Pergaminho XI - (Parte I)

Polos Opostos

Henrique marcava o chão com suas pegadas sob o barro deixado pela chuva da noite anterior. Ele e Laila já estavam próximos de seus destinos quando a moça se aproximou do homem agarrando-o pela túnica afim de sussurrar em seu ouvido:

— Tem um cara esquisito nos seguindo desde que saímos de casa. Eu nunca vi ele por aqui.

Henrique, com sua irreverência de empresário importante, seguiu andando sem desviar os olhos. Mas dois passos depois ele mal conseguiu segurar a risada, que saiu tímida.

— Sério isso? Você percebeu só agora? Se ele fosse um serial killer você tava perdida, sabia? Esse cara tá nos seguindo faz duas semanas, desde que comecei a trabalhar. O conde lânguido lá foi quem mandou ele, já que eu não sou daqui.

A moça concordou com a cabeça. Mais alguns passos e ela voltou a olhar para trás seguidamente. Queria analisá-lo melhor. É claro que, ainda assim, tentou disfarçar o gesto invasivo.

— Nossa, ele é tão diferente. — dobrou testa.

— E por quê? — questionou com desinteresse.

— Ele tem a pele escura. Eu nunca tinha visto alguém assim.

— É o quê? — desta vez o cientista não escondeu sua surpresa, levantando as sobrancelhas. — Nesse fim de mundo só tem gente branca?

— Ao menos é a primeira vez que vejo alguém negro. Eu só sabia que existiam pelos livros mesmo.

— Me parece meio deprimente.

— Mas ele é um gatão. Todo carregado nos músculos e tals. — a jovem mordia o canto dos lábios sutilmente — Nunca vi alguém tão forte! — Laila arregalou os olhos ao perceber que disse em voz alta. — Não fala pro Leon!

— Por que eu iria falar? Não é como se eu me importasse.

Henrique só deixou algumas pegadas a mais até notar que Laila não caminhava ao seu lado. Ele curvou o pescoço para trás e revirou os olhos com impaciência ao vê-la parada.

— Por favor continue aí, afinal eu tenho o dia todo pra te esperar mesmo. — cruzou os braços.

Ela não lhe respondeu, Laila desviou o rosto em direção ao soldado bem atrás e gritou tão alto quanto um vendedor no centro da cidade:

— Ei! Não precisa ficar aí longe, pode andar com a gente!

Este parou. Deu para ver o suor brilhar em sua pele, mesmo de longe. Estava nervoso? Parecia que sim para Henrique, já que hesitou por um minuto... Ao menos até a moça continuar:

— Você é mudo? Por que não responde?

Depois disso, aquela máscara presa ao seu rosto aparentava ter mudado. Sim, as sobrancelhas abaixadas naquele ângulo certamente indicavam irritação. O soldado, por fim, decidiu se aproximar de maneira veloz. Já bem perto, chegou a dizer num tom não muito amigável, mas que Henrique já esperava pela feição que trazia:

— Meu trabalho é observar ele. — apontou ao cientista — Eu o observo da onde eu quiser.

  — Eu só achei que seria melhor para você observar ele estando aqui ao lado, do que longe, parecendo um bandido ou psicopata ou coisa e tal.

— Não preciso que me ensinem como devo fazer meu trabalho, senhorita. — a última palavra, semelhava ter cuspido com deboche.

O homem voltou ao seu posto de uns quatro metros atrás e os outros dois seguiram caminho sem tocar mais no assunto. Finalmente, se despediram, Laila seguindo para a fazenda e Henrique para a casa do pesquisador.

— Henrique! Trago boas notícias. — anunciou o mestre Heitor assim que o homem abriu a porta. — O fungo que você pediu para que eu observasse... Aconteceu exatamente o que você disse que aconteceria!

O cientista dobrou a testa. Se aproximou do frasco com o micro-organismo. Seu sorriso de contentamento surtil fácil e rápido em no rosto como uma verdadeira reação química, igual aquela entre bicarbonato e vinagre. Não escondeu seu orgulho nem mesmo no tom de sua euforia.

— Excelente!

— Tem certeza que isso terá o efeito que você disse que teria? — a expressão arraigada ao rosto do mestre Heitor, sem dúvida, assemelhava-se a uma incerteza num grau leve, porém angustiante.

— Absoluta? Não tenho. — Henrique riu baixo — Mas há mais de cinquenta porcento de chance que dê certo... Talvez sessenta ou setenta, já que foi eu que fiz isso.

— Depois de uma semana caçando bolor pelas florestas, tardes cansativas, isso precisa dar certo! Eu não sei se já disse, mas em breve vou ter que entregar alguns relatórios sobre você para o conde. Tenho medo de imaginar o que aconteceria se não forem positivos. E se forem, e o resultado dessa pesquisa sair como você disse, tenho certeza que ele pode até diminuir sua pena!

— Por mim, eu não faria nada pra aquele maluco sem noção. Mas acho que não tenho escolha mesmo.

— Cuidado com o que fala. — Heitor levou um dedo a frente da boca. — As paredes aqui tem ouvidos. — logo, o mestre aproximou o frasco do rosto. — Você lembra onde coletou esse fungo? Seria bom se nós tivéssemos mais deles para testarmos de diferentes formas.

— Já entendi. — Henrique pegou uma sacola de pano cheia de frascos vazios.

— Leve este também. — o mestre o entregou o fungo de sua pesquisa — Pra efeito de comparação. Boa sorte!

E nisso, deixou a casa caminhando em direção a floresta. Adentrou na taiga, onde precisou se esquivar das coníferas e se estreitar por grandes rochas cobertas por musgo. Não havia animais pela terra, não, nem mesmo formigas podiam ser vistas. Contudo, ao céu, espécies abundantes de pássaros com cores jamais observadas fervilhavam. De fato, eram tantos diferentes numa quantidade tão estupidamente grande. Dentre as centenas, um em específico, um único pássaro, furtou a atenção absoluta do homem. Ele parou para o ver melhor. Fez questão disso. A ave estava na ponta de uma conífera, há metros dali. Lembrava um corvo, só que... Roxo? Um violeta sombrio como púrpura. Somente a ponta de suas asas dispunha de uma tonalidade mais clara. O pássaro ficou estático só por alguns segundos. De algum modo, o cientista sentia como se ele o encarasse... Com aqueles olhos, sim, aqueles olhos que pareciam marcar a alma de Henrique. Olhos que também vestiam-se de púrpura e brilhavam como duas ametistas recém lapidadas. Tão repentino quanto um trovão, a ave tomou seu rumo entre as nuvens carregadas daquele dia que lentamente se fechava na escuridão. Henrique se deu conta e decidiu por fazer o mesmo.

  O empresário seguiu caminho até próximo a ponta de um penhasco – com a vista de uma floresta de tirar o fôlego, por sinal – bem ali, estava o arbusto infestado por aquele fungo. Parecia um lugar perigoso, mas havia uma distância considerável entre a árvorezinha e o desfiladeiro. O homem ajoelhou-se sobre o arbusto, que por acaso permanecia atrás de uma grande rocha. De sua bolsa de pano, sacou uma agulha caseira. Agulha esta projetada para que ele conseguisse usar com apenas uma mão — invenção do mestre pesquisador Heitor. Ele pôs a ponta sobre o bolor e o extraiu. Em minutos conseguiu encher quatro frascos, mas não retirou completamente o fungo do arbusto, para que futuramente, pudesse continuar se proliferando. Ele continuou agachado, até movimentar o rosto a esquerda e ver o soldado ao fundo. "Que patético" — De fato, era chata demais aquela situação. Desde que percebeu há semanas atrás que o homem o seguia, eles nunca trocaram uma única frase; mas Henrique sentiu a necessidade de perguntar para ele desta vez.

— Quanto tempo ainda vai continuar me seguindo? Durante toda minha pena?

O homem não queria responder, mas sentiu como que se ficasse quieto, aquela situação se tornaria ainda mais desagradável. Henrique sabia disso porque sentiu o mesmo. Ele gritou dali mesmo, só que, como imaginado; não foi amigável.

— O tempo que o conde achar necessário.

Henrique elevou sua altivez aos olhos, os revirando de uma extremidade a outra. Se levantou e acabou deixando escapar:

"Do jeito que aquele infeliz é, capaz de ser por uma vida inteira."

O soldado rangeu os dentes e bufou como um touro visualizando bem o pano vermelho o provocando, no caso, aquele sujeitinho miserável sem respeito algum. Ele se aproximou com intensidade, junto a uma forte ventania.

— Não deveria falar assim do conde. Eu poderia contar o que você disse a ele e o mesmo mandaria arrancar sua língua também, por insubordinação.

Seu rosto quase encostava no de Henrique. Mas aquilo não foi o suficiente para arrancar uma gota sequer de suor do cientista.

— Ora, ora... — Henrique sorriu em deboche. — Que ar de superioridade,  hein soldado? — por fim, forçou uma tímida risada — Eu acho a maior ironia as pessoas mais insignificantes se acharem melhores do que eu.

— Eu não, afinal eu tenho dois braços pelo menos. Só isso já me faz melhor do que você.

 "Que provocação mesquinha. A quinta série encarnou nele?" Henrique cerrou os dentes. Mas, antes de dizer qualquer coisa que deixaria o soldado ainda mais furioso; outra forte rajada de vento levou um pouco de terra aos olhos e boca dos dois. Desta vez a rajada era longa e não cessava. Sem demora, depois que conseguiu voltar a enxergar, curvando o tronco, o cientista pôde ver que a pedra não foi capaz de proteger o frágil arbusto da ventania. Suas raízes já haviam sido rasgadas e este era empurrado em direção ao precipício. Não! Henrique não poderia perder a fonte daquele fungo. A fonte de sua maior descoberta naquele mundo tão carente cientificamente. Óbvio que ele correu para resgatar o arbusto como uma mãe urso protegendo sua cria. Isso! É claro que o cientista faria de tudo para proteger a fonte de suas descobertas, eles eram suas crias. O soldado, por impulso, também o acompanhou.

Na ponta, bem na pontinha mesmo do penhasco, o homem agarrou com sua única mão, o caule do arbusto. Entretanto, sentiu que algo não estava normal. O chão se inclinava para baixo. Ele não demorou para entender o que estava acontecendo, mas sua reação física foi lenta. Não pôde evitar quando a ponta do penhasco se desprendeu e o levou junto para uma queda possivelmente fatal.

De fato, uma queda, para a morte.

Sentia-se igual Alice caindo na toca do coelho; uma descida eterna. Ele poderia dormir enquanto caía que acordaria ainda caindo. Foram poucos segundos na realidade. O cientista nem se deu o trabalho de olhar para baixo; seu medo colou as pálpebras, mas tinha noção do que aconteceria. Primeiro quebraria as pernas e costelas até sua cabeça bater sobre o chão e ter uma morte instantânea. Se tivesse sorte poderia cair de cabeça e ter logo um fim rápido e indolor.

Mas não foi isso o que aconteceu.

De fato ele sentiu como se tivesse mesmo caído no chão e quebrado as costelas, mas... Quando a queda brusca cessou, sentiu seu corpo sendo puxado lentamente para baixo e uma substância fria, bem fria mesmo, lhe tocando, abraçando, cobrindo-o completamente.

Ele afundava.

Ao notar que ainda podia se mexer, nadou de forma desengonçada; se agarrou em qualquer pedra e começou a “escalar” o rio como um alpinista. Com esforço, chegou na superfície e jogou-se como um tronco nas margens. Henrique sentiu seus pelos arrepiarem, mesmo acabando de sair da água. O frio torturava. Além é claro, de uma pontada insuportável nas costas. Como imaginado, quebrou ao menos uma costela. – não era como se fosse a primeira vez também.

"Merda!" E voltava a reclamar: "Merda, merda, merda!"

Ele colocou a mão sobre a terra e empurrou seu corpo, tentando levantar. Foi quase impossível, mas deu conta. Virou o rosto e viu que o soldado fazia o mesmo, ou, ao menos tentava. Ele também parecia ter dificuldade, mesmo com duas mãos. Os olhos de Henrique viajaram até a perna dele e viram o estrago na canela; um corte de fazer uma pessoa fraca vomitar. O soldado gemia baixo, como se esmagasse a dor com seus dentes cerrados. Ele ainda nem tinha visto sua própria perna. Normalmente Henrique não perguntaria, mas de verdade, estava assustado.

— Você tá bem?

— Eu... Eu vou ficar...

— Não se levante, é melhor ficar sentado, pode piorar.

O soldado não faria o contrário; até porque não conseguia. O frio de uns sete graus, mais o corte, não era das melhores surpresas para aquele dia. Henrique respirou fundo e contou até dezessete. Pegou alguns troncos, o que não foi difícil de achar por ali e os agrupou enfrente ao soldado. Por fim, abriu a bolsa apoiada em seu ombro, torcendo para o que ele buscava, estivesse ali. Muitos frascos se perderam no rio, outros estavam destruídos. Pelo menos o principal frasco com o bolor da pesquisa que fazia há dias, a agulha, seu odre e a pederneira que procurava ainda estavam lá. O Mestre Heitor sempre insistia que o homem levasse essa ferramenta em suas pesquisas. "Nunca se sabe quando vai precisar" — o que mais dizia. Henrique, pelo contrário, não era nem um pouco precavido. Quando voltassem, ele sabia que a primeira coisa que deveria fazer seria agradecer ao mestre. Com a ferramenta também projetada pra se utilizar com uma mão, ele conseguiu faíscas o suficiente para incendiar os troncos em poucos minutos.

— A primeira coisa que você precisa fazer é lavar esse ferimento. Enquanto isso vou secar algum pano pra cobrir o estrago. Não sou médico, não sei estancar, costurar ou qualquer coisa do tipo, mas vou tentar tapar isso aí, ou em poucas horas pode ter uma hemorragia fatal.

— Por que tá me ajudando? — questionou o soldado. Mais um pouco e seus dentes se partiriam de tão prensados.

— Porque... Não tô afim de perder mais um braço quando voltar pra vila sem você.

O soldado riu entre seus gemidos. Fazia sentido, não? O fogo estava alto e não levou muito tempo para os panos secarem. Henrique substituiu os molhados que havia colocado antes e, com a ajuda do próprio soldado, enrolou os limpos sob o ferimento.

A noite se desdobrava. Os dois continuavam ali. O cientista até então mexia em alguns troncos, enrolando-os com pedaços da sacola de pano que não precisava mais ser tão grande.

— Aqui está! Foi um saco, mas finalmente improvisei essa muleta. Não tá a melhor coisa do mundo, mas não podemos continuar aqui, os panos vão ajudar mas alguém precisa costurar isso aí. A gente tem que voltar amanhã.

— Não sei se vamos conseguir voltar pra cidade amanhã. Teríamos que dar a volta no penhasco, o que nem é tão longe, mas acho que nessas condições levaria uns três dias.

— Nesse caso então vamos encontrar com os soldados na fronteira, me disseram que a fronteira da cidade é cercada por soldados; é verdade?

— Sim, devem ter vários soldados de vigia, principalmente agora com a ameaça dos peninsulares.

— Tanto faz, mas se tem pessoas aqui perto, é melhor irmos até lá.

— Não. Se levaríamos três dias pra contornar o penhasco, acharíamos esses soldados em seis. — o soldado abaixou as pálpebras. Em meio a uma longa pausa, o encarou com a desconfiança de um felino — Espera só um pouco... Você quer é fugir não é? Na primeira oportunidade, sair correndo pra aquele covil que é o Reino Soturno, como um bandido faria.

Henrique revirou os olhos e desistiu de continuar falando com ele. "Não vou perder meu tempo com isso." Ajeitou algumas folhas em volta da fogueira e pregou os olhos em poucos minutos.

A garoa fraca pela manhãzinha fez o cientista tremer. O fogo já havia apagado e uma neblina densa mal deixava eles verem um ao outro, mesmo estando poucos metros de distância.

— Vamos! — Henrique estendeu sua mão para o homem sentado.

Com dificuldade se levantou, mas seus passos eram curtos os suficiente para irritar Henrique.

— Pelo jeito a muleta não vai adiantar muito... E eu que gastei uma tarde toda para fazer... Tudo bem, se apoia no meu ombro.

— Não preciso da sua ajuda.

— Deixa de ser besta. Se apoia logo! Ou vou levar você daqui arrastado.

O soldado não se intimidou, mas também não viu escolha. Por um momento, Henrique temeu que sua dor na costela o impedisse de ajudá-lo. Mas não foi o caso. A dor estava fraca, quase inexistente. Mesmo que quebrar algum osso não fosse algo incomum para ele, também não era como se tivesse se acostumado com aquele tipo de fratura, a ponto de nem sentir mais nada... Esquisito.

Eu aqui de volta hehe!

Pois é, um novo arco se inicia na história, como será a relação entre esses dois, hein? Não é a toa que o primeiro título do arco é: "Polos Opostos"

Mas me digam aqui, por favor. O que estão achando dos personagens? De Henrique, Laila, Leon, o tal soldado? E qual o seu preferido até agora? Sei que é meio cedo pra perguntar isso kk (vou perguntar de novo mais tarde.) Mas seria bacana saber a opinião de vocês até aqui.

E sejam sinceros, hein!!

🐲~luks~🐲

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