Pergaminho XVIII - (Parte II)
Henrique já estava cansado. Mais um pouco e a exaustão falaria alto o suficiente que qualquer outro desejo insano. Mas também, a música parecia bem mais próxima do que antes. Henrique percebeu que o ápice do som vinha de uma das pedra gigantes da floresta. Pedra essa que deveria ter lá seus dois metros e meio. Passos mais para frente dela e o som começava a ficar mais baixo, ou seja: “É ali mesmo”
O homem aproximou o ouvido da superfície fria. Talvez algum inseto estivesse emitindo um som como aquele? Não, não podia ser possível. Por mais bizarro que aquele mundo fosse, seria meio difícil imaginar um inseto que conseguisse reproduzir o som de uma flauta e outro de uma harpa e harmonizá-los na melodia de Edelweiss. Não, deveria haver outra explicação.
Henrique colocou o pequeno amuleto em suas vestes e pôs a mão sobre a rocha fria. A princípio, de seu tato, sentiu o musgo áspero na superfície. Contudo, o coração palpitou ao notar que a pedra começou a tremer e, abruptamente... Se mexer? Era isso, ela parecia se mover. Apertando os olhos, mesmo na escuridão, o homem notou um sulco formando-se verticalmente pela metade da pedra, este parecia abrir-se periodicamente, mas de maneira veloz. Quando se deu conta, a rocha partiu-se pela metade numa linha perfeitamente reta – como algo cortado por uma lâmina, e abrindo-se para os lados. O homem deu dois passos para trás em reflexo.
“Que diabos...” Henrique mostrava os dentes numa careta horripilante. Sentiu um eriçar na espinha. Mas ao abaixar o rosto, a angústia amarga arraigada nos olhos, intensificou-se. No espaço em que a pedra outrora fechada ocupava, agora podia-se ver uma escadaria ofuscada por densas trevas. Ele sorriu em desespero. As pupilas contraíram-se. Como qualquer pessoa sã, deu às costas e começou a caminhar para distanciar-se logo dali.
“Amanhã talvez eu volte com Laila, sei lá. E eu vejo melhor isso.”
Entrar na calada da noite num galpão secreto certamente não seria uma ideia muito racional. Sabe-se lá a onde aquela escadaria o levaria, ou que tipo de pessoa poderia o aguardar lá em baixo.
Mas então...
Edelweiss.
A música voltou a tocar. Henrique notou que tocava muito mais alto do que antes. Muito mais nítido e, talvez, não, talvez não, certamente muito mais comovente do que já havia tocado. Uma sinfonia orquestrada, sem dúvida, por algum grande compositor. Lembrou-se da sua mãe, lembrou-se do balanço, da dança... Ele precisava ver com os próprios olhos, ele tinha que ver, necessitava ver.
Henrique não hesitou nem em pensamento em tomar de volta o caminho para a escadaria. Desceu o primeiro degrau e a luz da pedra lilás que segurava iluminava os demais, já que a escuridão ficava cada vez mais densa. É claro que aquela inquietação de não fazer ideia do que lhe aguardava permanecia, já que nem mesmo um palpite possuía.
“Merda!” amaldiçoou em pensamentos, ao ínterim que sorria com os dentes grudados ainda em desespero. “Por que eu tô fazendo isso? Com certeza um lugar como esse, tocando uma música como essa, é muito suspeito!” Ele soltou um riso baixo “É capaz de eu acabar morrendo.”
Os degraus enfim cessaram. O ambiente que foi levado jazia largura, um espaço amplo, até demais. Úmido, cheio de musgo e as pedras que compunham as paredes, certamente eram muito antigas. Como se fosse um templo. Não tinha muita coisa para se explorar, também nem queria. Só precisava seguir o traço da melodia. Pela extensão da área, Henrique imaginou que localizaria a origem só seguindo o som sem problemas.
Depois de dezenas de passos, já se cansou. No entanto, após mais algumas dúzias, sua caminhada foi impedida por um muro. Ele pôs os dedos que ainda seguravam a pedra. Seus pelos se arrepiaram com a baixa temperatura da superfície. Era aço. Deu mais alguns passos para trás e notou: não se tratava só de um muro, um muro não teria uma ranhura que o cortaria pela metade. Via um portão, um portão gigantesco. Deveria ter uns cinco ou seis metros de altura só de vista. A música decerto que vinha detrás de todo o aço.
“E agora? Cheguei aqui para nada no final das contas?”
Ele não teve muito tempo para pensar. A pedra que segurava encontrava-se num modo de estranha cintilação. Ela piscava em intervalos irregulares, vez rápida vez de vagar. Algo ali não deveria estar certo.
Logo, Henrique avistou ao centro, entre a ranhura que dividia os portões, um pequeno espaço. Ele aproximou-se sem pressa. Analisou o buraco. Pensou por um minuto e cogitou algumas hipóteses por dois. A superfície aparentava ter uma área semelhante ao da pedra. O cientista voltou a estreitar seus olhos sobre a figura do corvo talhada no amuleto.
“Não é uma coincidência”
Ele inseriu a rocha que permanecia piscando incessantemente... Até por fim, parar e seu brilho intensificar-se. A luz ametista da pedra, mais escura que a púrpura de uma lavanda, pareceu cravar nos portões como as raízes de uma árvore antiga presas ao solo. Um brilho, uma fulgência de tirar a visão para aquele que ousa admirar, subiu ao portão e, este não deliberava-se em negar a passagem. O ruído do aço abrindo-se ofuscou a delicada melodia de Edelweiss por alguns segundos. Finalmente, escancarou-se completamente e logo, apagou seu brilho.
O cientista ainda ficou observando estarrecido o portão mesmo já aberto, por minutos. Sem demora tomou de volta sua pedra a pondo nas vestes e seguiu para dentro.
Sem dúvidas havia chegado, enfim.
O grande salão que entrou parecia um pouco mais claro que o restante de todo aquele local que já havia passado. Era forrado por centenas de vaga-lumes. Estes transitavam por algumas plantas e árvores com as raízes fincadas sobre as paredes, todas sobre as paredes – por mais bizarro que aparentasse – não haviam árvores ao chão, que estava repleto somente por flores e grama. Henrique escutou água, pôde ver nos dois cantos, algumas valas de águas cristalinas que seguiam corrente ao sul de onde veio.
Se distraiu por alguns minutos com a paisagem singular. Sentia-se num recinto de fadas, ou algo assim... Daqueles livros infantis. Por um momento pensou que encontraria elfos ou alguma outra criatura mágica. – dada a situação, ele acreditaria em qualquer coisa mesmo. Mas a música furtou-lhe a atenção novamente. Aparentava estar tão próxima, tão próxima dessa vez! Como se estivesse no camarote de um concerto.
Ele passou por alguns galhos longos de árvores e viu, havia chegado ao fim do santuário. Ali, bem na frente, uma grande rocha cinza, sendo a única disparidade de cor com o local. Tinha metade de sua altura. No entanto, em meio a rigidez que sua superfície aparentava entregar, uma única flor se prendia logo a cima, com as raízes fincadas em algumas ranhuras da pedra. Não, na verdade seria uma irreverência tremenda chamá-la de uma simples flor. Henrique já havia visto fotos dela e até já tinha colocado-a como papel de parede da área de trabalho de seu computador. Mesmo assim, seria aquela a primeira vez que estava vendo uma edelvais pessoalmente. A flor dos montes austríacos.
“É por isso então que está tocando essa música?” Mesmo que a melodia em suma, fosse uma homenagem a flor, nunca passou pela cabeça que encontraria literalmente com a própria.
“Mas quem está fazendo isso?” A princípio tremeu. Henrique deu alguns passos para trás, mas, algo lhe dizia, no fundo de seu coração, que se pegasse a flor, teria a resposta.
“Meu coração? Que bobagem.” Ele riu. Seus pelos se eriçaram mais. Quando passou a única mão sobre a testa, viu que estava encharcado. Um suor frio cobria suas pernas e braços. Voltou a encarar a mão. A fechou. Deveria pegar a flor? Respirou fundo e, seguiu em direção a esta. Não que esperasse ter alguma resposta a pegando, mas, essa sensação, esse formigamento, só sumiria mesmo se fizesse isso.
Sua mão tremia. Aproximava-se com hesitação da flor. As raízes da edelvais não pareciam muito firmes sobre a rocha. Enfim, sentiu seu dedo tocar sob o caule. Era áspero, fino e de cara, entregou ao cientista, sua fragilidade. A segurou como uma pinça. Finalmente, Henrique a puxou de uma vez, sem dificuldade.
E a música parou.
Não sentiu nada a princípio. Com os lábios tencionados numa linha quase mostrando uma decepção, resolveu aproximar a flor para perto dos olhos. Sentiu um perfume bom de início. E então, tão súbito quanto um estalar de dedos, suas pupilas se contraíram. O homem começou a escutar seu coração, batida por batida, como se estivesse com um estetoscópio ligado ao cérebro. As batidas não demoraram a ficar rápidas. Ao mesmo ínterim, algo começou a apertar-lhe o peito. Henrique não aguentou e caiu de joelhos sobre o chão, derrubando a única coisa que segurava, a flor. Suas unhas arranhavam a pele de seu peitoral, o aperto parecia esmagar o coração, como se tivesse alguma mão dentro de seu corpo fazendo aquilo.
Ele gritou e os olhos lacrimejaram. Estava infartando? Era essa a sensação? Seu coração aparentava ser prensado ainda mais. Ele vociferou no limite do que fosse possível. Não teve tempo de pensar muito no que poderia ter acontecido, mas pôde ver aquela flor, aquela edelvais, pequena e branca, clara e brilhante, vestir-se de um púrpura escuro e sombrio, até desintegrar-se e seu pó ser levado por leves correntes de ar.
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Os bandidos aguardavam ansiosos. Enfim alguém estava subindo aquelas escadas! O líder Steel, sentado sob uma das pedras por ali, levantou-se e seguiu alguns passos em direção a saída. Eles não ousaram entrar lá para ir atrás do homem, estava muito escuro afinal. Mas, como o montanha mesmo previu, uma hora ele sairia de lá! E assim aconteceu e o homem saiu. Steel, ao vê-lo sem um braço e com metade do rosto queimado, não pôde deixar de cuspir o desprezo.
— Acho que é o que temos por agora... — ele olhou para aquele homem, que por sinal, permanecia com a cabeça levemente abaixada. — Ei você, por acaso é de Garra do Falcão?
O homem levantou o rosto. Foi tão súbito que o gigante ergueu uma das sobrancelhas em surpresa. Afinal, ele parecia uma abominação. Irritantemente, a tal criatura deplorável ousava olhar Steel bem em seus olhos. Mas o que realmente roubou a atenção de todos foram as írises dele. Sim, os olhos. Deles, um brilho cintilante emitia-se, um tom roxo bem escuro.
“Como que diabos um olho pode brilhar?” — um dos bandidos protestou.
— Cala a boca! — Steel o repreendeu. Era óbvio que tinha alguma coisa de errado com aquele sujeito. Mas já era tarde para voltar atrás e o Montanha nunca voltava atrás. Enfim, voltou sua atenção para o homem. — Então, você é de Garra do Falcão ou não? Se não disser eu te mato mesmo assim.
O homem permanecia o olhando nos olhos, sem esboçar uma única reação, um único movimento nos lábios, no canto dos olhos ou em qualquer parte do corpo. Sua respiração nem sequer dava para ser notada. Que tipo de cara era aquele que, diante de um monstro assim nem sequer piscava?
Então, num movimento repentino, o homem misterioso estendeu sua mão aberta e... A fechou.
Qualquer um que distraísse, não perceberia.
No exato instante que fechou a mão, o tempo pareceu congelar para os mais de vinte homens por ali, ou, ao menos para seus corpos que não se moviam, nem mesmo piscavam, o que incluía Steel. Quem os visse, pelo modo em que estavam paralisados, poderia jurar que observava esculturas de cera e não pessoas reais. Em seguida, toda a cor que compunha a estrutura física de cada um, começou a desbotar-se. Desde os vários pigmentos da pele, cabelo e olhos. As tonalidades logo se uniram e ficaram numa monocromia pouco saturada de lilás.
Tão gradualmente como a areia caindo de uma ampulheta, os cabelos e, por conseguinte as cabeças destes homens, começaram a desintegrar-se em grãos tão espessos quanto o sal. Logo, todo o restante dos seus corpos esfarelaram do mesmo modo. Restando um punhado de pó no local onde outrora estavam. Seu sangue tingiu o chão e as árvores, e o cheiro sufocante de ferro espalhou-se por todo o lugar.
Somente um homem restou ali, dentre aqueles que usavam roupas de gangue. Estava sentado ao chão, tremia e o rosto não ousava olhar para frente, preferiu entregar ao solo suas pupilas aterrorizadas. O assassino de seus companheiros deu um passo em sua direção. A aberração com metade do rosto carbonizado, agachou-se em sua altura e... Sorriu.
— Vai! — sussurrou baixinho — Eu sei que você quer perguntar! Então pergunte!
Os olhos do bandido estavam prontos para saltarem de suas órbitas. O medo, ou melhor, o pavor aterrador que o consumia, impulsionou-se ainda mais em ver as irises roxas tão próximas a ele. Então era verdade o que tinha escutado antes sobre o terror que aqueles olhos traziam para quem os visse. Ele gaguejou, mas fez como ordenado.
— Por que você me deixou vivo?
O monstro passou a única mão sobre as bochechas do homem, até chegar em seu queixo. Ele levantou para o olhar bem diretamente.
— Você sabia, não é? No momento em que eu saí dali de baixo, você sabia quem eu era. Estou certo? Escutei seus batimentos, vi seu suor, tremedeira até percebi o seu nível de saturação. Uma pessoa mais sã teria corrido, mas eu entendo que tenha ficado paralisado ao ver meus olhos.
— Vai me matar?
— Não seja estúpido. Só por você dizer isso eu até deveria, não é mesmo? Mas não. — ele respirou fundo e então, levantou-se. — Fico feliz de estar de volta e gostaria que os outros também ficassem... Mas ainda preciso de tempo... — olhou para cima, reflexivo. — Não conte a ninguém o que viu. Não tô afim de um bando de crianças sujando o meu jardim agora.
O bandido engoliu seco.
— Não se preocupe – a voz permanecia trêmula – eu prometo não contar nada, senhor Rutherford!
— Ótimo... Pensando bem seria mais fácil te matar e assim poupar informações. — o encarou com seriedade. — Mas deixar você vivo dá mais impacto a uma boa história. — ele concluiu sorrindo e dando dois tapinhas na cabeça do homem, como se faz com um cachorro. O tão conhecido gesto de: “Bom garoto!”
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