Capítulo dois


Ben estava maior. Não em questão de altura. Teve uma época em que eu era mais alta do que ele, mas já faz uns três anos que ele me passou e muito. Ele já tinha dezoito anos agora, mas nunca comprava vinho para mim quando eu pedia.

Não que eu pedisse.

Ben estava mais largo, isso sim. Sentado ao meu lado no trem, seus ombros estavam maiores e me empurravam um pouco para a janela, o que teria me incomodado se não servissem tão bem para eu apoiar a cabeça e dormir. Para quem tinha começado a viagem com a música no volume máximo, eu mal conseguia distinguir qual era quando acordei.

Demorei um tempo para conseguir parar de piscar e me acostumar com a luminosidade da cabine do trem. Ben me observava, segurando um livro com a capa e tudo que já tinha lido dobrados para trás. Me deu uma pontada de dor no peito só de ver.

— É necessário maltratar seu livro desse jeito? — perguntei, sem qualquer expectativa de resposta. Era por isso que eu nunca deixava que ele chegasse perto das minhas estantes. Só a ideia de marcar a lombada já era uma tragédia para mim.

— Sabia que você vai abaixando o volume enquanto dorme?

— Sabia — respondi, me levantando e me esticando como conseguia.

Tínhamos reservado uma cabine inteira do trem para nós e mais uma para levar nossas malas. A viagem de avião até a capital de Vitória tinha durado pouco mais de duas horas, mas ainda tínhamos outras cinco no trilho. Teria sido mais fácil e rápido ir direto a Belforte de avião, mas Ben tinha medo de altura e, apesar de que nunca iria insistir em passar o menor tempo possível no ar, eu sabia que ele tinha ficado aliviado quando sugeri o trem. Minha desculpa foi que poderíamos ver mais do nosso país durante a viagem, que seria uma aventura, que a jornada era a parte mais importante, alguma coisa desse tipo. Era bem legal mesmo, mas tinha que confessar que já estava cansada o bastante para só querer chegar na escola e dormir.

Portia estava no outro canto da cabine, longe da luz do sol. Estudava um livro grande demais para ser indicado para quem ainda tinha um ano em escola preparatória antes da faculdade. Ela levantou o rosto como por impulso e seus olhos não subiram além da altura da minha saia.

Tinha uma razão para isso. Eu vestia a saia mais maravilhosa já inventada pela humanidade! Ela era cinza meio roxo, mas escura, com brilhos e glitter pequenos e tão intensos, que parecia que era metalizada! Ainda tinha pregas e era curta, mais de um palmo acima do meu joelho quando eu usava com a cintura alta, como hoje. Toda vez que olhava para baixo, me dava vontade de girar e fazê-la levantar um pouco, além de que já tinha postado uma foto e três stories no Instagram para mostrar o brilho dela!

Não, eu não tinha criado a saia mais maravilhosa já inventada pela humanidade, mas queria ter!

— Vocês estão pensando em se trocar antes de a gente chegar lá? — Portia quis saber, falando com nós dois, mas claramente direcionando sua pergunta para mim.

Ben teria que se trocar para se passar por guarda da escola, tinha um uniforme novo para vestir. Só não consegui imaginar por que eu teria que me trocar.

— Não, escolhi essa roupa exatamente porque queria vestir algo especial e aproveitar que faz bem mais frio em Belforte — respondi, sem conseguir esconder tão bem que estava na defensiva.

Desviei meus olhos para a janela e me deixei observar as fazendas que dava para ver dali.

— Em fevereiro, não é frio em lugar nenhum — Ben comentou.

— E na Sibéria? — Virei meu rosto para ele, que sorriu.

— Talvez na Sibéria — admitiu.

— Você escolheu meias acima do joelho como a primeira impressão que quer passar? — interrompeu Portia.

Uma olhada na direção do brilho roxo, prata e rosa dos diferentes glitters da saia, e minha confiança foi renovada.

— Primeira e única — comentei. — Você viu as fotos das peças que temos de uniforme? Certeza que dá para eu usar a saia e as meias deles desse mesmo jeito. São menos brilhantes, mas eu me viro.

Ela soltou sua caneta e se virou para mim.

— Olha, nós amamos seu jeito, Elisa, de verdade — Portia disse. Apesar de suas palavras, senti exatamente o contrário, que meu jeito era a última coisa que ela amava. — Mas você já não tem mais dezesseis anos. Em seis meses, vão anunciar que você é a princesa escondida. Precisa que as pessoas te levem a sério.

— E minhas meias as fazem não me levar a sério?

— Eu gosto delas, ainda que inapropriadas para o clima – Ben disse, me fazendo enrubescer como uma idiota por pensar que ele poderia ter prestado atenção nas minhas pernas.

— Elas são pretas — continuei com a primeira coisa que me veio à cabeça, só para ter algo a falar.

— Você tem ideia de como é difícil ser ouvida como uma mulher? — Portia continuou, como se eu não fosse mulher também e não tivesse sido a primeira a falar sobre feminismo para ela. Eu tinha onze anos na época e uma vontade louca de descobrir quais eram as minhas ideologias. — Quando você aparece com uma saia brilhante e meia assim, a imagem que passa é de uma garota fútil que não tem nada na cabeça.

Talvez eu devesse conversar com ela sobre feminismo de novo, porque parecia não ter aprendido nada.

Eu acabaria ficando paralisada mais uma hora onde estava só pelo choque do que ela tinha falado, mas o trem brecou, e eu quase caí de cara nos bancos. Por sorte, Ben me segurou e manteve as mãos na minha cintura até eu me sentar outra vez.

Tive então a chance de pensar um pouco antes de respondê-la:

— Eu entendo que tem gente que vai me julgar pelas roupas que eu uso — comecei, engolindo a parte em que queria apontar para ela e dizer como você — mas não vale a pena deixar de me vestir como quero só por isso. Imagina se eu fosse mudar cada coisa em mim para que ninguém falasse nada! Se tivesse que mudar tudo que pudessem julgar, o que restaria de mim?

Senti uma pontada de saudades da tia Lena, que tinha ficado em Vilareal depois de uma despedida mais dolorosa do que eu tinha esperado. Ela sempre disse que eu era como uma esponja, que observava e absorvia tudo ao meu redor, que aprendia lições que nem sabiam que estavam me dando, mas esta ela me ensinara de propósito. Seja quem você é. Muitos podem te odiar e, mesmo que ninguém afinal te ame, não tem como se amar se você tira pedacinhos de si mesma para encaixar na visão dos outros. É melhor viver sozinha do que rodeada de pessoas e sem você.

Eu nunca confessei que tinha mesmo medo de acabar ficando sozinha para sempre, sem amigos, sem uma família que me reconhecesse como parte dela, mas me recusava a ir contra quem eu era.

— Não estou falando para você mudar quem é, só para se vestir com um pouco mais de sofisticação. Você é uma princesa, afinal. Apesar de que não sei como isso vai te ajudar muito agora que você se inscreveu na Casa das Artes — ela disse artes como se eu tivesse escolhido estudar esterco, e voltou ao seu livro.

O trem brecou por completo na última parada antes da nossa. Já estávamos no condado de Belforte, só precisávamos chegar até a capital homônima, a menor de todos os condados, mas a mais significativa também. Fui pesquisar mais sobre Rei George I, o líder da revolução parforcense que dava nome a tanta coisa, depois do comentário do meu pai. Tá, foram dez minutos na página do Wikipédia, não posso chamar de pesquisa mesmo, mas era verdade que a escola tinha uma competição entre as Casas a cada cinco anos para comemorar um número redondo do aniversário dele. A competição mudava a cada vez, então não tive como adivinhar qual seria agora e acabei me distraindo com uma página sobre o time de beisebol da cidade. Eles eram bem melhores do que o da capital, mas eu era obrigada pelo meu coração a torcer para os Dragões de Vilareal para o resto da vida.

Ben se virou para mim como se estivesse prestes a falar alguma coisa, mas eu fui mais rápida:

— Já escolheu o que você vai estudar? — perguntei para ele e fingi não ver que Portia levantou o rosto de novo, olhou para cada um de nós e voltou a estudar.

Com a ajuda de meu pai, eu tinha conseguido uma bolsa para Ben fazer um curso paralelo na escola. Normalmente, eles só eram oferecidos para quem já tinha terminado o ano na preparatória, mas pular este ano era um dos privilégios de quem se alistava no exército ou na guarda.

Talvez o único privilégio além do básico: moradia, plano de saúde e pensão.

Ben colocou a mão dentro do bolso da calça e tirou um dragão de argila que já tinha perdido a ponta da asa.

— Adivinha — ele disse, e eu sorri, pegando o dragão.

Ele estava mais ou menos na mesma posição que o da nossa bandeira, mas ainda não tinha cor. Essa era a minha parte, apesar de eu sempre estragar as peças de Ben quando pintava. Não sabia por que ele insistia em me deixar "ajudar".

— Você viu que o professor de escultura chama Pedro, né? Pensa na ironia — comentei. Ele não reagiu. — Pedro, pedra. Escultura. Entendeu?

Ben me olhou como se eu estivesse falando alemão, e eu lhe empurrei pelo ombro.

— É engraçado, tá? Você não sabe apreciar meu senso de humor sofisticado. — Se alguém me perguntasse se aquela palavra tinha tido uma segunda intenção, negaria até a morte.

Ele riu, uma risada curta, mas genuína e alta, que me dava vontade de abraçá-lo.

— Já sabe que vai ter que fazer todos meus trabalhos para mim, né? — perguntei assim que o trem voltou a andar.

Não demorou nem dois minutos para estarmos vendo só campo de novo. As cidades neste condado eram pequenas demais! Não queria nem ver como era a capital, que não tinha mais do que doze mil habitantes! Eu tinha nascido para cidades grandes, não vilas.

— Eu não vou fazer coisa nenhuma — Ben respondeu.

— Mas não dá para contar com você para nada, hein?

Ele riu de novo, e eu lhe dei um leve empurrão com o braço. Portia bufou do seu canto, mas a ignorei. Preferi ficar olhando pela janela, brincando com o dragão e tentando muito não pensar em tudo que estava prestes a mudar.

*

Todo mundo sabia que eu existia. Quer dizer, que uma terceira herdeira existia, ainda que meu nome tivesse sido divulgado como Princesa Victoria, o que era meu segundo nome. Todo mundo sabia que meus pais tinham decidido esconder a terceira filha para me dar uma chance de uma vida normal e não lidar com a fama que vinha com o sobrenome Vieira até ter idade e maturidade para isso. Apesar de várias tentativas de descobrirem quem eu era durante toda minha vida, ninguém nunca tinha acertado. Tinha quem pensasse que eu vivia trancada no castelo, quem jurasse que eu tinha sido mandada para outro país (quase sempre chutavam a Espanha ou Portugal) ou que eu nunca tinha existido. Muitos achavam que o segredo era porque minha mãe tinha tido um caso com um cara tão diferente, que ficava claro ao olharem para a minha cara, então tinham me escondido.

Eu era parecida demais com meu pai e com a família dele para haver alguma dúvida, e sempre me perguntavam se era filha de tia Lena por isso. Do lado dela, a história oficial era que meus pais tinham morrido quando eu era bebê, então Lena, minha única família, tinha me criado, mas quase ninguém tinha a chance de perguntar. Ela era mesmo minha tia, mas tinha se afastado da família real antes de eu nascer, de um jeito doloroso que só me explicou quando eu já tinha mais de dez anos, mas que a ajudou a me proteger. Meu pai disse que eu crescer com sua irmã era um jeito de me manter perto da família, mas eu sabia que era também para ele ter uma desculpa para vê-la.

Tinha muito carinho entre os dois, visível demais para eu não perceber toda vez que se encontravam, mas alguma coisa tinha acontecido também para criar uma barreira entre eles que custavam a tentar derrubar. Toda vez que eu tocava no assunto, me deixavam falando sozinha e uma das vezes foi a única em que Lena gritara comigo.

Ela me criou quase como mãe, apesar de eu ter dividido meu tempo entre sua casa e o castelo. Agora eu teria um terceiro quarto para mim e duvidava que ele me pareceria mais meu do que os outros dois.

No castelo, eu tinha mais do que um só. Eram aposentos enormes, com quatro cômodos que se mantinham trancados praticamente sempre. Meu único jeito de entrar lá era pelos túneis e um outro quarto que se conectava diretamente, com painéis que liam a impressão da minha mão para abrir. Pude decorá-los como queria e confessava que os amava como se fossem meu próprio mundo. A única parte dolorida era eles serem um segredo. Apenas dez pessoas já tinham entrado ali: eu, Ben, Portia, meus irmãos, meus pais, minhas duas criadas e Elena, assistente de relações públicas e dama de companhia da minha mãe.

Quando estava no quarto da casa de Lena, parecia que o castelo não podia ser real. Cabiam nele uma cama de solteiro, uma estante de livros estreita e uma escrivaninha. Minhas roupas eram guardadas embaixo da cama, em uma mala constante, só as que eu trazia a cada vez. Já tinha chegado a passar um mês inteiro sem voltar para o castelo, mas foi só em uma ocasião. Era estranho pensar que agora estaria em outro quarto, dividindo com uma pessoa estranha e sem a possibilidade de ir aos meus aposentos sempre que tivesse vontade. Mais estranho ainda pensar em como estava longe da capital.

A cidade de Belforte era realmente pequena e completamente diferente de Vilareal. Enquanto a capital tinha prédios coloridos com molduras brancas, Belforte era mais escura, com casas de paredes claras ou tijolos escuros e estacas de madeira quase preta formando estruturas sobre elas. A ilha onde ficava foi colonizada principalmente por alemães, tão acostumados com neve que construíram os telhados inclinados sem realmente precisar. Pesquisei sobre a cidade antes da viagem e teoricamente era até possível nevar, mas um tal de aquecimento global fez com que a última neve aqui tivesse sido no começo do século.

Tinha que admitir que logo fiquei encantada por Belforte. Era tão antiga e preservada que seria impossível não ficar! Os prédios eram baixos, provavelmente com menos de seis andares cada. Nós passamos por estátuas, praças e igrejas antigas com torres pontudas antes de o trem parar. Um rio corria pelo centro e desaguava no mar, e a estação de trem ficava perto dele, mas longe da costa. Estarmos tão próximos do limite de Parforce ao sul garantia um vento constante que quase, quase me fez feliz de usar as meias. Só não fez, porque o sol estava queimando meu braço pela janela do táxi que pegamos. Ainda tivemos que contratar outro para caber toda a nossa bagagem, o que me fez considerar se tinha exagerado ou era só por estarmos em três pessoas.

— Nós estamos atrasados — foi o que Portia disse quando entramos na rua da escola. Ela estava irritada por não conseguirmos manter seu planejamento até nos segundos. Puxava seu cabelo castanho claro com a mão como se quisesse arrancá-lo e nem pareceu admirar nosso destino quando finalmente o avistamos.

A escola era um prédio em tijolo vermelho escuro que parecia ter metade do tamanho do castelo à primeira vista, mas era enorme comparado ao resto da cidade. Nós viramos a esquina, e o táxi entrou no estacionamento à nossa direita, enquanto eu precisava de alguns minutos olhando para ela para absorvê-la. Tinha uma escadaria enorme na frente da porta, o suficiente quase para um andar inteiro embaixo do principal. Assim que saí do carro, peguei o mapa do meu bolso e aproveitei para ajeitar a saia e puxar as meias para cima.

Segundo as informações da carta de aprovação, eu estava em frente ao prédio principal, onde ficava a biblioteca, o auditório, a ala hospitalar e os andares de dormitórios, além de outras coisas. Eu teria que dividir com uma garota da Casa das Ciências, mas só descobriria quem era quando a encontrasse. Os quartos podiam ser mistos, o que era um avanço enorme para uma escola que tinha começado como só para meninos, mas meu pai fizera questão de escolher quem seria minha colega de quarto.

Eu estava torcendo tanto, mas tanto para não ser Portia! Ela já tinha entrado no prédio, encontrado algum funcionário e mandado ele nos ajudar com as malas e caixas. Eu ainda estava parada do lado do carro, torcendo para que meu pai não tivesse tido a brilhante ideia de me fazer dividir um quarto com ela. Dois anos atrás, isso teria sido um sonho, mas agora seria um pesadelo.

—Você está no quarto 281, Elisa — ela me disse, me entregando um papel. — E eu no 189.

Tive que esconder meu suspiro de alívio.

— Você tem que entrar e pegar suas chaves.

— Chaves? — Olhei rapidamente para o papel com as instruções sobre o alojamento, as regras e onde encontrar meus uniformes.

— Sim, do seu quarto, da caixa de correio, do armário e uma para a trava de bicicleta, que você nem vai usar — ela me deu as costas e voltou a dar ordens para o cara que estava carregando suas malas.

Eu passava os olhos pelo texto no papel sem saber por onde começar. Estava escrito ali, mas era como se meu corpo tivesse entrado em modo de espera, na minha última chance de dar as costas e desistir de tudo de uma vez por todas.

— Você vem ou não, Lis? — Ben perguntou, aparecendo na minha frente com uma caixa nas mãos.

Seus olhos encontraram os meus, e ele assentiu com a cabeça, me encorajando a ir em frente. Então peguei uma mala, ajustei minha bolsa no ombro, respirei fundo e o segui para dentro da minha nova casa.

*

Já tinha colado o mapa mundi atrás da minha cama, uma bandeira de Parforce logo em cima, um pôster dos Caçadores das Sombras, mais um que recebi com o CD Reputation da Taylor Swift e um triângulo dos Dragões de Vilareal, quando minha colega de quarto chegou. Estava arrumando meus livros e nem percebi quando entrou.

— Nossa, você é bem patriota — foi a primeira coisa que a ouvi dizer.

Parei de organizar minha prateleira para virar para a porta. Ela tinha cabelos pretos e levemente ondulados que paravam logo acima dos seus ombros, com uma franja retinha sobre os olhos. Parecia um pouco mais baixa do que eu, mas era mais gorda, tinha um rosto bonito e simétrico e parecia ser alguma modelo que só minha memória péssima me impedia de reconhecer.

— Eu gosto das cores — falei estupidamente.

Quem penduraria uma bandeira pelas cores? Mas era mais fácil do que dizer que era apaixonada pelo design, pelo dragão dourado e o que ele representava para uma princesa.

— Certo — ela respondeu, me esticando sua mão. — Chloe Choi Lacerda prazer.

Na hora, entendi por que seu rosto me pareceu familiar.

— Você é a filha do Ministro Lacerda! — Exclamei sem conseguir me conter e a cumprimentei.

Ela sorria, mas sua testa franziu. Apostaria que seus olhos eram verdes, mas agora chegavam perto de cinzas no quarto mal iluminado.

— Você entende de política? — perguntou, me dando vontade de rir.

Imagina só, alguém achando que eu entendia de política! Minha irmã ia achar que era uma piada, mas Chloe parecia falar sério.

— Não exatamente — respondi. — Mas seu pai é conhecido. — Me arrependi na hora pelo comentário.

Seu pai realmente era conhecido, mas mais porque era um Lorde parforcense, Duque de Pallas, e casado com uma mulher sul coreana, que eu tinha que presumir ser a mãe de Chloe. Além de eles estarem juntos há tanto tempo, elas dividiam certas feições. Era de se esperar que os tabloides parassem de falar dele só por isso em algum momento, mas até eu já tinha percebido que não conseguiam mencionar Lorde Lacerda sem mencionar a Coréia do Sul.

Argh. E eu acabei de fazer o mesmo.

— Gosto de viajar. De geografia — corri para explicar, me embaralhando cada vez mais. — Não que eu vá estudar geografia, mas gosto de mapas — apontei para o que estava atrás da minha cama. — Ele é Ministro de Relações Exteriores. Eu gosto de viajar para o exterior.

Se tivesse mencionado que eu amava ouvir rap, ler livros de fantasia e desenhar minhas próprias roupas, teria encaixado tanto quanto o resto das informações inúteis e desconexas da minha explicação.

— Ou então você já assistiu a algum jornal falando sobre ele e minha mãe?

— E sua irmã — completei como a idiota que era. Por que minha boca tinha que funcionar tão mais rápido do que meu cérebro?

Chloe, em compensação, só sorriu como quem já esperava aquilo.

— Não que eu concorde com eles. Com os jornais, quero dizer — eu tinha que continuar falando?

— Não se preocupe — ela se virou para a porta e puxou uma mala para dentro do quarto. — Vamos fazer assim. Você finge que nunca leu nada sobre a minha família e eu finjo que não sabe de nada ainda sobre mim.

— Combinado — respondi, mas ela tinha saído de novo, voltando dessa vez com uma caixa.

— Você já dividiu quarto alguma vez na vida? — me perguntou, apoiando a caixa em cima da sua cama, que ficava do outro lado do cômodo.

— Não. — Resolvi não mencionar que, na minha casa, eu tinha quatro aposentos só para mim. — Tem alguma coisa que eu preciso saber?

— Precisa saber que tem outra pessoa aqui e que às vezes o que é mais confortável para você pode me atrapalhar.

— Ah — foi minha única reação. Não que eu não tivesse me perguntado como ela poderia ser, mas agora começava a questionar como eu seria para ela.

— Acho que criar regras é interessante — Chloe continuou, enquanto eu me sentava na cama e trazia os livros que ainda segurava para o colo. Olhei rapidamente para a porta aberta quando achei que Ben estava voltando, mas foi outro guarda que passou. — A primeira tem que ser falar sempre a verdade.

Isso me fez voltar a olhar para ela na hora.

— Como assim? — perguntei sem mexer muito a boca, com medo de que ela já tivesse descoberto quem eu era.

— Sem atitudes mesquinhas, passivo-agressivas. Se você tem algum problema comigo e com algo que eu fiz, me fale. Converse comigo, que não tem nada que não se resolva com uma conversa.

— E uma cerveja — falei automaticamente, já que era um ditado tão conhecido em Parforce. — Ou com um café — completei do meu jeito.

— Exato. Mesmo que eu tenha algum defeito fatal, vem falar comigo sobre ele que a gente se entende. Mas isso não significa que eu tenho que me adaptar a você. Nós duas precisamos abrir mão de algumas coisas às vezes para chegar a uma harmonia.

Estremeci, e nem era pelo que ela tinha dito.

— Certo — falei, mas Chloe percebeu que eu me encolhia.

— Esse prédio é meio gelado, né?

— Ontem à tarde, eu estava tomando água de coco com os pés na areia — falei, me esticando para fechar a janela em cima da minha mesa. — Em Vilareal — completei, quando vi a questão se formando no rosto de Chloe.

— Eu sou de Bianchi, em Caldas. Não é tão quente quanto a capital, mas nossa. É mais quente que aqui! — Ela pegou seu celular e o virou para mim depois de um tempo, me mostrando o clima. — Está vinte e sete graus lá e só vinte aqui!

— Meus pais queriam que eu trouxesse um aquecedor — admiti.

Ela parou para pensar, mas guardou o celular e voltou a arrumar suas coisas. Ainda não parecia ter chegado a nenhuma conclusão quando disse:

— Pode ser um pouco difícil chegar a um acordo quanto à temperatura do quarto. É uma das questões que mais causa atrito entre colegas, eu acho.

— Já teve que dividir muitos quartos? — perguntei.

Ela suspirou e parou de tirar coisas das caixas, se virando para mim.

— Eu tenho uma família bem grande.

Eu também, queria dizer, mas a maior parte dela nem sabia que eu era da família.

— Combinado então. Qualquer que seja o problema, a gente conversa — eu disse.

— E falamos sempre a verdade — ela completou.

Engoli em seco.

— Sempre a verdade.

Foi nessa hora que Ben chegou, vestido com seu novo uniforme dourado e quase mais metálico do que a minha saia, sorrindo de orelha a orelha. Ele parou bem no espaço da porta e ajustou as mangas da jaqueta, depois passou os dedos pelos botões duplos no peito e ajustou sua postura sob as ombreiras.

— Como estou? — perguntou.

Eu me levantei e parei de frente para ele, ao pé da minha cama.

— Não sei, acho que você precisa bater continência para descobrir.

Ele sorriu, mas seus olhos foram até Chloe atrás de mim.

— Sou guarda de uma escola, não do exército — respondeu, e entendi a besteira que eu tinha feito.

— Mesmo assim — insisti de brincadeira, e ele levou a mão à sobrancelha, em uma pose oficial.

Seu cabelo estava bem curto nas laterais e mais comprido em cima, os cachos castanho-escuro ainda não tinham sido domados como mandava o uniforme e isso o deixava bem mais bonito. Eu o observei por tempo suficiente para ele não conseguir mais controlar seu sorriso, e as sardas em sua bochecha foram tomadas por rugas que apareciam desde que éramos crianças. Meus olhos passavam pelo seu uniforme, mas foram atraídos para os seus quando ele perguntou de novo, dessa vez quase em um sussurro:

— Como estou?

Ele franzia as sobrancelhas de um jeito só dele e que me forçou a dizer:

— Perfeito.

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