2.
Essa não é quem sempre fui.
Não se trata apenas do peso das jóias reais sobre a minha cabeça e o meu pescoço. Não é a prisão do espartilho e dos sapatinhos de cristal. Não são apenas meus pés que precisam se amoldar.
É toda minha existência.
Enquanto encaro meus próprios olhos no espelho, revivo a alegria da minha mãe e o apoio manchado de inveja de minha irmã, quando o caro Grão-Duque anunciou que eu era o perfeito encaixe.
Foi por elas que o fiz.
Sim, o príncipe Henry era o sonho de todas as meninas do Reino. Afinal, quem nunca quis ser uma princesa?
Mas, não, não foi por ele, nem pela coroa em si.
Após a morte do meu pai, minha mãe sacrificou tudo para que tivéssemos chances de um futuro digno. A renda de cinquenta táleres ao ano mal era suficiente para manter a propriedade. Ou mantínhamos as aparências ou nos alimentávamos. Então, qual a única coisa que uma mulher nobre poderia fazer?
Casar-se novamente, é claro.
Casou-se. Com um homem tão claramente ainda abobado de paixão por sua finada esposa e sua filha legítima que não nos restara nada parecido com o afeto de um esposo ou de pai. Era claro que não nos via quando seus olhos nos divisavam. Sua imaginação era povoada de fantasmas, reflexos, imagens de um tempo de alegria e realização, cantos e risadas, luz e cores, coisas que sumiram no dia em que sua amada fora enterrada. Era no passado que desejava viver e era o passado que preservava. Não podíamos tocar em nada da casa. Tudo precisava ser mantido do jeito que sua querida um dia determinou. A posição das cadeiras, seus vestidos no closet, a mesma criadagem lenta e caduca, até mesmo a disposição e o tipo de flores no jardim.
E eu entendo. De verdade.
Mas também nós precisávamos de um pai. Também nós desejamos segurança e felicidade e afeto e escolha. Mas acho que seu coração era pequeno demais para conter qualquer coisa além da falecida e de sua preciosa Ella.
Por isso, tão logo se juntou à amada no túmulo, finalmente tomamos para nós a liberdade. Ainda estava de vestes de luto, quando minha mãe mandou que todos os servos, tão leais aos antigos patrões que mal disfarçavam respeito diante dela, fossem embora e exigiu de todas nós que nos esforçássemos para manter-nos até que novos empregados fossem achados.
É claro que a dondoca e mimada Ella se recusou.
Nunca passou por necessidade. Nunca teve que lutar por nada na vida. E, por isso, jamais seus dedos preciosos e delicados tocariam trapos de limpeza.
Ridícula.
Mamãe a disciplinou imediatamente. Ela teria que descobrir que a vida não é um conto de fadas e que, às vezes, é necessário fazer coisas que nem sempre queremos. Então, de castigo, Ella teria de limpar naquela noite a fornaça, o que era um trabalho simples, mas desagradável, o que fez com que eu e minha irmã secretamente sentíssemos um alívio incrível de não ter de fazê-lo.
Quando a mocinha loira e delicada retornou toda coberta de cinzas, a cena foi tão hilária que o apelido foi inevitável.
— Ella borralheira — cantávamos entre gargalhadas. — Ella borralheira!
Mas Ella não estava rindo.
Suas lágrimas formavam uma pasta cinzenta em suas bochechas e tremi com o ódio e a promessa de vingança em seus olhos. Silenciamos imediatamente com o bater duplo de palmas de minha mãe e retornamos às tarefas. Provavelmente não pensaríamos mais a respeito da ocasião e do apelido, exceto que, na manhã seguinte, despertamos com uma avalanche de cinzas sobre nós e o rosto satisfeito de Ella, de pé sobre nossa cama, com um balde preto nas mãos. Elise tossia tanto que pensei que morreria. Foi assim que o apelido de Ella deixou de ser uma brincadeira para ser um ato de maldade.
Porque ela merecia.
Vivemos sob o alvo de seu desprezo e arrogância. Como se achava, aquela menina! Era, em sua própria opinião, a mais linda, a que melhor cantava, a que mantinha a ordem na casa. A única amada pelo papai. E saía dançando com sua vassoura para demonstrar para minha mãe que não importasse o quanto se esforçava para discipliná-la, ela sempre seria superior a todas nós.
Tenho vergonha de admitir, mas eu a odiava. Odiava seu orgulho, sua teimosia, seu desprezo. E acima de tudo odiava quão linda realmente ficara com o vestido de sua mãe para o baile real. Odiava seus olhos azuis, sua pele de porcelana, seus longos cabelos loiros e seu sorriso que nada afetava.
Mas eu nunca conheci toda a intensidade da dor da rejeição quanto o dia em que Henry a escolheu.
A orquestra real tocava uma valsa. Eu já estava deslumbrada por todo o luxo e a atenção aos detalhes da festa, quando chegara minha vez. O afamado príncipe Henry, de repente, estava bem diante de mim. E estendia sua mão para cumprimentar-me. Ele era tudo aquilo que diziam, o homem perfeito, como uma pintura de Da Vinci, alto e intimidante, em seu uniforme militar branco. Por apenas um segundo me olhou e me senti transportada a outro mundo. Mas então seus olhos focalizaram adiante de mim e se acenderam com um novo brilho. Quando me volto, lá estava, a maldita Ella Borralheira transfigurada numa princesa.
Ele a escolheu. Diante de toda corte.
E isso foi mais do que pude suportar.
Bastou um momento de fraqueza.
A decisão errada.
O quarto no qual estava, no dia em que toda a corte saíra com trompetes e pompa em busca da princesa fujona, foi acidentalmente trancado. Por mim.
O esforço de caber no sapatinho era o que qualquer garota faria, justifiquei para mim mesma. Só uma idiota não faria um mínimo de esforço para conquistar o príncipe. Minha mãe e Elise merecem isso.
Arruinar as chances de Ella era apenas um efeito colateral, muito bem-vindo por sinal.
Ouço batidas na porta que me despertam de minhas lembranças. Olho em pânico mais uma vez no espelho e meu rosto enrubesce.
Talvez esse seja o fim. Talvez seja o que mereço pelo que fiz. Ser desquitada é a menor das minhas preocupações. Esse tipo de engano contra a família real pode ser considerado até mesmo traição. Elevo a mão até meu pescoço e acaricio com as pontas dos dedos os contornos das pedras preciosas.
— Entre — falo, sem tirar os olhos do espelho.
Que tal trocar um colar de diamantes por uma forca?
Parece ser essa a escolha.
Porque esta é a noite em que Henry saberá de toda a verdade.
Feliz que alguns de vocês estão acompanhando mesmo com todo meu atraso! O carinho de vocês compensa qualquer coisa. Um abraço muito apertado!
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