Pergaminho XIX
Sanctus
Audi, audi, clama. Invoca Dominum. Benedictus, sapiens, benevolus. Ora, peccatores! Hereditas tua venit.
Corcel ajustou o corpo sobre a poltrona vermelha, esticou a coluna para frente. Os pelos de seus braços já se eriçaram. O refrão daquele magnífico coral cantado acapella, havia chegado!
Animas uestras purifica. Veni!
Do mais grave ao agudo. O eco vibrava as paredes da capela, chegando até mesmo a derrubar a neve que pesava acima na estrela de dez pontas do lado de fora, no topo da construção.
Flamma inferni peccatores consumant. Spiritus Domini sit cum iustis.
Que vozes esplendorosas! Seus olhos se arregalavam e a testa, encharcava-se com uma excitação incontrolável. Mal aguentava permanecer sentado.
Deus cum justis, Dominus nobiscum.
Dominus nobiscum.
Acabou. O cardeal levantou-se e os aplaudiu com bastante disposição. Sim, aqueles jovens mereciam o atrito de suas mãos, o arder em suas palmas com os minutos do gesto sem cessar. Corcel não segurou a lágrima tímida que escorreu em sua maçã. Por fim, se recompôs, soltou o ar preso pela euforia e retirou-se de lá sem mais qualquer exagero. Foi ao encontro dos demais clérigos. Após o coral, todos se reuniram em seu devido local de costume, ao fundo da capela. O salão de reuniões, com a longa mesa de abeto resinada, e a larga lareira à frente.
— Tentarei ser breve. — iniciou o clérigo assim que abriu as portas, já observando os homens sentados. — Nesse exato momento enviei uma expedição para a última caverna ao sul no mapa. Logo estarei partindo também. Tivemos informações através de nosso espião na Tríade da Justiça, que eles enviaram uma comitiva grande para essa caverna. Além de acreditarmos que a garota Dalton está lá, também achamos que a possibilidade de encontrar o Coração de Demária é consideravelmente alta.
— E por que está nos contando isso? — o bispo com a barba maior e mais branca dali, o questionou.
— Quero deixar claro que, como a expedição foi inteiramente dirigida e realizada por mim, a posse do coração ficará também temporariamente comigo.
— Que previsível. — outro sacerdote, um mais jovem, calvo e ruivo, o encarou com uma pontada de desaforo. — Agora que as chances de encontrar com o coração são absurdamente altas, decide falar isso para que não houvesse questionamentos. Não é a toa que se tornou um cardeal. O que tem de poderoso tem de astucioso, não é mesmo?
O bispo barbudo de antes, voltou a dizer:
— Mas você sabe com quem o coração deve ficar. Não está cogitando descumprir a ordem de Tua Sanctitas? Tal heresia é...
— Não ousaria continuar, ousaria Vossa Reverendíssima? — Corcel aumentou seu tom, porém, mantendo a compostura. — Não quero ter de trazer a palavra “blasfêmia” a este santuário sagrado. Vamos evitar isso, ad honorem domini.
O silêncio pairou como uma massa agonizante de ar quente entre eles. Corcel não disse nada e deu às costas para os anciãos. O ruído de seus passos batendo nos tacos de madeira, foi a única coisa a ser escutada por ali. De fato, ele foi rápido, como disse que seria. Até porque não era nada agradável ter que se submeter a olhar a face desprezível daqueles velhos gananciosos que fingem servir ao Senhor Jahed. Seria fácil confundir a devoção deles como se confundiria o sal com o açúcar para adoçar um chá. No final, o que resta é apenas um gosto amargo, assim como o âmago de sua adoração.
O cardeal esguio dirigiu-se a porta sem hesitar em virar o rosto para trás. Não fazia a menor questão mesmo.
“Emundabitur domus Domini die una.” — sussurrou baixo a si mesmo. Ele olhou a eles de canto, sentados, ao passo que deslizava as mãos pela maçaneta. Vislumbrou o teto e por fim, disse a si mesmo, baixo:
“Amém”
————||————
Os cavalos andavam com uma certa lentidão. Compreensível, por conta de toda aquela neve. Corcel, dentro da carruagem, observava a trilha branca que seguiam. Ele analisava-a pensativo, levemente cansado e, quem o visse, num certo grau, abatido. Numa das mãos, segurava as sacras escrituras.
“Por quanto tempo ainda devo esperar?” — dizia a si mesmo, em voz baixa.
Com a outra mão, junto a luva tão preta como suas vestes, o clérigo apertava a corrente que prendia-se no pescoço. A sagrada estrela de dez pontas em linhas de ouro maciço. As aberturas da estrela não ficavam vazias, mas eram preenchidas com platina. Ele a pôs na testa e repetiu:
“Quanto tempo terei que esperar, Senhor? Já estou ficando fatigado” — soltou o ar de seus pulmões.
A carruagem vez ou outra tremia com o caminho irregular. Corcel largou a corrente em seu peito. A estrada começara a mudar. Via-se por fim, pedras e árvores e não mais apenas um deserto branco. Estavam chegando. Passaram-se mais alguns minutos. Finalmente, pararam. Um dos guardas abriu a porta pelo lado de fora e Corcel desceu os degraus da carruagem. Pôde ver pinheiros, estavam numa estrada construída em meio a uma floresta e, bem a frente, uma caverna sob uma colossal montanha. O clérigo ajeitou a batina sacerdotal. Sem dúvida, aquele ponto negro em meio a neve branca era o destaque de toda a comitiva. Os ventos quase roubavam seu barrete.
— Por favor, vossa eminência, mantenha-se atrás de nós, para a sua segurança. Alguns daqueles terroristas podem ainda estar dentro da caverna e nossos soldados que vieram antes podem não ter eliminado todos.
O soldado dos cabelos alaranjados, que acompanhava o sacerdote até então, interveio:
— Creio que não será necessário. Certo, vossa eminência?
— O Senhor está conosco. — Corcel assentiu com a cabeça, sem desviar os olhos da entrada da caverna.
Os mais de vinte guerreiros por ali seguiram pela abertura úmida. Deveria ter uns três metros de altura. Pela localização, não era difícil de entender o porquê de parecer tão abandonada e inexplorada. Homens seguravam lampiões a frente e na retaguarda. Corcel, os observando bem, não deixou de notar que algumas daquelas mãos, tremiam. “Quem dera fosse o frio o motivo disso” – o Cardeal suspirou. Em seus rostos, uma certa apreensão se prendia. Ao chegarem na caverna, esperavam encontrar notícias da comitiva que foi enviada outrora a eles. Teria acontecido algo? Os terroristas os mataram?
Por um momento, todos pararam. Um ruído singular e levemente perturbador ao fundo, furtou as atenções. O medo que pairava, aflorava-se a uma altura em que Corcel até mesmo podia escutar seus corações batendo mais rápido. “Homens de pouca fé” — sussurrou baixo. O clérigo seguiu a frente de todos. Um dos soldados, em desespero, clamou, chamando-o pelo nome. Do cardeal, a multidão virou o rosto àquele homem. Tratar-se-ia dum sacrilégio, mas, em decorrência do susto, era compreensível, por isso estava perdoado. O sacerdote, a frente de todos, agachou-se. Por fim, começou a passar a mão em algo. Ao afundarem bem os olhos, puderam ver uma pequena raposa.
— Não há o que temer – disse o clérigo – Podem seguir. Já disse que o Senhor está conosco!
Os homens limparam o suor de suas testas e seguiram o caminho. Eles deveriam ter andado em torno de uma hora. Mais úmido o ambiente ficava ao passo que mais fundo adentravam. Não trocavam muitas palavras entre si, não se importavam com apenas o som de seus passos serem escutados. Contudo, a testa de um dos soldados na linha de frente se enrugou. Ele parou de andar.
— Estão sentindo isso? – disse em voz alta. — Esse cheiro? Estão sentindo?
— Agora que você disse... — outro acresceu.
Sim, de fato. Um cheiro ficava cada vez mais forte. Um odor que trazia consigo uma mensagem aterradora.
— Ferro? Sangue?
Os soldados correram em direção ao odor. Enfim a caverna ficou mais clara. Chegaram a uma área mais ampla, o teto possuía uma abertura para o lado exterior, ainda estava de dia. No momento que seus olhos bateram ao local, os homens deram dois passos para trás. Sim, era compreensível que suas írises se contraíssem e que passassem a tremer incontrolavelmente após ver dezenas de cadáveres empilhados sobre o centro daquele espaço cavernoso circular. Uma visão aterradora e detalhadamente anatômica.
— Eles... — os olhos do primeiro soldado que sentiu o cheiro ainda estavam arregalados — Eles são parte da comitiva que veio antes de nós para dar conta dos terroristas?
— Não acho que sejam apenas parte. — Corcel se pôs a frente — É a comitiva toda.
“Então vocês vieram!” – Alguém, ao fundo da caverna, exclamou. Uma silhueta velada na penumbra “Estávamos a sua espera, Corcel” — Ele se revelou. Mesmo que fosse um homem alto e forte, Corcel não se amedrontou. Manteve-se com a coluna reta. O outro homem, por sua vez, – que provavelmente deveria ter lá uns quarenta e poucos anos – pelo rosto, olhos, sobrancelhas e posição da boca, intrinsecamente parecia disposto a liquidar todos por ali. Junto a ele dezenas, não, centenas de guerreiros, terroristas, com machados, foices e todo tipo de arma que somente um bárbaro portaria.
— Hoje, — o homem terrorista iniciou. — é o último dia que você terá o privilégio de continuar sequer respirando. A balança da justiça será equilibrada, enfim.
— O que você entende de justiça, meu filho? Vocês se julgam a Tríade da Justiça, mas se esquecem que a justiça pertence exclusiva e unicamente a Deus.
— E essa justiça seria queimar pessoas inocentes no fogo só porque são de um país diferente do seu?
— A questão não é meramente pertencerem a um outro país, mas renunciarem ao Deus verdadeiro.
— Então seu julgamento é com base na fé que elas professam. — ele apertou os olhos com fúria. — Por isso merecem morrer?
— Não... Mas de qualquer maneira, não acho que criou todo esse esquema mirabolante, essa armadilha para nos atrair até aqui, afim de discutir como eu pratico meu julgamento em nome de Jahed. — levantou o queixo.
— Na verdade, está enganado. Este foi sim um dos motivos que te convoquei aqui, mas creio que minhas dúvidas a você em relação a isso já estejam completamente respondidas agora... Você é um demônio.
— Demônio? — Corcel revirou as írises da esquerda a direita, evidenciando qualquer desprezo.
— A única coisa que me surpreende nisso tudo, é que meus objetivos atingiram mais êxito do que eu estava esperando. Desde o fato de eu ter te atraído de Garra do Falcão para as Montanhas ao Sul, graças a Themis. Você se cegou pelo ódio por ela e não pôde evitar vir. Até mesmo o plano do falso espião que eu jurava que vocês não acreditariam. Achou mesmo que alguém trairia a Tríade da Justiça para te ajudar, Corcel? Que causa você luta por acaso?
O cardeal estreitou as pálpebras e respirou fundo. Sentiu dentro do estômago o ardor e uma leve queimação de fúria por sua própria incompetência. Enfim, soltou lentamente o ar preso no peito.
— De fato. Mas eu não vim para o sul apenas para fazer a garota Dalton pagar por seus pecados...
— Você veio pelo Coração... E acha que eu não sei? Por isso eu implantei aquele mapa falso também. Todas aquelas cavernas no mapa já foram exploradas por nós. Estão vazias.
Corcel ergueu uma sobrancelha.
— Não dá para negar que você é ardiloso.
— Isso não é trabalho só meu. Foi ideia dos meus companheiros te atrair para o sul por causa do coração também. Digamos que eles não estavam completamente convencidos que você viria apenas por conta da Themis matando os principais contribuintes para a sua igreja. A propósito, aquele dono de escravos que ela matou nas montanhas, aquele que tinha um filho pequeno tão psicopata quanto pai. Ele arcava com o quê? Trinta por cento das despesas da Catedral da Garra do Falcão, certo? — ele sorriu em deboche.
— Está bem, você me enganou. Completamente. E onde a garota Dalton está? Não a encontro aqui... Para quem me odeia mais do que tudo, seria natural vir até aqui me matar. Ao menos foi o que me contaram, sobre esse ódio dela por mim. Ou era mentira também?
— Sim, você é a pessoa que ela mais odeia. E é por isso que ela não está aqui. Eu a coloquei na exploração da caverna onde está o Coração de Demária, a verdadeira caverna. Aliás, esta é falsa. Te atraímos aqui pela localização ideal, eu sei bem o quanto você é poderoso e não posso perder a chance de te matar, por isso o local tem que ser perfeito. — subitamente, ele começou a rir. Uma risada sem humor e, quem o visse diria que, de uma certa maneira, um sorriso desesperado. — Sabe por que eu te contei tudo isso Corcel? Eu não precisava, mas queria que você soubesse o quão patético é. Você se acha forte e ardiloso por ter matado dezenas de companheiros meus. Agora você sabe que isso não significa nada quando as pessoas se unem em busca de justiça. Pode matar vinte e quarenta vão se levantar contra você.
— Você realmente não entende. — o cardeal permitiu que uma pausa perturbadoramente silenciosa tomasse conta do ambiente úmido. Logo, o clérigo pôs a mão na batina, tomando o livro preto para si. Ele fixou as sacras escrituras sobre seu rosto. As espremeu contra a face com força, sentiu a gélida capa de couro friccionar os lábios. De seus olhos, uma lágrima escorreu. — Eu não faço por mim. Eu nunca fiz por mim. Pare de pecar.
Seu rosto, úmido inteiramente em lágrimas, prensava-se cada vez com mais força contra o livro. O olhavam incrédulos, seus homens e os pecadores a frente. Eles não entendiam, nunca entenderiam mesmo.
“Pare de pecar” — sussurrou “Pare de pecar. Pare de pecar. Pare de pecar.”
— O quê está fazendo? — o homem a frente vociferou. — Eu sei que você não vai desistir assim tão fácil, né Corcel? Vai fazer seus soldados lutarem até a morte para depois, quando você for o único de pé, você vir tirar vantagem. Nossa vantagem numérica é absurda, mesmo que lute por último, não terá chance.
O clérigo abaixou o livro. O rosto que se revelou, os olhos avermelhados pelas lágrimas, não estavam cheios de ódio, mas sim, algum tipo de... concentração. Ele pôs as escrituras de volta dentro da batina. Puxou as luvas negras que folgavam-se e ajeitou o barrete.
— Eles não vão lutar. — disse — Para ser sincero, há sim um motivo que me trouxe ao sul inquestionavelmente. A vontade do Senhor. Ele não me daria essa missão se não estivesse preparado e, mais ardiloso que os planos vis dos meus inimigos é a sabedoria de Deus. Quando entramos eu disse a esses pobres homens que o Senhor estava conosco e reafirmo isso. — ele esticou o braço para o lado e olhou de canto atrás de si. — Não tenham medo! Jahed vai lutar por vocês.
O cardeal deu cinco passos em direção a pilha de cadáveres. Ajoelhou-se em frente. Com as mãos unidas, ele fechou os olhos e orou. “Complaceat tibi Dominus in servitute tua. Nunc in pulverem redire potes. Deus sit apud vos.” Os corpos se decomporam em pó e foram levados pelo vento.
O homem de preto levantou-se. Tirou a poeira da batina e seguiu reto até o líder dos terroristas. Ninguém que já o tenha visto pessoalmente descreveria com perfeição a seriedade no rosto do Cardeal antes de proferir seu julgamento divino. De fato, alguns até tentavam comparar como uma face em que até os demônios fugiam. Outros afirmavam que podiam enxergar a balança de justiça do próprio Jahed no fundo de suas írises negras. Mas só quem o via poderia vislumbrar como de fato seu olhar se parecia e somente quem estava prestes a ser julgado conseguia entender o que aquilo significava.
O líder dos terroristas chegou a hesitar em dois passos para trás. A presença do clérigo, decerto, era uma arma poderosa. Então, o cardeal parou.
— Arrependa-se de seu pecado. Confesse-o e aceite o julgamento divino. — de todas as pessoas que teimavam em desafiar Corcel, mais de sessenta porcento delas, ao escutar estas palavras, junto a seu olhar, imediatamente ajoelhavam-se em busca de misericórdia.
A mão esquerda do homem a sua frente tremia evidentemente. Ele a segurou firme com a direita. Engrossou a voz e bradou:
— Você sabe quem está errado aqui Corcel. Nunca vou abaixar um joelho para você.
— Pois bem, Deus viu sua rebeldia e te julgou com justiça. Sua vida é o preço pelo pecado. Então... Morra.
“Deus, contra inimicos meos benedic me.”
Uma linha azul formou-se ao chão da caverna. Ela curvou-se para os lados e, em segundos, claramente ficava evidente que esta parecia caminhar para forjar uma estrela de dez pontas.
“Benedictus, benedictus”
O homem correu até o clérigo. Em sua mão, uma lança. Próximo, em vez de o acertar, cravou tal lança ao chão, paralisando a linha azul.
— Achou que eu não estaria preparado para seu chade?
Corcel estreitou mais os olhos. Como ele tinha audácia em desafiar o poder divino. O homem puxou a lança. Nela, notava-se uma pedra verde peculiar sobre a base do ferro que compunha a lâmina.
— Você trouxe um tesouro divino? — Corcel o observou de baixo para cima. — Não pense que isso irá me parar.
“Da mihi virtutem, Domine.”
A linha azul voltou a desenhar-se sobre o chão. De maneira mais veloz desta vez. O homem cravou a lança entre as pedras, porém, não surtiu efeito algum. Ele repetiu o ato mais duas vezes e, como esperado, não obteve sucesso. Seus dentes rangiam em medo. Algo precisava ser feito. Aquela estrela não podia ser concluída. Seria seu fim se acontecesse. O fim de todos. Ele olhou ao cardeal e tentou enterrar a lança em sua cabeça. Sim, era perigoso, mas Corcel parecia distraído falando algumas palavras em linguagem arcaica. Só precisava encontrar algum espaço.
Ele encontrou, pela direita!
Contudo, o clérigo parou a lâmina e a força lhe aplicada, meramente com o indicador. Aproveitou o momento de perplexidade do terrorista e puxou o cabo da lança que também segurava para o aproximar dele. Por fim, golpeou-lhe com um peteleco, arremessando-o uns nove passos de distância. Estava meio zonzo, mal conseguia se levantar. Mas, observando o chão, pôde ver. A estrela não se concluiu. Ainda tinha tempo.
— Venham todos! O ataquem! AGORA!
Seus mais de cem guerrilheiros soaram um grito de batalha e correram até o clérigo. Giravam suas armas, batiam o pé sobre a pedra com barulho. Não tinha como Corcel vencer a todos eles. Pelo menos parecia ser o mais lógico a se pensar. Entretanto, como Corcel mesmo costumava dizer: “a realidade do Senhor não é a realidade dos homens.”
Nem um único dos golpes que lhe aplicavam, não, nem mesmo um raspão, um arranhão superficial, um balançar em sua batina, conseguiam fazer. O cardeal agachava, desviava e até mesmo pulava, mas nada do que faziam conseguia o acertar. Era como se Deus, realmente o protegesse. Corcel quebrou seus machados ao meio, partiu suas foices e, com um toque, desintegrou espadas. Por fim, os mais de cem guerrilheiros encontravam-se ao chão, num círculo sobre o sacerdote. Com exceção do líder deles. Para a surpresa do clérigo, ao olhar para baixo, caído, este agarrava-o pelo tornozelo.
— Talvez você não acredite — iniciou o cardeal —, porém, de verdade mesmo, sinto muito que tenha chegado a isso. — o chutou para longe — Caso não saiba, meu Deus prega o perdão e, desde que proferi meu primeiro julgamento, nunca consegui segurar as lágrimas pelos meus inimigos. — o líder da Tríade o via com nitidez. Os dois olhavam-se diretamente. Corcel se inundava em lamentos. No então, mais estranho e enfurecedor que isso, parecia lágrimas sinceras.
— Não estou entendendo, está arrependido do que me fez?
— Não... Mas sinto muito pelo caminho que você tomou.
Por fim, a linha azul encontrou seu destino. A estrela de dez pontas estava forjada completamente. Nisto, o cardeal pôs a mão na batina e pegou as Sacras Escrituras. A abriu num capítulo específico.
— Ego te iudico in vita et in morte Dominus iudicabit te. — Corcel soltou o ar que segurava. Fechou os olhos e sussurrou em voz baixa, finalmente: — Prestígio de Julgamento.
Logo, de maneira súbita como uma maçã caindo duma árvore, um fogo azul consumiu os corpos de todos sobre a estrela. Aquele fogo conhecido bem pelos fiéis. O fogo sagrado que nunca apaga.
“Depois de ser pego por este Prestígio” — balbuciou o Cardeal “O julgamento está decidido. É impossível reverter ou sobreviver”
O clérigo deu às costas para os gritos e lamentos dos condenados. “Vamos” ele disse aos soldados e saíram da caverna.
—–——||————
A carruagem seguiu pelo caminho em que veio. A neve ainda era firme. A noite não tardou a chegar. Em vista disso, um dos soldados, manteve-se junto a carruagem do clérigo, para segurar o lampião. Um soldado jovem, talvez o mais novo dos homens dali. O mesmo rapaz que sentiu o cheiro dos cadáveres ao explorarem a caverna. Seus cabelos platinados ficavam bem evidentes com o brilho amarelado da lâmpada.
Desde que foi pedido para que entrasse na mesma carruagem do sacerdote, não trocou palavras com este, a não ser cumprimentos. Se ateve somente em o observar com discrição, vez ou outra vê-lo ler as escrituras e então, desviar os olhos para o lado afim de que o cardeal não desconfiasse de tal inquietação. Contudo, em uma oportunidade, no instante em que vossa eminência levantou os olhos do livro sagrado, ele pigarreou por sua atenção.
— Vossa eminência, posso lhe fazer uma pergunta? — o clérigo não precisou responder. Sua expressão já lhe deu confiança. — Como o senhor fez aquilo? Como usou aquele Prestígio?
Corcel fechou o livro e o deixou sobre suas pernas. Então, relaxou os ombros no banco.
— Aquela estrela no chão, você viu, certo? Aquilo era meu chade. Eu o espalhei por todo o ambiente e, no momento certo, os consumi com ele
— Me parece um poder absurdamente forte. Dizem que somente uma pessoa que descende de alguma casa paterna consegue usar um prestígio. Acha que alguém como eu conseguiria?
— É verdade que os descendentes das principais casas tem mais facilidades. Mas com esforço e dedicação, acho que nada é impossível. — o Cardeal sorriu genuinamente.
— A propósito, vossa eminência, no momento em que o senhor estava espalhando seu chade sobre o chão, se eu consegui ver bem, aquele líder dos terroristas conseguiu parar por um momento o poder, com a lança. Como ele fez isso?
— Ele detinha a posse de um tesouro divino. São itens, objetos que conseguem armazenar chade.
— Achava que somente as pessoas conseguiam armazenar chade. — o jovem soldado ergueu as sobrancelhas.
— Por isso que esses itens são especiais. Eles podem absorver e armazenar chade. Mas aquele tesouro divino era de uma classe tão baixa que não pôde fazer quase nada. Não fiz nem questão de pegá-lo. Diferente do Coração de Demária, um tesouro de classe principal, dos mais poderosos.
— E qual será o próximo passo para pegar o coração, vossa eminência? Acho que voltamos a estaca zero.
— Sim, praticamente. — Corcel desviou seu rosto para a janela. — Mas vamos achar, cedo ou tarde, no tempo do Senhor. E, por fim, purificaremos o mundo do pecado. — sorriu para o soldado.
Mapa do Continente:
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🐲~luks~🐲
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