecha suja de tinta arroxeada.
— Vendam o meu piano — murmurei, olhando para o vazio no topo da escada. Meus punhos cerraram-se, e mordi o interior da bochecha antes de continuar. — E a minha espada.
Não tive coragem de olhar para nenhuma delas. Nem para as escadas, nem para a porta do meu quarto. Apenas continuei:
— O que conseguirmos com isso nos sustentará por um tempo. Quando o dinheiro acabar, venderemos o resto das coisas das meninas.
Além da caça e da luta, o piano era minha única paixão. Um tesouro guardado dentro de mim. Ganhei-o na infância e, mesmo tão jovem, algo brilhou em mim quando o vi no meu quarto pela primeira vez. Minha mãe adorava me ouvir tocar e cantar. Dizia que, com aquilo, eu poderia conseguir um marido rico.
Ah, veja onde estamos agora, mãe.
Dei as costas. Minhas mãos tremeram diante de meus olhos enquanto as observava. A mão esquerda deslizou pela direita, contando as cicatrizes em meus dedos – cinco marcas, provas do fardo que carregava.
Sem olhar para trás, saí da casa e me coloquei a treinar até o corpo ceder. Horas depois, arfando e exausta, subi para meu quarto e me sentei ao piano pela última vez.
As notas que toquei eram manchadas de vermelho.
Vermelho da dor. Vermelho do sangue.
Vermelho da minha solidão.
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𝗰ontınuα...
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