Capítulo 6
O resto da noite passou sem mais sonhos, ou no meu caso, sem mais lembranças. Eu estaria mentindo se afirmasse que a presença do príncipe não ajudara nisso. Já devia fazer um bom tempo desde que nós acordamos, e eu ainda não conseguira parar de pensar naquele beijo.
O problema estava justamente em saber se ele já havia conseguido parar ou não.
Sem ter como fazer isso sem perguntar, resolvi guardar tudo para mim e não comentar nada. Afinal de contas, por mais que o momento tivesse sido maravilhoso, eu não conseguia transpor minhas inseguranças para pensar na Seleção como um futuro possível. Nem mesmo ao relembrar a última coisa que Osten me disse antes de adormecer.
_____________________________________________
Era impressionante o número de suprimentos que aquele abrigo comportava. De comida à mudas de roupa e objetos de higiene pessoal.
Osten estava se trocando no banheiro, e eu, que já havia feito isso antes dele, o esperava para podermos comer. Apesar de ainda tratá-lo como príncipe Osten ou Alteza quando conversávamos, nos meus pensamentos eu passei a referir-me a ele muitas vezes usando apenas o seu primeiro nome. Uma parte minha não aprovou essa "suspensão de formalidade", mas eu simplesmente a ignorei.
— Estou pronto. — Osten falou, fazendo-me virar na direção da porta do banheiro e paralisar.
As roupas do abrigo eram bem simples, calças e camisetas que serviam para os dois sexos. Em mim elas ficaram um pouco grandes, mas em Osten delineavam o corpo com perfeição. E como se isso não bastasse, os braços dele pareciam ter sido feitos pelo mais talentoso escultor que já viveu. Eu poderia passar o dia inteiro assim, olhando para ele.
— O que aconteceu? — Osten perguntou, tirando-me do meu devaneio ao se aproximar de mim.
Corando, baixei a cabeça. — Nada, eu só estava pensando em como esse abrigo tem tantos "luxos". — Menti. — Quer dizer, aqui não era um local para pequenas passagens de tempo?
Ele sorriu, sentando-se à minha frente. — Sim, você está certa. Mas depois que os meus avós paternos morreram num ataque rebelde, o meu pai ficou tão preocupado com a segurança da minha mãe que reformou rapidamente todos os abrigos, projetando-os para que pudessem oferecer estadias maiores. Ele mandou construir banheiros e adicionou alguns itens à lista de suprimentos obrigatória. E desde então, os manteve intactos e abastecidos, até mesmo depois do fim das ameaças de morte. Acho que a minha irmã faz o mesmo por tradição.
— Isso explica tudo — Ouvi o estômago dele roncar e ri. — E o que temos para comer, Alteza?
Ele me olhou envergonhado mas seus olhos entregaram o seu divertimento. Rapidamente, o príncipe começou a tirar os alimentos de uma das cestas de refeição. Quando ele acabou o trabalho, nós nos vimos rodeados por uma garrafa de suco integral, muitas frutas secas, barras de cereais e dois pequenos potes de mel.
— Sinto muito que sua segunda refeição no palácio seja essa. — Osten falou, como se precisasse se desculpar, enquanto pegava um dos potes de mel para abri-lo.
Dei de ombros. — Não tem problema, eu não estou acostumada a extravagâncias de qualquer forma. Ontem mesmo eu obriguei as minhas criadas a comerem comigo e mesmo assim quase não conseguimos dar conta de tudo.
— Você comeu com as suas criadas no quarto? — Ele perguntou, fitando-me surpreso.
— Eu não podia? — Questionei de volta, confusa.
— Não é isso, é que poucas pessoas dividiriam sua refeição com uma criada. Vai contra a etiqueta. Eu, por exemplo, só imagino a minha mãe fazendo isso, e só porque já a vi fazendo de verdade.
— A rainha América, perdão, a Sra. Schreave é realmente uma mulher muito bondosa.
Com certeza. — O príncipe falou entre mordidas. Ele havia pego uma barra de cereais e lambuzado no mel para comer.
Pensando em fazer o mesmo, peguei o outro pote de mel e bufei de frustração quando não consegui destampá-lo. Tentei novamente com mais força. Nada. Ouvi um riso baixo e olhei para Osten.
— Onde está o seu cavalheirismo, Alteza? — Provoquei, estendendo o pote para ele.
— Era só ter pedido, senhorita Wightman. — Ele respondeu sorrindo enquanto tirava a tampa aparentemente sem esforço.
Comecei a comer, me deliciando com a doçura do mel.
— E então, o que você achou das outras garotas? — Sua pergunta me fez parar para pensar. Não poderia sair falando mal de Lily ou de Leanna, pois eu pareceria desesperada para ganhar, quando na verdade tinha certeza de que iria sair em breve. Por outro lado, o pensamento de eu indo embora e umas delas se tornando a nova princesa me dava calafrios, além de uma sensação nova que eu não conseguira identificar.
— Da última vez que as vi, quase todas elas passaram um bom tempo me encarando. — Respondi, subitamente me lembrando do final de tarde passado no Salão das Mulheres com Phoebe.
Osten tombou a cabeça para o lado, parecendo interessado. — E porque você acha isso?
— Talvez pelo fato do meu nome, Alice, aparentemente significar "de linhagem real" e eu não saber disso quando a princesa Kerttu resolvera anunciar o fato na frente de todo mundo. Ou talvez por que a princesa, dentre todas as selecionadas, só se dirigira a mim, e ainda mais com frases do tipo "O tio Osten vai gostar de você" e "Você vai ficar aqui por um bom tempo".
O príncipe deu uma gargalhada, curvando-se para trás no processo. Incapaz de ficar indiferente, eu comecei a rir também.
— Essa minha sobrinha é demais. As vezes ela se parece muito comigo quando criança.
— Você era muito travesso?
— Bom... Digamos que a minha mãe se esforçava muito para me manter quieto.
Eu ri ainda mais com a sua resposta. No entanto, parei tão logo me lembrei de um assunto sério.
— O que todos vão pensar quando descobrirem que estávamos presos aqui? — Questionei. — Tecnicamente, Vossa Alteza deveria estar se apresentando as selecionadas hoje.
— Esqueceu-se de que você é uma delas? "Tecnicamente", eu estou fazendo isso. Só por mais tempo do que imaginei precisar.
— Não sei se isso vai ser muito bem compreendido. Ainda mais quando souberem que a culpa de tudo foi minha. — Falei, já imaginando os olhares frios que receberia.
— Você sabe que isso não é verdade. Não foi sua culpa tropeçar perto da escada quando eu estava passando por perto, como também não foi culpa sua se machucar e ser carregada para dentro do abrigo por mim.
— Mas eu não... — Ele colocou uma barra com mel na minha boca antes que eu pudesse terminar de falar.
— Você tropeçou perto da escada, e eu, que estava por perto, vi que tinha se machucado. Então carreguei a senhorita para fazer um curativo no abrigo, e só depois percebi que estava sem a chave. Ok?
Assenti com a cabeça.
— Bom. E se alguém reclamar com você, conte para mim. Certo?
Assenti novamente.
— Obrigada. — Eu disse, com vergonha.
— Não é certo você ser punida por algo que não pôde controlar.
— Mas eu estava praticamente invadindo a biblioteca. — Retruquei.
— O que não é crime algum já que você está aqui como visitante. Só não precisamos contar esse fato para deixarmos tudo mais simples.
Eu o encarei, me perguntando de onde surgira aquela aparente necessidade de me proteger que ele estava demonstrando. Isso não combinava com o perfil do príncipe "Destruidor de Corações". Pelo contrário, esse fato revelava alguém muito sensível, preocupado com as necessidades alheias.
— Você está me olhando daquele jeito de novo. — Ele declarou.
— De que jeito? — Perguntei confusa.
— Como se estivesse tentando decidir quem eu sou de verdade. — Suspirou. — O eu que você vê aqui agora ou o eu conquistador construído pelas revistas que você descreveu para mim na noite passada.
Corei.
— E por essa reação, — ele disse, indicando o meu rosto. — posso ver que ainda não chegou a uma conclusão.
Ficamos um pouco em silêncio, até que eu decidi que era meu dever falar alguma coisa.
— Esse fato pode ter mais haver comigo do que com você, Alteza. — Eu disse, omitindo os pormenores.
— Se a senhorita quisesse permanecer no palácio, eu certamente poderia lhe ajudar com isso.
Congelei. Como ele soube que a minha vontade era sair?
— Foi fácil de deduzir. — Disse ele, como se tivesse lido meus pensamentos. — Eu não sei porque você se inscreveu na Seleção, mas depois do jeito que você falou ficou claro para mim que você não queria permanecer aqui. Afinal, quem gostaria de ficar perto de um homem com aquelas atitudes? — O príncipe completou, passando a encarar o chão.
Engoli em seco. — Eu não sei o que dizer.
— Não precisa dizer nada. — Falou ele, para logo depois olhar para mim de novo. — Ou melhor, precisa sim, diga que você vai ficar no palácio para poder me conhecer realmente.
Processei o seu pedido. Por um lado, eu tinha aquela desconfiança sobre a personalidade real dele e o fato de eu não conseguir superar o que meu pai fizera para poder voltar a confiar nos homens. Pelo outro, eu tinha aquela esperança que crescia gradativamente dentro de mim, além de tudo o que a presença de Osten e aquele beijo me despertaram.
Subitamente, me vi diante de uma balança com pesos iguais.
— Pelo menos pense no assunto. — Continuou ele, vendo minha hesitação. — Reflita enquanto estivermos aqui juntos, e me dê a resposta quando pudermos sair. Pode fazer isso?
— Sim. — Respondi.
— Ótimo. — Ele sorriu. — Agora vamos terminar de comer antes que as formigas façam isso por nós.
_____________________________________________
Dentro do abrigo, nós não tínhamos como saber a hora, mas quando aquele frio devastador da noite passada foi se instalando novamente, deduzimos que deveríamos dormir pois estava ficando tarde.
Pegamos outra cesta para comermos uma última vez antes de nos deitarmos, e quando estávamos terminando a refeição, peguei Osten me encarando com um sorriso travesso.
— Mas o que é que você está...
Antes que eu pudesse terminar de falar, ele se inclinou para a frente e passou um dedo lambuzado de mel na minha bochecha.
— Nossa, como eu queria fazer isso. — Disse ele, rindo da minha falsa cara de indignação.
— Isso vai ter volta, Alteza. Não pense que só porque é um príncipe... — Eu tentei falar, mas ele me atacou de novo. — Ah, foi você quem pediu. — Bradei, indo em sua direção.
Ele tentou desviar mas eu o atingi em cheio no nariz. Claro que isso teve volta. Começamos a correr e tentar lambuzar um ao outro, dando gargalhadas quando conseguíamos realizar nosso objetivo.
Poucos minutos depois, desabamos cansados no chão.
— A vingança nunca teve um gosto tão doce. — Eu disse.
— Concordo. — Falou ele antes de se virar para mim. — Oh, você... têm mel... espere.
O príncipe se inclinou na minha direção e estendeu os dedos para tentar limpar um pouco de mel que estava perto da minha boca, fazendo um pequeno formigamento atravessar o meu corpo.
— Você também está com... — Eu disse, parando no meio da frase e apontando para os seus lábios.
Ele assentiu, os olhos brilhando. — Acho melhor nos limparmos direito.
Me puxando para perto, Osten colou sua boca na minha num beijo leve, que logo se transformou em algo mais elaborado. Me choquei ao perceber o quanto eu desejara aquilo de novo. Era algo tão perfeito, tão bom e tão espontâneo que me fez suspirar.
Sorrindo, nós nos afastamos. O príncipe tomou a minha mão e me ajudou a levantar, me conduzindo para a pequena pia numa das paredes do abrigo.
— Ainda não acredito que isso aconteceu. — Comentei enquanto o ajudava a limpar o rosto.
— A guerra de mel ou o nosso segundo beijo? — Ele perguntou.
Eu poderia levantar as minhas defesas, ouvir as minhas inseguranças e mentir para ele. Mas por alguma razão que não reconheci de imediato decidi fazer exatamente o contrário.
— Os dois, mais o beijo do que a guerra. — Respondi.
— Eu também.
Quando terminamos de nos lavar, o frio já estava quase insuportável. Por isso não demorou muito para que nos deitássemos, do mesmo jeito que na noite passada, com o nosso calor proporcionando o conforto único e necessário para o nosso sono.
— Boa noite, Alice. — Disse ele, me fazendo sentir sua respiração na minha pele.
— Boa noite, Osten. — Respondi, me acomodando mais.
E daquele jeito, sem formalidades, começou a noite de sono mais tranquila que eu já havia tido desde os meus 5 anos.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top