Pergaminho XX
Castelo
Os olhos... Olhos roxos como as uvas maduras de uma videira Niágara. A mais escura e estarrecedora lavanda. Um ametista cintilante. Ele via cadáveres, o odor asfixiante de ferro surtia deles para o sufocar pelas narinas e deixar o gosto do sangue em sua boca. E então, acordou. Como sempre. Por sorte, daquela vez, ao despertar, o sol já despontava no horizonte.
— Está tudo bem? — Laila perguntou, com os dedos no queixo. Quem não ficaria surpreso em presenciar um despertar tão melancólico?
— Sim, só tive um pesadelo. — o homem se levantou fazendo pouco caso. Preparou a cama e calçou as sandálias. Por fim, seguiu até a mesa. O cheiro do café já se espalhara por toda a casa.
— A propósito, Henrique. — Laila ajudava sua mãe, pondo a mesa. — Chegou uma carta para você.
É claro que ficou confuso. Quem diabos enviaria uma carta para ele? Seria Leon? Pelo menos o loiro não dissera nada que entraria em contato. Batendo o olho no envelope o remetente ficou claro.
“Castelo do Penhasco, Casa Hawking, Garra do Falcão”
— É daquele conde medíocre. — ele não fazia questão em ter pudor nas palavras mesmo.
Entregou o envelope que estava acima da mesa para Laila, a fim de que fosse violado. Embora a jovem encontrasse uma certa dificuldade, já que precisava utilizar um dos seus braços que atualmente se prendia numa tipoia; assim ela fez e o devolveu. Por fim, ele abriu o papel e deslizou os olhos logo pelo início.
— Caramba! Você ficou famoso mesmo! — Laila balbuciou mastigando.
Henrique, no entanto, permanecia com a testa enrugada assim como seus ternos amarrotados. Um convite leviano para um jantar. Seria apenas isso? Um mero convite para um jantar? Não teria nada por trás? Aquele conde, por mais reles que fosse, certamente tinha os olhos de uma raposa ardilosa.
— Você disse daqui dois dias. Você vai, né? — A jovem inclinou o corpo para mais próximo dele.
Henrique estalou a língua ao céu da boca audivelmente. Pôs uma mão no rosto e reclamou:
— Não é como se eu estivesse em posição de recusar. Que saco...
— E quem você pretende levar? Aí diz que pode levar um acompanhante.
O cientista coçou o queixo por alguns segundos. Até a linha tênue em seu lábio erguer-se sarcasticamente.
— Já sei exatamente quem... — seus olhos se fixaram nas orbes cinzas da jovem moça.
Ela no entanto, permanecia com a testa enrugada.
— Quem?
— Você, ué.
Talvez foram cinco, ou seis segundos, até Laila enfim se dar conta disso. Seus olhos se arregalaram atônitos. Ela bateu com uma das mãos na mesa num escândalo exacerbado e depois gemeu com a pontada da dor que sentiu.
— Como assim eu? Tá louco? Eu sou a filha bastarda! Imagina se eu aparecer lá!
— Por isso mesmo. — levantou uma sobrancelha desaforada — O seu sangue é tão Hawking quanto o de qualquer um por lá. Você tem o direito de ao menos conhecer o castelo de herança da sua família. Não acha?
A jovem virou o rosto em desespero para sua mãe ao forno. Dona Helga soltou o ar dos pulmões como se o segurasse junto com uma certa impaciência.
— Ele tem razão, filha. — a senhora retirava o pão do fogão a lenha e o punha na mesa. Por fim, batia nas mãos para desvencilhar-se do excesso de farinha. — Seu pai sempre quis que você conhecesse o castelo. Eu nunca deixei porque achava que não era uma boa ideia provocar a Senhora Hawking. — sem demora, ela se sentou junto aos dois. — Bem, acho que não importa mais, uma visita não fará mal.
Laila pensou por alguns segundos. Cabisbaixa, analisava as ranhuras do carvalho da mesa como se procurasse alguma resposta entre elas como uma taróloga. Nos segundos seguintes, o silêncio que pairava começava a ficar incômodo, foi quando decidiu tomar uma resposta:
— Tudo bem! Eu vou com você. — Henrique já imaginava que Laila se renderia, afinal, não tinha alguém mais manipulável. Mas não esperava pela ousadia que seus olhos apertados como uma serpente trouxeram: — Mas eu sei que você não tá nem aí com minha família ou coisa e tal. Você só quer me levar para provocar o conde, não tô certa?
Henrique sorriu, tímido.
— Não vou negar, nem concordar. — em seguida, pôs um punhado de miolo dentro da boca.
————||———
Henrique não estava tão animado assim para o dia da excursão pelo castelo, dia esse que pareceu chegar mais depressa do que esperava. Laila, por sua vez, carregava um nervosismo em seu peito. Insegurança talvez fosse a descrição mais poética para seu caso. No primeiro período da tarde, partiram da casa. Dona Helga fez questão que os dois se adornassem das melhores vestes possíveis. Sim, mesmo que fosse difícil, gostaria que o mínimo de boa opinião eles alcançassem. A túnica de Henrique seguia um cinza opaco, mas seu gibão azul celeste que parecia não ter sido quase nunca usado, trazia uma costura, um brilho e uma estampa com um ar típico de nobreza. Fazia sentido, Laila havia lhe contado que o gibão pertencia a seu pai. Ele havia deixado na casa de sua mãe na noite em que ela foi concebida. Laila, por sua vez, usava um vestido violeta rendado e sofisticado. Para aquele mundo, não parecia se encaixar, Henrique pensou. Mas havia ficado deslumbrante! Thomas havia dado-lhe a sua mãe, que nunca teve uma oportunidade de usar.
Uma carruagem os aguardava do lado de fora. Ao descobrir que Laila acompanharia Henrique na visita, o soldado Franco fez questão de contratar alguém que os levassem. Laila subiu primeiro e, em seguida o cientista. Logo, partiram. Os dois não trocaram muitas palavras pelo caminho, estavam presos em pensamentos, devaneios estes completamente paralelos. Preocupações que certamente não condiziam com as do outro. Subiram a colina e a carruagem parou a frente dos portões do castelo. Franco os aguardava em pé, estático como uma viga de madeira, com as mãos para trás. O soldado deu a mão para ajudar Laila a descer e, em seguida, foi a vez de Henrique pôr as botas sobre as pedras antigas que compunham o chão.
— Vou direcionar vocês até o serviçal responsável por lhes mostrar o castelo. – o tom singularmente formal do soldado levou Henrique a dobrar a testa.
Os dois seguiram Franco até as intermediações do castelo. Henrique já havia o visitado antes, – não num momento muito agradável – contudo, se lembrava pouco do que viu. Então, é claro que se admirou explorando-o. Quando mais novo, há alguns anos, o cientista fez uma visita a um membro da família real britânica, que lhe ofereceu uma excursão pelo Castelo de Windsor, por isso, até sentiu uma certa nostalgia, já que a arquitetura era bem parecida. Mas aquilo tudo... Aquele mundo, tinha algo único... Não, não era como se fosse possível explicar. Bem, talvez o homem poderia dizer que sentia-se literalmente andando pelas intermediações das lendas de Camelot em vez de simplesmente por corredores rústicos pouco iluminados feitos de pedra. Um sentimento de magia. De misticismo tomava-lhe conta. — Mas se isso serviria como explicação ou não, só quem a escutasse poderia julgar.
Adentraram por locais estreitos, pouco e às vezes muito iluminados. “Estamos só na entrada do castelo ainda, nem fiquem admirados”, Franco parecia arrogante por conhecer cada canto. Ele os levou até um salão amplo, forrado com um carpete cinza, uma grande lareira ao fundo e pedras polidas nas paredes. Entretanto, o que realmente furtou a atenção do cientista foi o que pôde observar ao levantar o rosto, sobre as vigas de carvalho no teto. Ali, penduravam-se estandartes cinzas com a silhueta da face de um falcão estampada. Henrique fechou o rosto. Lembrou-se do julgamento por um instante. Observando esses olhos inquietos do homem sobre o tecido, Franco decidiu lhe responder:
— O Falcão é o símbolo da casa Hawking. Caso esteja se perguntando porque tem um monte deles espalhados por aí.
— Símbolo? Como uma bandeira? — Henrique abaixou o queixo e ergueu uma sobrancelha. — E por quê?
— Eu não sou um dicionário ambulante também... — Franco virou a face, seus olhos se estreitaram em irritação, ou talvez, impotência. — Eu só sei que, cada casa primordial tem alguma ave como emblema. Tipo o flamingo da casa Thomson, o galo azul da casa Borh ou mesmo o corvo da casa Rutherford.
— Você está certo. — Laila intrometeu-se. — Só que, muito mais que um mero símbolo, bem diferente de como as outras casas utilizam os animais. Meu pai me disse uma vez que o falcão é a alma da cidade. O sangue de cada cidadão, o alicerce do nosso povo.
Pararam bem enfrente a lareira, onde um senhor já os aguardava. Mais tarde, este apresentou-se como Wales. Um sujeito esguio de meia idade, calvo, com um bigode branco farto. Ele fez uma reverência formal aos dois que chegaram e não tardou a dizer:
— Será um prazer ser o seu guia pelo castelo! Creio que até o jantar não dê para lhes mostrar completamente tudo, mas darei o meu melhor para proporcionar a vocês a melhor visita!
E nisso, seguiram pela entrada à direita. O primeiro local que visitaram, o mais próximo, foi a adega do castelo. Só ali, deveria ser maior que a casa de dona Helga. Barris circundavam a sala nos quatro cantos. Wales ofereceu-lhes um copo do vinho tradicional servido no castelo, o mesmo que era servido ao conde. Para quem já havia saboreado os vinhos mais refinados, Henrique não se surpreendeu muito e nem mesmo levou todo o conteúdo do copo à boca; ao contrário de Laila que quase se embebedou quando o jantar nem mesmo havia começado. Em seguida, dirigiram-se até o museu do castelo, onde encontraram os mais importantes artefatos históricos da casa Hawking. Espadas milenares, armaduras imponentes e o famoso escudo Ǽfyllende, usado por Richard Hawking na batalha da Segunda Grande Guerra Continental, contra Niels Rutherford. Para Henrique, uma peça prateada normal, feito de valar com a face de um falcão pintada em cinza no meio. Já Laila derramou uma lágrima chamativa entre as maçãs – Henrique pensou que fosse efeito do vinho. Logo, partiram para a sala de arte do castelo. Viram belas obras ao estilo renascentista, esculturas em mármore e vitrais góticos. Cada um desses lugares era enorme, o que deve ter levado ao menos umas três horas para que conhecessem bem essas áreas. Depois, voltaram ao corredor principal do castelo.
— É uma pena que não vá dar tempo de vermos tudo. – Laila sorriu abalada.
— Bem — Wales olhou para o teto, pensativo. —, nesse caso, faltam ainda duas horas para o jantar. Por que vocês não se dividem? Aí conhecem lugares diferentes e depois contam o que viram um para o outro.
— Por mim tudo bem. — Henrique assentiu com a cabeça.
Laila ficou um pouco receosa por andar sozinha, ou melhor, sem Henrique, por aquele castelo, mas não queria parecer tola por ser a única a contestar a ideia, então concordou também. Assim, seguiram em direções opostas. Wales acompanhou Laila, já que Henrique notou sua inquietação frente a isso e solicitou ao mordomo que o fizesse.
————||————
No caminho que Henrique seguiu, encontrou o campo de treinamento do castelo. Ele estava no segundo andar, por isso, precisou descer uma escadaria que penetrava o lado exterior. Haviam por ali, uns vinte ou trinta homens treinando. Jovens, alguns tinham a mesma idade que ele, mas não mais que isso. Lutavam uns contra os outros. Os demais golpeavam pedaços de madeira fincados ao chão. O suor encharcava-os e o calor que fazia permitia que um ou outro ficasse sem camisa. O cientista sentou-se sobre um degrau da escada e ficou ali, os observando. Não estava tão empolgado quanto Laila em conhecer o castelo, por isso, não fazia questão em se levantar até que o horário do jantar se aproximasse. Sem dúvida, a ideia do galês para se separarem foi perfeita para procrastinar.
“Ora ora, se não é o homem que desafiou o Conde.” — uma voz tranquila brotou ao seu lado. Ao virar o rosto, viu um homem de uns quarenta e pouco que o observava de pé. “Nunca se viu um gesto tão ousado desde que Rutherford ousou conquistar o continente” — ele gargalhou. Henrique não disse nada em resposta. Nada mais lógico do que a pessoa que iniciou a conversa se apresentar primeiro. E assim ele fez:
— A propósito, eu me chamo Edward, Edward Hawking. — Henrique espantou-se por um momento. Mas não pelo fato de ele ter dito ser um Hawking, não, isso ele já havia notado ao perceber aqueles olhos cinzas, mas sim ao lembrar-se que ele era o tal conselheiro chefe que lhe enviou a carta.
O cientista levantou-se.
— Não sei se posso dizer que é um prazer conhecê-lo, Edward. Ainda estou intrigado com o motivo desse convite tão repentino.
— No caso, infelizmente eu não tenho como saciar suas questões, Henrique. Nem eu sei o que se passa na cabeça de meu irmão. Mas eu garanto a você que Marcius jamais convidaria alguém para um jantar por mera cortesia.
— Sim, foi o que eu imaginei.
Observando a feição soturna que desenhava-se no contorno do rosto do cientista, de maneira súbita, a linha tênue nos lábios de Edward se elevaram num sorriso exagerado, como de um humorista.
— Ah, mas não precisa se preocupar! Se fosse para arrancar outro braço seu, ele escolheria uma ocasião bem menos formal. Provavelmente ele vai te fazer alguma proposta.
— Proposta? — Henrique dobrou as sobrancelhas.
— Você vai descobrir.
————||————
Laila passou as últimas duas horas explorando os jardins do castelo. Eram esplêndidos! Agraciou-se com cores e perfumes que nem sabia que existiam. Enfim, pôde presenciar a forma das flores em que chegou a ler nas obras de literatura da Catedral. Logo, ao longo da trilha que riscava um caminho turístico entre a flora, a jovem viu-se frente a pilares de mármore esculpidos em hexágonos. Anjos, grandes e pequenos punham-se a cima destes. Hipnotizou-se com a textura visual que lhe era entregue. A tentação pecaminosa de deslizar seus dedos dentre o material, foi mais forte do que poderia resistir e assim ela fez. Sentiu um toque áspero, como se parte do material ainda permanecesse em sua mão, deixando-a rígida mesmo depois de retirá-la. Contudo, tal distração desvaneceu-se tão rapidamente como um estalar de dedos, ao escutar uma voz ao fundo, voz essa que congelou seu coração num susto.
— Essas são as esculturas de Pierre-Piedmount, tem mais de duzentos anos de história. — Laila virou o rosto. Viu uma mulher mais velha, talvez a idade de sua mãe, tal qual o som já indicava. — Elas sobreviveram a tudo, as gerações antigas, a Rutherford e a queda dos Borh. Isso porque, ninguém as ficou tocando deste modo, já que há uma placa com exatamente essa informação.
A jovem levou alguns segundos para enfim perceber o que a mulher queria dizer e levou mais tempo ainda até notar que sua mão permanecia encostada nas esculturas. Por fim, a retirou pedindo “desculpas” num tom quase inaudível e abaixando o rosto.
— Por favor querida, eu não estou aqui para repreender ninguém. — os olhos castanhos da mulher se moviam de um lado ao outro. Laila perguntava-se se havia lhe incomodado. — O quê faz aqui? Não deveria estar com as outras empregadas? E porque está vestindo isso? — O nariz dela parecia comprimido.
— Eu não sou empregada, senhora. Vim junto com Henrique, o convidado para o jantar esta noite.
A mulher pôs uma mão sob a boca.
— Oh, eu havia me esquecido completamente desse jantar! Mil perdões, querida! E essas roupas suas ainda são tão... — seu olhar seguia de cima a baixo, com um sutil desdém —Simples... Peço desculpas, esse meu cunhado inventa tantos jantares como esse, que fica difícil se lembrar.
“Cunhado?” — Bem, isso já deixava as coisas mais claras. Embora Laila já sentisse o ar de autoridade que a mulher manifestava, principalmente ao vê-la ali, carregando todo aquele glamour. O chapéu bergère creme que certamente roubava-lhe toda a vista para o sol, e as vestes de seda tingidas em tons claros de azul.
— Tudo bem, senhora.
— Ora vamos, não precisa me chamar de senhora. Esta noite me chame de Astrid. — ela aproximou-se de Laila. Pôs seus dedos macios no queixo da jovem. — Não precisa abaixar o rosto, querida. Espero que possamos nos dar bem. — a mulher sorriu.
Então Laila levantou a face, deixando suas írises acinzentadas nítidas a mulher. O sorriso de Astrid desmanchou-se como papel na água. Esta se esforçou para exprimir algo.
— Você...
— Sim, senhora. — Laila incomodou-se em interrompê-la, mas seria um incômodo maior ainda se a mulher deduzisse por si mesma. — Eu sou Laila Hawking.
Mapa do Continente:
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🐲~luks~🐲
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