13 | O gosto de uva

Sobrevivemos. Ainda bem, porque se fosse para eu ser morta em uma viagem de ônibus enquanto dormisse nem queria.

Ficamos bem na fronteira de Carolina do Norte e Geórgia. Paramos na rodoviária e achamos a estrada mais próxima. Caminhamos a tarde toda até o Sol se pôr.

Na mata, havia um lago próximo, então nós instalamos. Mike simplesmente capotou e dormiu feito uma pedra.

A água do lago me fascinava. Olhei para a mesma enquanto Aimee bebia outra caixinha de suco.

— Mas isso aí não é suco de verdade, é? — perguntei e a morena riu. Sentamos lado a lado no colchão improvisado e olhamos o lago.

— 98% são, mas a gente finge que não — riu e rolei os olhos. — Quer um pouco? Só não deixa o Mike beber, senão ele surta.

Aceitei a caixinha e bebi. Nem era tão forte assim. Só era suco de uva bem doce.

— Falando sério agora, ruivinha, você tá caidinha pela Charlotte não tá? — Aimee me fitou enquanto mordia o canudinho. Fiquei vermelha. Ela ergueu uma sobrancelha para mim ironicamente.

— Eu pensei que você tava brincando com aquelas piadas!

— Eu sempre falo sério, Daph. Não tem problema você ser...

— Eu não sou! Eu já gostei de uns meninos da minha escola, mas a Charlotte é diferente — falei enquanto mexia com o cabelo e olhava para baixo. — Eu só tenho uma grande afeição por ela porque ela é linda, gentil comigo, forte e talvez, só talvez eu queira a companhia dela o tempo todo...

Aimee queria gargalhar, mas se conteve para não interromper o ronco de Mike. A empurrei de leve com o ombro.

É, talvez eu realmente tivesse uma queda pela Charlie, admito. Ela me tratava de um jeito diferente dos outros. Em todos os dias que passei treinando no acampamento ela me ajudou com estratégias e lições, mas não só isso. Eu me sentia segura e acolhida perto dela enquanto toda essa mudança de vida estava uma loucura.

Aimee tossiu se engasgando com o suco. A menina me analisou. Por um momento vi Aimee como ela realmente era por dentro. Debaixo de todo aquele sarcasmo e raiva havia uma adolescente que também sofreu por muito tempo e queria me ouvir, ajudar.

— Como é sua família, Daph?

— Normal, eu acho — disse meio confusa pela mudança de assunto. — Somos eu, minha mãe, meu pai e minha avó.

— A sua mãe é legal contigo? — assenti. Aimee abraçou os joelhos e mexeu no canudinho. — É que... Eu sinto falta da Helena, lá do acampamento.

Não a forcei a falar. Ela continuou mesmo assim. As duas tinham alguma ligação que nunca soube o que era realmente.

— Sinto que a magoei quando disse uma coisa antes de fugirmos. Não foi nada legal. Essa conversa pode parecer chata, mas eu queria te contar, sabe? Então, Dionísio uma vez me disse que minha mãe me teve por acidente. Ela me abandonou quando nasci; ele me achou e me levou ao acampamento. Não tinha ninguém capaz de cuidar de mim, até que Helena fez isso. Fui um tempo pra escola, ela trocou minhas fraldas e coisas do tipo. Aí fiz seis anos e comecei a morar no acampamento definitivo.

Arregalei os olhos.

— Ela te criou? Com a minha tia também? — perguntei ao lembrar de Helena e Beatriz. Aimee assentiu.

— Me virei sozinha depois. Alguns filhos de Atena me ajudaram no estudo e anos depois Helena voltou. Foi quando eu conheci a Charlotte. Viramos melhores amigas, fomos na missão e o resto você já sabe.

— Por que tá me dizendo isso? — falei meio sonolenta e esfregando os olhos. Aimee deu de ombros.

— Só queria desabafar contigo e falar isso em voz alta. Acho que deve saber. Minha vida sempre foi meio confusa, as poucas pessoas que se importavam comigo eu distanciei e não sei por quê... — ela engasgou como soluçava em um choro. — Porque eu sou uma idiota que não dá valor a nada, é isso! Você, Mike e Anabel são tudo o que eu tenho!

— Eu não te acho idiota — falei ao acariciar seu gorro — só um pouco temperamental de vez em quando mas, Aimee, não se sinta assim! Tenho certeza que Helena te ama, Beatriz e Charlie também.

— Sou muito grata por você ser minha amiga — Ela sorriu de canto e a abracei de lado. — Por favor, Daphne, eu não quero me afastar de você. Não se esqueça de mim.

Me lembrei das mesmas palavras de Mike ao ser atacado pelo ciclope. Apertei-a mais forte.

— Eu prometo.

Aimee bocejou e se deitou tão calma quanto meu amigo. Avistei o lago de novo.

Daphne! — sussurrou uma voz, e não era Cronos. — Desça até aqui!

Me ergui e andei até a beirada do lago. Aimee coçou os olhos, ela não me via.

Vai dar merda vai dar merda, cantarolei e me inclinei para a água. O rosto cintilante da moça estava preocupado. Ela me chamou com a mão escamosa.

— Eu volto já — eu disse involuntariamente. Aimee assentiu dispensando com a mão.

Então a moça me puxou. Porcaria.

• • •

[AIMEE]

— ACORDA, AIMEE, SOCORRO! — alguém gritava e me sacudia. Abri os olhos e avistei os de Mike. Ele estava preocupado. Apertei suas mãos geladas.

— O que foi?

— A Daphne sumiu! Eu a vi entrar no lago e ela não voltou mais! — pus minha mão na sua boca, isso era demais. Fui alternando entre o garoto e o lago. Lembrei vagamente de Daphne mergulhar na água.

— Ah, eu vi, ela vai ficar bem — voltei a me deitar.

Mike arregalou os olhos e me senti uma imbecil daquele jeito. Era o mesmo que dissesse "Você tem demência ou o quê? Ela entrou na porra do lago!".

— Precisa tirar ela de lá agora! Ela pode morrer! — sacudiu meus ombros mais uma vez. MIke estava vermelho e com a respiração falhando.

— Eu tenho que ir até lá? — olhei o lago escuro e frio. — Por que você não vai? Eu sei que sabe nadar, Harris!

Mike umedeceu os lábios, agora calmo. Uma bipolaridade dessas não me surpreendeu, mas dava pra ver o medo dele percorrendo todo o corpo. Me senti culpada por um momento.

— Ok, então eu vou — falei bufando e comecei a tirar o casaco e os tênis — segure minhas roupas.

Mike ficou roxo quando joguei a jaqueta e as meias. Ele segurou as peças e revirei minha mochila, procurando o short do pijama. Mike encarava o lago sem sinal de movimento. Ele realmente estava com medo.

— O que está fazendo, Aimee? — disse ele e o encarei com raiva, antes de levantar a blusa.

— Vou mergulhar, óbvio. Tenho poucas roupas e não quero molhar tudo!

Ele quase gritou e se virou, cobrindo os olhos. Tirei a roupa e pus o pijama enquanto pensava o que diabos Daphne fazia lá embaixo, mas não estava com medo, eu sabia que ela não se deixaria levar por uma ninfa ou algo assim. Ela estava bem, eu tinha certeza. Eu não lembrava de muita coisa por causa do suco, só alguns borrões.

— Já terminou?

— Não, Mike, isso tudo foi um plano pra você me ver toda NUA! — dei uma risada irônica e ele cobriu mais ainda os olhos. Dei outra risada. — Eu tô brincando! Vem, entrega as minhas coisas!

Eu ainda estava bem cansada por causa da bebida. O efeito agia mais rápido em mim, por isso minha visão estava toda embaçada e não sabia se aquilo era real ou não.

— Minha única amiga por anos foi uma garota, mas não me acostumei cem por cento com isso, entende?

Eu não sabia se ria ou sentia pena. Decidi a primeira opção. Mike estava todo vermelho quando voltou a me encarar.

— Eu só não entro lá porque tenho medo — ele disse e estendeu as roupas para mim. Mike fazia aquela coisa de tremer e olhar em todas as direções em uma situação de nervosismo. — Tenho medo de tudo.

— Do que você tá falando?

Mike se frustrou. Eu sempre soube desde que o conheci que ele era um medroso, o menino mais medroso que já vi na vida. Tentei ajudá-lo a lutar e funcionou, mas a falta de confiança dele deixava qualquer um cabisbaixo.

— Não sei controlar meus poderes. Essas semanas no acampamento foram legais, mas estava tudo bem antes disso! A vida inteira aceitei o fato de a minha mãe estar morta e do nada tenho poderes e... Ela é uma deusa da lua? Que tipo de trollagem é essa?

Eu queria dizer tudo bem, que sei como ele se sente, mas eu não sabia como era. Cresci assim do meu jeito.

Apertei os lábios. Reparei que ele havia tirado os óculos, o que era bom. Conseguia ver seus olhos mais claramente..

— Eu não disse que me arrependo de ir no acampamento e te conhecer — disse nervoso e pensando nas palavras. Mike se abraçou no casaco. Um sorriso involuntário surgiu em mim. — Você foi a melhor coisa que saiu de toda essa confusão.

— É um fardo que temos que carregar a vida inteira, Mike. Mas não é sua culpa. Além disso, só é questão de prática. Se você se rebaixar vai ser pior! — repeti o que tinha dito a semana toda. Joguei as roupas perto da mochila e dei um sorriso de canto.

— Não sei como você é tão confiante. Sempre fica tão decidida e...— Mike olhou para os tênis e sorriu. — Droga, eu não sei como elogiar alguém. Nem isso sei fazer direito. Sou um imbecil, desculpe.

— Eu sei que eu sou incrível, seu bundão — falei convencida e ele deu uma risada fofa. — Mas, ei, não tem que passar por isso sozinho. Vamos aprender juntos. Acho que deve saber disso.

A palavra "juntos" éramos eu, Daphne e ele, mas pelo jeito que falei deu a entender que seríamos os dois. Eu e ele. Por quê?

Acompanhei Mike lentamente quando chegamos um perto do outro. Suas mãos frias e macias me puxaram para perto e tive o maior frio na barriga de todos. Fiquei encarando seu rosto singelo.

Aquela voz na consciência dizia "amiga, o que tá acontecendo?".

Ele foi rápido ao segurar minhas bochechas e derreti completamente em seus lábios avermelhados. A ideia de nossos hálitos se misturando me fez rir. Morango e uva.

Mike acariciou meu rosto e eu seus pequenos cachos escuros.

Quando acabou, pareceu rápido demais.

Os olhos azuis dele brilhavam na luz da lua. Eu não sabia o que dizer. Engoli seco, parecia uma estátua.

— Sabe que amanhã de manhã eu... Talvez... eu esqueça disso — eu disse e ele assentiu.

— Eu sei — deu de ombros. — Tudo bem.

Não era isso que eu esperava, mas ele foi compreensivo. Andei tremendo até o lago e encarei o menino mais uma vez: eu sabia que ele estava tão nervoso quanto eu.

Vi um brilho no fundo do lago e mergulhei. Mordi o lábio apenas ao lembrar dos seus, agora distantes.

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