Pergaminho III


Era Média.

O que era aquilo tudo?

Será que estava em coma? Não, não poderia ser, tudo era tão real.

Henrique não pensou muito, se levantou e, sem cerimônias, pegou a faca encostada no balcão.

Observou seu brilho; lisa, a lâmina parecia cortar só de olhar.

Por fim, rasgou sua mão numa linha, por via das dúvidas no caso. Aquilo doeu o suficiente para perceber que, com toda a certeza, não se tratava de um sonho.

 Helga observou tudo assustada, deu pra notar seus olhos arregalados por um instante, mas tentou disfarçar sua preocupação.

 “Que diabos de lugar é esse? É algum país, por acaso? De algum modo eu entrei dentro de um livro do George Martin? Ou eu voltei no tempo? Fui parar em outra dimensão? Setealem?”

 Para alguém como ele, que tinha orgulho em dizer que acreditava cegamente na ciência, considerar qualquer uma dessas hipóteses o fazia se sentir um boçal com QI de dois dígitos.

 Henrique começou a tremer mais. Por fim, escutou a voz de Helga novamente:

 — Você viu a placa, né? Alguém chegou a te ver?

 — Não, ninguém. — respondeu com a voz trêmula, olhando para o nada.

 — Ótimo. Não me leve a mal, mas os moradores daqui não se dão muito bem com forasteiros. Se tivessem te visto, eu apostaria cem moedas de ouro de que não se passariam cinco minutos até vir alguém aqui em casa bisbilhotar.

A mulher dos cabelos castanhos o olhou mais de perto e viu que o homem encharcava a cama com seu suor.

 — Não precisa ficar com medo. Tenho certeza que tudo vai se ajeitar e você vai voltar da onde quer que tenha vindo. A propósito, de onde você é?

 — Sou de São Paulo.

 — Nunca ouvi falar, é um reino? Ou uma aldeia?

 Ele riu descrente.

 — Nem um e nem outro. É melhor deixar para lá.

 — E como eu posso te chamar? Ainda não me disse seu nome.

 — Henrique. Normalmente eu pediria para me chamarem pelo sobrenome, mas acho que não iria fazer diferença.

 — Uau, você tem sobrenome! Quando voltar para sua casa, não esquece de falar sobre quem te salvou... E, se não for pedir muito... Umas cinco moedas de ouro já são suficientes como agradecimento — a mulher gargalhou, tentando tirar um pouco de sua preocupação — Tô brincando! Não ligo pra essas coisas, podem me chamar do que quiser, menos de gananciosa.

A porta rangeu. Uma moça mais jovem adentrou. Era quase idêntica a Helga, só que mais jovem, deveria ter uns dezoito ou dezenove; pele clara e cabelos castanhos. Mas o que roubou a atenção de Henrique mesmo, ainda de longe, foram seus olhos. Cinzas e claros. O grafite era marcante, incomum e, de algum modo, belo.

 A jovem moça os arregalou, analisando de cima a baixo o homem que parecia misterioso, pela sua expressão.

 — Que bom que ele já acordou. — Por fim, ela sorriu. Deu alguns passos em direção a ele, parecia curiosa, com face como de uma criança abrindo um presente. Já há uma distância próxima, estendeu a mão. — Prazer, sou Laila Hawking. Você é o Henrique, certo?

 O homem dobrou as sobrancelhas.

 — Não lembro de ter te contado meu nome.

 — Não precisou. Quando minha mãe encontrou seu corpo, além das suas roupas, outra coisa que acabou vindo com você foi isso. — Ela parecia tirar algo dentro de algum compartimento entre seus seios. Ao cruzar os olhos no objeto, Henrique arqueou as sobrancelhas e sentiu algo, uma coisa ruim que parecia descer de sua garganta.

 “A pedra... De tudo que eu trazia...”

 — De tudo o que eu trazia, só isso se salvou?

 — Parece que sim. E aqui atrás tá escrito um nome, por isso imaginei que fosse seu.

 — Ele virou a pedra cor de Púrpura e, em seu verso, viu seu nome em preto.

 Henrique engoliu seco.

 “Isso não estava aqui antes... Com certeza a ciência pode explicar essa bizarrice” Ele largou a pedra no chão, permanecendo com os olhos esbugalhados. Passou a bagunçar e puxar seus cabelos negros. “Com certeza a ciência explica tudo isso!”

 — Deve estar assustado com essa história toda, né? — disse a moça.

 — Não, não estou. Eu vou ficar bem. É só pegar algum barco, e navegar de onde eu vim. — forçou um sorriso.

As duas mulheres se entre olharam, uma expressão de preocupadas, sem dúvida.

 — O quê foi?

 Laila tomou a palavra:

 — Nada não. A propósito, de onde você vem? É um pirata? O grande deserto do norte? Ou... Vem das Terras Férteis do Além?

 Helga lhe deu um tapa no braço

— Pare com essas lendas menina, já disse pra não se iludir.

 — Mas mãe! Se ele vier de lá... Imagina só! E se ele souber alguma coisa do Arthur?!

 — Ainda que ele venha desse lugar mesmo Laila, seu irmão não pode ter sobrevivido a viagem. Que droga! É a décima vez que te falo isso e não vou repetir mais!

Laila virou o rosto para Henrique.

 — E então? De onde você vem?

Helga tomou antes a palavra.

 — Ele disse que veio do São Paulo.

 — São Paulo? — Laila a olhou confusa. — Onde fica? Tem nome de alguma ilha pirata. É um pirata?

 — Não, não sou um pirata! São Paulo fica do outro lado do mar.

E então, as duas arregalaram os olhos.

 — O quê? Você disse o quê? Do outro lado do mar?

 Henrique revirou suas irises.

 — Se você escutou, por que a pergunta?

Helga tremia e sua filha a olhava com um sorriso.

 Laila disse num tom animado:

 — Você é das Terras Férteis do Além, não é?

 — Não sei o que é isso, mas se for do outro lado do mar, então eu sou.

 A jovem pulou! Parecia não conter sua animação

 — Você... Você conheceu um tal de Arthur? Sabe se ele está vivo, o que aconteceu com ele?

 — Nunca vi nem ouvi falar.

— Ele é meu irmão. Ele cruzou o mar profundo e... Eu queria saber como ele está. Ele tem olhos cinzas como os meus e um cabelo cor de caqui.

 – Sei lá moça. Quando eu voltar para casa, vou tentar descobrir onde esse cara possa estar. Vocês salvaram minha vida, podem ter certeza que vou retribuir — ele olhou para Helga.

 Henrique abaixou o rosto e pegou a pedra com o coração palpitando.

 “Independente da onde eu tenha parado, esse lugar parece fascinante. Talvez eu tenha sido o primeiro que veio parar aqui... Sou como Cristóvão Colombo!” Henrique começou a rir, um riso animado, seus pelos se arrepiaram só com o que pensava. “Eu vou ficar para a história!”

————||————

Leon estava com as costas cansadas. Cavalgava há dois dias, parando só para comer, fazer suas necessidades e dormir.

Mas o que lhe dava forças era sua ansiedade, chegava a ranger os dentes de vontade em encontrar com aquela que estava sempre em seus pensamentos, dia, noite, madrugada. Já fazia dois anos que não se encontravam; é claro que neste tempo enviavam falcões vez ou outra um para o outro; mas não era a mesma coisa.

Uma luz amarela emergindo do fundo da floresta chamou sua atenção, numa noite sem lua como aquela, qualquer vagalume roubaria suas irises. Leon sabia bem onde estava, seu destino estava próximo, a taberna no meio da floresta lhe era bem conhecida.

 Havia uma ou duas pessoas sentadas por ali, o taverneiro arqueou as sobrancelhas quando o viu. Era seu melhor cliente, claro, quem não ficaria feliz? Leon deu mais alguns passos e se sentou em frente ao balcão.

 ­— Sei exatamente o que vai pedir – disse o bigodudo sorrindo.

 Leon assentiu com o rosto. Se passaram uns dez minutos até o senhor o servir um prato de carne com purê de caqui.

 — Chegou bem na época do caqui escarlate. Um mês atrás eu não o conseguiria servir este prato.

— Acha que eu não sei? — Leon sorriu — Só porque sou da capital não significa que não conheço as épocas de plantação.

— É claro. Bem, pode comer à vontade, milorde.

Assim que ficou satisfeito, Leon subiu ao quarto que sempre se hospedava. O homem sentia dor, dor nas costas, na perna, no braço, no pescoço e em tantos outros locais. Tudo bem que ele já estava na casa dos quarenta, mas a idade não era a razão dos seus problemas; ele era atlético, saudável, quem o visse diria que ele não tinha mais que trinta. As incontáveis lutas, guerras; talvez, o que tenha visto com os próprios olhos, de algum modo, seja responsável por suas dores. Eras, quedas de dinastias e tudo isso em quarenta e poucos anos.

 Ele se sentou na cama exausto; de sua bolsa pegou uma carta. A carta dela. Imaginou suas mãos delicadas escrevendo aquilo, e o sorriso sedento em lhe tomar um beijo.

Ah que bom! Que bom que a encontraria novamente!

Somente ela mesmo para anestesiar todos estes anos de luta. E foi com a face dela esboçada em sua mente que ele pôde descansar. Segurando a carta apoiada em seu peito.
 

————||————

A noite era calma, Henrique só ouvia a cantoria dos grilos. Para quem cresceu no interior chegava a ser nostálgico.

 Ali, sentado na mesa, Dona Helga o servia algum tipo de sopa. Um cheiro repulsivo; o homem não fazia nem questão de esconder sua expressão de nojo.

 — O que é isso? – perguntou.

 — Lijarca – respondeu Laila. Ela parecia estar há uns dez dias sem comer; vendo aqueles olhos sedentos dava-se para pensar isso.

“Que falta de classe” cochichou para si mesmo.

 — Do que é feito esse prato?

— É uma sopa de caqui que vai perna de galinha, tripa de porco e alguns legumes.

Laila atacou o prato, mas parou ao notar o homem mexendo a colher de longe, sem se atrever a se aproximar da sopa.

— Não vai comer? Você não gosta? – disse ela.

 “Não gostar? Eu sou da roça garota!” de fato, perna de galinha e tripa de porco ele já havia comido muito em sua infância. Mas de algum modo, só sentia vontade de vomitar toda vez que aquele cheiro invadia suas narinas.

 — Não estou com fome. Mas agradeço o jantar e, todo o resto.

Helga sorriu. Laila por sua vez, o encarava. Aqueles olhos cinzas realmente eram bem penetrantes, pareciam o chamar para encarar de volta.

— A propósito Henrique – começou Laila – Que tipo de comida você gosta? Talvez a gente pode preparar para você amanhã.

Henrique riu.

— Não tem como vocês prepararem minha comida preferida. Só uma pessoa consegue a preparar. Mas gradeço a intenção Laura.

Ela, por sua vez, fechou o rosto.

— É Laila! Não é difícil de se lembrar. O seu nome que é e mesmo assim eu lembro. – Henrique sorriu de canto – Aliás Henrique; é verdade que você tem sobrenome?

— Tenho – ele dobrou a testa –, e daí?

— Nossa! Que fantástico!

— Você também não tem? Eu poderia jurar que você me disse seu sobrenome mais cedo. Mas não me pergunte qual é, que isso eu com certeza não me lembro. Não me leve a mal, eu tenho uma ótima memória, mas só para coisas que me interessam. Mas que você disse seu sobrenome, disso eu lembro.

— Sim, meu nome é Laila Hawking. Mas não é nada oficial. Meu pai era Thomas Hawking; e eu gosto de dizer por aí que meu sobrenome também é Hawking. Mas eu sei que uma filha bastarda não pode usar o sobrenome do pai – Laila olhava para baixo, parecia que o assunto era uma ferida aberta. Até de repente sua expressão mudar – Mas e você? De qual família você é?

Henrique abriu a boca para dizer, mas Laila o impediu.

— Não, espera! Deixa eu adivinhar. É um Thomson?

Helga bateu em seu braço.

— Não seja tonta, os Thomson têm cabelo loiro.

— Ah é, verdade! Um Dalton? Não... Você não tem olhos puxados.

Helga interrompeu:

— Ele poderia ser da casa Dalton do sul.

E Henrique revirava os olhos escutando tudo aquilo.

— Um eslavo? Não mãe, eles têm quase dois metros de altura.

— Mas ele parece ser bem alto. Foi a primeira coisa que pensei quando ele disse que tinha um sobrenome  – disse Helga

Laila o encarou.

— Qual é sua altura?

Normalmente ele não diria; mas ansiava que aquela adivinhação tosca acabasse logo.

— Um e oitenta e três e meio.

— Não – Laila coçou o queixo. – Eu ouvi dizer que um Dalton eslavo tem no mínimo um e noventa de altura. Mas esse cabelo preto, olhos castanhos... Tem cara de Rutherford.

— Credo Laila!

— Mas não parece mãe?

— Sim, mas de onde você tirou essa ideia de que um Rutherford estaria aqui?

— Tá bem, já chega disso – interrompeu Henrique – Se me permite, vou dormir na cama onde estava antes.

— Sem problemas. – respondeu Helga.

— Eu mais uma vez agradeço a ajuda de vocês. Amanhã, eu partirei de volta para casa. Preciso estar bem descansado – Ele deu as costas – Boa noite.

Um tanto sem jeito, as duas lhe desejaram o mesmo.

————||————

 Henrique acordou antes de todos e saiu para fora a fim de ver o sol nascendo. Voltando para a casa, notou que dona Helga já preparava o desjejum. Dava para ver que ainda não estava pronto, mas Laila fez um gesto com a mão, chamando-o para se sentar.

— Hoje à tarde eu vou para o centro da cidade comprar algumas coisas. Pode me acompanhar se quiser.

— Eu não sou daqui. Você não disse que a cidade, que o povo daqui não vê com bons olhos os forasteiros?

— Sim, mas também não é como se eles fossem te matar.

— Neste caso então tudo bem, posso ir com você. Se possível, gostaria de ir até o porto. Quero dar uma olhada mais de perto nos barcos.

— Tudo bem, mas, algum motivo especial para isso?

— É como eu já disse; pretendo ir embora ainda hoje.

Mais uma vez as duas se entreolharam. Dessa vez, Henrique não hesitou em questioná-las.

— O que foi hein? Por que estão com essa cara?

— Você pretende cruzar o Mar Afiado. Qualquer pessoa normal ficaria com essa cara. – respondeu Helga.

— O que tem esse mar?

Dessa vez, Laila tomou a palavra:

— É um mar traiçoeiro, tem esse nome por causa das enormes pedras em suas profundezas, algumas chegam a subir na superfície; são afiadas como uma espada e dependendo da onda que puxa um navio, podem rasgá-lo de uma ponta a outra... O meu irmão, ele ousou cruzar o mar.

— Bem, se seu irmão cruzou o mar, então eu posso. Do mesmo jeito que vim parar aqui, vou sair...

— Eu não sei – Laila o interrompeu. Parecia eufórica e suas mãos tremiam. – Eu não sei se ele sobreviveu. Foi por isso que me impressionei tanto quando você disse que veio do outro lado do mar.

— Vou assumir esse risco.

Helga não demorou a dizer, ainda mexendo a panela:

— Se vai assumir esse risco, então deve se comprometer em assumir outro.

Henrique a encarou.

— Qual?

Laila completou:

— Os piratas! Quem dera as rochas fossem o único problema ao cruzar esse mar. Os piratas o dominam praticamente; mais milagroso do que você ter vindo parar aqui sem ter batido a cabeça em alguma pedra, foi um pirata não ter roubado seu corpo no caminho.

— Se existem todos esses perigos – iniciou o homem – Por que tem barcos e um porto nessa cidade então?

— São barcos de pesca. Existe uma linha que eles não podem cruzar. É chamada de Pedra Azul-Triangular. É como o nome diz, é uma pedra azul triangular no meio do mar. Qualquer coisa depois disso é morte certa.

Helga continuou para Laila:

— O Conde da cidade também instituiu uma lei proibindo qualquer pessoa de cruzar, seja de barco ou nadando, esta pedra. Ele fez isso para evitar a expansão dos piratas sobre a região. Antes alguns moradores negociavam produtos com eles. Por isso, quem for pego descumprindo a lei terá a mesma punição que um pirata teria se fosse capturado; decapitação.

Piratas? Que bobagem é essa? Era só o que faltava.

Terminando de comer, Henrique deu uma caminhada em volta da casa. Observou o mar; que por sinal não parecia tão assustador assim, viu dali os barcos soltando suas redes e alguns a puxando. Em poucas horas ele já planejou tudo. Ele sabia exatamente o que faria, sentiu um frio na barriga, mas não poderia desistir.

 Por volta da terceira hora da tarde, Laila o chamou para acompanhá-la. Henrique botou os pés na rua e foram caminhando sem muita pressa.

A casa de Helga ficava bem ao extremo da cidade, era a última casa da rua e a mais isolada de todas, por isso, quando Henrique se aproximou mais das outras construções, não conseguiu segurar seu queixo. As estruturas pareciam velhas, as mesmas casas de pedra, madeira e palha que havia visto antes. Algumas eram maiores do que as outras, não havia um padrão arquitetônico entre elas. Em muitas dava para ver um quintal aos fundos, com gado ou rebanho, árvores e o que parecia pequenas hortas.

 Henrique não demorou a perceber o que Helga havia dito sobre os moradores; os adultos o encaravam com estranheza, as crianças com medo e os mais velhos com uma certa raiva. Havia aqueles que o encaravam dos pés a cabeça e outros que se afastaram ao bater o olho nele.

— Sinto muito por isso – Iniciou Laila. A moça andava bem ao seu lado e o olhava de canto. – Você não é o único estrangeiro que vive nessa cidade, então não precisa se preocupar.

— E por que você não teve a mesma reação que eles quando me viu?

Ela sorriu:

— Talvez eu tivesse... Se não fosse por meu pai.

Henrique ainda não tinha notado, mas, enquanto as pessoas o encaravam, muitos acenavam e desejavam uma boa tarde para Laila, e ela fazia de volta.

— Eles parecem que adoram você.

— Não sei se é eu mesmo. Meu pai foi o homem mais querido dessa cidade. Ele travou diversas guerras por eles. O chamam de salvador.

— E onde está seu pai?

Laila abaixou o rosto.

— Ele foi assassinado.

Henrique se manteve em silêncio por um tempo. Talvez não fosse tão adequado perguntar, mas o fez mesmo assim:

— Se ele era tão querido assim, por que foi assassinado?

— É isso que eu sempre quis saber.

 Um clima tenso estava começando a se formar, Laila agora ficava em silêncio e não parecia ter interesse em dizer mais alguma coisa. Constrangedor... Quem não odeia situações assim? Com Henrique não seria diferente.

Ele resolveu tomar a palavra logo, antes que decidisse sair de lá logo de uma vez.  Resolveu falar qualquer assunto que viesse a cabeça, nem que fosse um tema que o incomodasse muito.

— Se você acha que não notei, eu notei sim que você não parava de olhar meu rosto antes.

— O quê? Sinto muito que tenha dado para perceber. Eu não queria te constranger.

— Eu posso apostar que você está doida para saber o que me deixou com esse estrago.

— Se me permite; me parece que é alguma queimadura, então é fogo.

— Claro, fiz uma afirmação estúpida, é claro que é fogo.

— Não precisa me contar o que aconteceu, não deve ser algo confortável de se dizer.

— Não se preocupe, nunca foi minha intenção te contar qualquer coisa sobre isso mesmo. Eu só mencionei o assunto por causa do climão que tava formando agora pouco.

Laila voltou a sorrir enquanto seguiam pela estrada de cascalho.

 O centro não parecia tão grande. Com exceção de uma única estrutura.

— É a catedral – respondeu Laila

Sua arquitetura gótica era tão excêntrica para Henrique quanto a de Notre Dame.

 As casas por ali possuíam um cartaz de carvalho em cima das portas do mesmo material. Alguns cartazes esculpiam gravuras. Num deles, por exemplo, mostrava um nabo numa cesta de hortaliças; dava-se para entender que era um comércio deste produto. Noutro, havia uma garrafa de vinho. Passando em frente a porta aberta, Henrique pôde ver que se tratava duma adega. O homem ficou curioso para explorar cada um destes lugares, mas Laila o aconselhou a esperar do lado de fora; alguns vendedores teriam receio em vê-lo, já que não o conheciam. Até que o movimento por ali era considerável, pelo menos para uma cidade daquele tamanho.

Por fim, eles seguiram em direção ao porto. Logo, chegaram num campo aberto, próximo a praia. Dava para ver todos os barcos dali. O céu rosado, entregava um sol prestes a se pôr.

 — Não podemos demorar, se não vamos ter que voltar no escuro – disse Laila. Ao olhar em volta, notou que estava sozinha, se assustou por um momento, mas não demorou a perceber Henrique parado de trás de uma rocha.

— O que faz aqui? – questionou a jovem. – Não disse que queria conseguir ver o porto mais de perto?

— Não, eu disse que queria ir até o porto e, de fato vou. Só estou esperando o momento certo.

— O que pretende? – arqueou uma sobrancelha.

— Não é óbvio? Eu também já disse antes, vou embora.

Laila pôs uma mão no rosto.

— Imaginei que tivesse mudado de ideia depois do que eu disse.

— Eu não mudo de ideia tão fácil assim não.

— E como você vai sair daqui? Já vai escurecer, o que vai deixar esse mar o dobro de mais perigoso.

— Se eu consegui chegar aqui, eu posso sair.

— E você vai roubar um barco para isso? Porque eu duvido muito que alguns dos marinheiros te empreste algum.

— Eu sou rico, qualquer coisa que eu pegar aqui eu vou devolver em dobro, isso inclui o barco que eu pegar emprestado. Eu só preciso voltar para casa antes, já que é lá onde está minha conta bancária.

Laila fixou seus olhos grafite nos castanhos dele. Ela mal o conhecia, mas sentiu que nada poderia o fazer mudar de ideia naquele momento.

— Você acha que consegue pegar um barco e escapar?

— Ontem a noite, lá da sua casa, eu notei que a vigilância deste porto é quase nula quando escurece.

A jovem soltou o ar que segurava e abaixou levemente as pálpebras.

— Tudo bem... Pra falar a verdade, eu estava torcendo muito que você ficasse e me ajudasse a encontrar meu irmão. Mas seria egoísmo, né? Você tem sua vida.

Henrique a encarou profundamente.

— Eu te juro que, quando eu voltar para casa vou fazer tudo o que tiver ao meu alcance e usar todos os meus recursos para achar seu irmão. Na verdade, vou pedir para enviarem um barco para cá e você mesma vai encontrá-lo.

— Você é bem generoso.

— Vai nessa... — sorriu com ironia — Só estou pagando meu débito com vocês.

O sol acabava de se pôr, um silêncio pairou entre eles, até Laila o encarar.

— Certo, então é aqui que nos despedimos.

— Imagino que sim.

— Boa sorte Henrique.

Ambos deram as costas um para o outro e seguiram por caminhos opostos.

Laila, no entanto, parou e decidiu voltar para de trás da rocha. Ela pôde vê-lo se aproximar do porto e, sem dificuldade, entrar nele. Tinha um barco que, para a conveniência de Henrique, estava mal atracado. Depois de um tempo tentando, Henrique conseguiu desprendê-lo. Era de madeira, o menor de todos ali, com certeza. Possuía uma vela gigantesca, como aqueles barcos tradicionais. Numa excursão para Porto, Henrique havia aprendido a lidar com barcos deste tipo.

O homem sorriu, sabia exatamente o que fazer.

Ele arrumou as velas, sentiu de onde o vento vinha. Não demorou até a embarcação seguir dentro ao mar.

O coração de Laila palpitava, quase não lhe havia mais unhas a se roer. Por um lado, ela ficou aliviada ao notar que ele parecia saber como navegar com aquilo, mas por outro, por ver aquele barco prestes a cruzar a Pedra Azul-Triangular, a moça sentiu o suor gelar em sua testa. O mar calmo do litoral ficava cada vez mais violento. Ao ver a pedra, Henrique engoliu seco. Se o que Laila disse era verdade ou não, já nem importava mais. O foco era manter a calma e cruzar o oceano logo de uma vez. Se fizesse tudo certo, voltaria para Natal.

Henrique tão imerso e concentrado na direção do mar, demorou a notar a movimentação que acontecia no litoral. Ao virar o rosto para trás, se assustou com toda a balbúrdia e o som de tumulto. Os marinheiros o olhavam tanto com raiva, quanto assustados.

 Ao apertar os olhos ele viu um objeto singular. Era um objeto grande, ele viu cinco marinheiros se esforçando para empurrá-lo.

Henrique se lembrou, se lembrou de um filme que assistiu não fazia muito tempo. Era um filme que se passava na idade média; a cena da luta principal lhe veio sem demora. Aquilo se parecia muito com uma das armas dos soldados.

Como era mesmo o nome? Besta! Isso, uma besta! Idêntica, porém, parecia bem maior do que o comum.

 Mas o que fariam com uma besta daquele tamanho?

Ficou óbvio! Ele estava cometendo um crime, igual Helga disse. Era claro que tentariam matá-lo dali mesmo, antes que cruzasse o mar.

O homem começou a tremer, ele não poderia ter sobrevivido a tudo aquilo para morrer para uma droga de besta! Se escondeu de trás da vela e torceu para que não atirassem. Mas não foi o que aconteceu. Um impacto estrondoso o fez cair de cara no chão.

 Mas... A flecha da besta não o atingiu.

 Por que será?

 Erraram?

Ele se levantou com dificuldade e olhou melhor para a origem do choque. Viu aquela flecha gigantesca; ela estava amarrada numa corda e tinha penetrado o casco do navio. Foi um tiro proposital. Henrique não teve muito tempo para pensar até sentir outro impacto. Desta vez, caiu com mais força no chão e bateu sua cabeça na borda da embarcação.

 Tudo o que via ficou escuro tão de repente, assim como se apaga uma lâmpada.

————||————

Laila corria, seus tornozelos pareciam se partir, mas ela precisava correr. Precisaria chegar em casa logo; não que sua mãe pudesse fazer alguma coisa para o que havia acabado de acontecer. Henrique já estava condenado praticamente. Mas ali só restava buscar algum conselho de sua mãe.

 Nesta época do ano, os ventos traziam areia da península para a cidade. A moça mal conseguia correr sem seus olhos se encherem com isso. No final das contas, sentiu seu corpo se chocar com alguém. Com as duas mãos ela limpou a visão. Se arrepiou ao ver um homem alto, loiro, levando um cavalo branco.

 Ele, por sua vez, ergueu as sobrancelhas ao ver aquela expressão assustada.

— Laila? O que houve? O que você faz aqui no meio da cidade a essa hora?

— Leon! – a jovem se aconchegou nele num abraço demorado. – Eu vou precisar da sua ajuda, venha! Eu te explico quando chegar em casa.

O capítulo ficou meio grande, mas será apenas uma excessão.

O que estão achando? Seria muito importante saber sua opinião. Não esqueçam de deixar a ⭐ e comentar, tá bem?

🐲~luks~🐲

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