Pergaminho VII - (Parte I)
Dança de Sangue
Os olhos da maioria que estava ali quase saltaram das cavidades; um espanto justificável, já que nenhum deles sequer se lembrava da última vez que alguém desafiou o lorde de tal maneira. Quem era esse Henrique? Um louco? Um idiota? Ele sabe o que está fazendo? Parecia que realmente sabia, afinal, seus olhos nem mesmo piscavam.
Os dentes do guarda pessoal do lorde se apertavam, mas um pouco e eles se quebrariam. Quanto ao próprio lorde, não parecia tão indignado, ele olhou o homem degraus abaixo, mantendo seu queixo levantado quase cuspindo seu desprezo. Sem dificuldade, Marcius pôde perceber que o sentimento de Henrique era recíproco.
O guarda do lorde exclamou:
— O que você disse?
— Creio que não gaguejei. – respondeu Henrique, mal o olhando.
Desta vez, o próprio lorde tomou a palavra.
— Pela afronta e desacato ao lorde comandante e governante do Condado de Falcônia e de todos seus domínios, devo o sentenciar...
— Milorde por favor! — Ao virar o rosto, Henrique viu a origem da voz; Leon — Perdão em nome de Jahed por interrompê-lo, mas reconsidere sua sentença, eu rogo!
A autoridade respondeu com firmeza:
— Todos viram aqui a blasfêmia e o crime cometido contra minha casa e a coroa! E fique feliz por eu não mandar cerrá-lo ao meio por isso!
— Milorde, se me permite... – Leon gesticulava ansioso, chegando a esbarrar em Henrique. - Sei que esse tipo de comportamento não é aceitável... Eu já lhe disse que Henrique é originário do Reino Soturno?
— Me disse.
— Pois bem, caso milorde não saiba, lá eles não têm o costume de se curvar. Tanto que acredito que Henrique nem saiba o que essa palavra signifique.
Marcius riu baixo. A que ponto Leon da casa Thomson havia chegado por um homem. Quem seria estúpido o suficiente para acreditar naquilo? Não sabe se curvar? Até parece... Talvez ele até fosse do Reino Soturno, mas o resto era indefensável.
Esse Henrique... Não, ele não era um louco, não tinha os olhos de um louco. Também não era um idiota, até um retardado saberia que poderia morrer se não se curvasse. Por que ele fez aquilo? Por que o Thomson está do lado dele? O conde os encarou por minutos, coçava a cabeça e batia os dedos no braço de seu trono.
Por fim, tomou uma decisão.
— Pois bem! — exclamou o lorde. — Leve-o de volta a cela – disse ao guarda. Em seguida, virou o rosto para Leon – Se ele não sabe se curvar então que aprenda! O ensine, tem até a terceira parte da tarde para fazer isso; caso contrário, imagino que saiba o que irá acontecer.
Após o conde bater duas palmas, o levaram de volta.
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Com o gemido agudo da porta de ferro, um silêncio. Leon o observava elevando uma sobrancelha, parecia surpreso, ou melhor, incrédulo.
— Que merda foi aquela? — indagou
Henrique encostou as costas na parede, desceu lentamente o corpo até o chão.
— Por que a surpresa? — sorriu sarcástico o homem. — Eu fiz exatamente o que disse que faria.
— Não imaginei que falasse sério. – O loiro puxou seus próprios cabelos para trás. — Você não sabe a sorte que teve. O último que desafiou o Conde assim teve a pele arrancada do corpo.
— Isso era para me amedrontar?
— Muito bem! Continue debochando! Isso só mostra sua ingratidão com todo o esforço que fiz pra manter sua cabeça encima do pescoço. Você me chamou de patético, mas é você que é; põe seu orgulho na frente da própria vida. Desse jeito não vai durar muito aqui não.
— Hum... Sabe que eu tô com uma dificuldade de lembrar quando foi que pedi sua ajuda ou sua opinião.
— Você ta certo, mas concordou que eu o ajudaria. E a única coisa que te pedi foi para que se curvasse, merda!
— Não, você também me pediu para que eu falasse um monte de bobagem e eu já estava disposto a fazer isso. Mas me curvar... Depois que eu me dei conta de quem eu realmente era, nunca mais abaixei a cabeça para homem algum e não vai ser hoje que vou fazer isso.
— Tudo bem então – Leon abriu a porta – Venha comigo.
— Onde vai me levar? – o que era agora? O que estava planejando? O iria ajudar a fugir?
— Só me siga, por favor.
Eles foram pelo lado oposto do corredor, um lado mais escuro. Alguns guardas estavam bem atrás. Era sinistro, as velas mal conseguiam iluminar o lugar. Um dos guardas entregou a Leon uma tocha. Mais alguns passos e Leon chegou a onde queria.
— É nesta cela.
Um guarda a abriu. Era uma sala ainda mais escura que o corredor. Mal dava para ver as próprias mãos. Não havia janela ou qualquer passagem de luz para fora.
O guarda foi a frente; ali, próxima a parede da sala, notava-se uma grossa corda de ferro atrelada a uma alavanca. Este puxou a alavanca e, uma placa de ferro ao fim da sala foi levantada. A placa parecia servir como uma janela e, quando se levantou, a luz exterior trouxe alívio aos olhos de todos.
— Aqui é o calabouço dos condenados.
Abaixando o rosto, Henrique deu três passos para trás. “Que merda!” sussurrou. Seus olhos quase saltaram e ele tremeu.
— Algumas pessoas foram jogadas aqui para morrer. E também, depois de matar as pessoas, costumam jogar suas carcaças mortas aqui. – Leon o encarou. – Você parece assustado Henrique, nunca viu uma pilha de ossos?
— Cala a boca. Por que diabos eu veria uma pilha de ossos antes?
— Entendo. Aproveitando que estamos aqui, só uma pergunta: Ainda não está nem aí para o que o conde pode fazer com você?
Henrique engoliu seco e apertou as mãos:
—Não, eu não ligo. – disse com a voz trêmula. Dessa vez, Leon não ousaria deixar de acreditar nele.
— Mesmo olhando tudo isso? Caramba!
— Achou que poderia me amedrontar com isso?
— Para ser sincero, achei. – Leon se aproximou mais dos ossos. Ele se agachou e, com um lenço, pegou um crânio pequeno. — Eu já fui numa sala dessas umas duas vezes; no palácio real também tem um calabouço como esse. Sempre me dá uma sensação esquisita quando venho nesses lugares – Ele levantou o crânio. – Está vendo? Deveria ter o quê? Uns dez anos quando morreu. Sabe o que é mais assustador disso tudo Henrique? Eu não faço ideia de quem seja isso, não sei o nome, o rosto, nada! Na verdade, eu apostaria minha posição de príncipe, se alguém de todo o Reino, conseguisse reconhecer a identidade de qualquer um desses crânios por aqui.
— Onde quer chegar? – Henrique estreitou os olhos.
— Meu pai, mesmo com todos os pecados dele; sempre dizia coisas bem sábias. Certa vez ele me disse que um homem que não teme a própria morte, certamente teme o esquecimento, seja de algum Deus ou dos homens. – Ele colocou com delicadeza o crânio de volta no chão e deixou o lenço ali. – Eu não sei quem você era ou o que fazia no seu mundo; mas se morrer aqui, ninguém saberá o que aconteceu, o que fez e pelo que passou. Agora, se sobreviver, imagina só o que pode acontecer se contar tudo o que viveu?! Seu nome pode entrar para a história.
Leon deixou a sala e Henrique foi escoltado pelos guardas.
O homem sorriu, ele olhava o loiro caminhando bem a sua frente.
— Idiota. — não foi um insulto. Acertou em cheio. Quem diria que o loiro seria tão astucioso?
— disse alguma coisa? – virou o rosto.
— Me fala a verdade. Por que está fazendo isso? Por que quer tanto que eu sobreviva? Que diferença faz para você?
— Não me leve a mal, mas não faço por você.
— Então?
— É por Laila. Imagino que para ela você seja a resposta do que pode ter acontecido com o irmão mais novo dela.
Chegaram na cela no mesmo ínterim. Os guardas abriram a porta e somente Henrique entrou.
— Entendi. Mas ainda assim, não consigo tirar da cabeça que eu também despertei algo que te interessou.
— Pode ser. Quem sabe você não tá certo também? – o loiro sorriu.
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A terceira parte da tarde não tardou a chegar.
Henrique caminhava entre os estandartes de Falcão. As tochas do grande salão ainda não foram acesas, o que o iluminava era somente a luz alaranjada do crepúsculo. O conde batia os dedos sobre o braço da cadeira.
Ele ficou a três passos da escadaria. Por fim, Marcius iniciou:
— Henrique; vamos tentar começar novamente.
O que ele faria? O conde o encarou com as pálpebras semicerradas. Já estava com as palavras na boca caso aquilo se repetisse. Mas, quem seria doido o suficiente para desafiá-lo deste jeito? Uma vez já seria um absurdo pensar que poderia acontecer, duas então!
Henrique nem se mexeu, o que fez o guarda pessoal de Marcius não demorar a reclamar:
— E então? Vai esperar o sol se pôr para se curvar? Vamos! Curve-se logo de uma vez!
O conde afiava ainda mais o olhar no homem. Um olhar ameaçador, sedento por ver o sangue daquele sujeitinho insolente, jorrar pelo salão.
Ele sabia que Henrique estava com medo. Todos viam aquele monte de suor um tanto nojento que escorria de sua testa. As correntes em seu pulso chegavam a farfalhar com sua tremedeira.
“Por que tal obstinação?” O lorde se instigava.
Diferente dos poucos que também se recusaram a curvar-se, ele não era nenhum inimigo assumido e o próprio irmão do Rei o defendia. Poderia ser puramente orgulho? Não, ninguém era louco o suficiente.
Talvez, quem sabe, aquela história ridícula de Leon tivesse alguma ponta de verdade. Era mais fácil acreditar que ele não sabia se curvar do que acreditar que ele fazia aquilo de propósito.
Henrique virava o rosto de um lado para o outro e irritantemente permanecia de pé. Nem sequer vacilava em olhar para baixo, ele olhava para alguma direção qualquer como se a figura a sua frente não fosse algo com que se importar.
O conde queimou Leon o encarando e bravejou:
— Não imaginava que tivesse vindo até mim hoje para me zombar. Ele não vai se curvar?
O loiro abriu a boca para responder. Só que Henrique foi mais rápido dessa vez:
— Não, eu não vou não.
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Laila caminhava em círculos pela casa, mordiscando as unhas, apresentando um olhar vago.
— Não vai adiantar nada ficar nervosa agora — enfatizou sua mãe.
— O que acha que vai acontecer com eles?
— Eu não sei. Mesmo que o rei engula qualquer história que Leon contar, não me lembro de alguém que tentou cruzar o mar e ser capturado, conseguir sair ileso.
— Pior que é verdade, né? — Laila cuspiu o que havia roído, ao passo que atropelava as palavras. — Se até o filho do marceneiro, que ainda tinha a justificativa de ser louco, teve as mãos amputadas por cauda disso; confesso que não quero nem ver o que vai acontecer com Henrique.
— Por que toda essa preocupação com esse homem? Pare de ficar criando esperanças infundadas.
Não era a primeira vez que Helga repreendia as expectativas de sua filha. Mas para Laila, tal facada sempre mantinha o grau de dor. Talvez naquele momento fosse até pior, já que a moça acreditava de verdade que o homem com a cicatriz pudesse a ajudar.
Os pensamentos da moça também eram preenchidos com lembranças da última noite. Ainda que não tenha contado para ninguém, Laila sentiu uma ponta de alívio pela tentativa de fuga do homem ter fracassado. “Quanto egoísmo” pensava ela.
Laila já não aguentava mais ter de esperar na casa, nisto abriu a porta e vislumbrou o horizonte, em direção ao morro onde ficava o castelo; impregnando sua visão por cada centímetro quadrado onde ficava os portões da estrutura. Mesmo de longe, ainda era possível vê-lo sendo aberto. Por um segundo, cogitou ir até lá, mas sabia os riscos de confusões que poderiam surgir por esta atitude.
Laila se controlou e enfim decidiu ficar por ali mesmo, apelando para a última opção de um plebeu.
Sua mãe, que observava também em aflição esse tal desespero, a viu sussurrar o nome de Jahed com os olhos fechados e as mãos unidas, além de balbuciar palavras como: “proteja”, “segurança” e “meu irmão”.
Diferente da mente ingênua de sua filha; a mulher sabia que precisaria de pelo menos uns vinte Jaheds para que o homem voltasse com vida, ou ao menos, com todos os seus membros inteiros.
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