10 | Oi, eu preciso te matar
Aimee me acordou no meio da noite quando paramos no carro. Se fosse alguma coisa tentando me matar ou o André batendo o carro, já era.
Resmunguei enquanto abria os olhos e via o rosto da menina.
— Ei, está na hora — ela me sacudiu. — Vamos logo.
Saí do carro e agradeci André. Mike me entregou a mochila e percebi o quanto estava frio. Deviam ser pouco mais de quatro da manhã.
— Onde estamos? — perguntei olhando os dois lados da rodovia: estrada e estrada.
— A duas horas da Pensilvânia — Mike disse. — Agora caminhamos até Maryland, depois pegamos um ônibus até a Carolina do Norte e problema resolvido.
— Fácil fácil — Aimee disse o mais sarcástica possível mesmo tendo acabado de acordar. Dava para notar o quanto o rosto dela estava inchado e rosado mais que o normal.
André deu meia volta com o carro e o observamos partir. Lancei um olhar para os meus amigos dizendo "vocês precisam dormir pra tirar essa cara de cu". Concordamos e entramos na mata.
Armamos três barracas sem muita dificuldade. Aimee fez uma fogueira e nos sentamos, observando o Sol se levantar.
Estalei os dedos e uma pequena faísca dourada surgiu. Fiz isso repetidas vezes até que o brilho fosse virando algo mais sólido e grudento, tão brilhante quanto às chamas.
— Cara, o que é isso com você? — Aimee disse nada discreta. Balancei a cabeça.
— Está... Transbordando. Tipo quando você se corta e começa a sangrar — falei baixo. Respirei fundo e o mesmo voltou preenchendo minhas veias. — Não sei como acontece.
— Você devia ter treinado mais. Mas acho que agora depende de você... — ela excitou falar, mas seguiu em frente. — Aconteceu comigo também — disse remexendo na terra, pequenos brotos cresceram. — Mas não essa coisa aí. Helena me ajudou com meus poderes na época, depois eu só deixei fluir, sabe? Não contê-los.
— Mas vem acontecendo todos os dias, aumentando.
— Olha você só pode ter a ajuda de três pessoas — Mike começou. — O Doutor Estranho, Cronos e sua mãe. As duas primeiras opções estão descartadas, então...
Por que todos agem como se Cronos estivesse morto? Quer dizer, ele está morto lá no fundo do Tártaro, mas não totalmente morto, pensei com frustração.
— Tenho que falar com a minha mãe — falei. — Como?
— Mensagem de Íris — Aimee disse procurando algo no bolso. Jogou alguns dracmas na minha direção e explicou como funcionava. Basicamente um Skype versão arco-íris.
— Podem dormir, eu perdi o sono — falei me levantando. — Fico de guarda, aí falo com a minha mãe.
Os dois assentiram e entraram nas barracas sem hesitar. Andei alguns passos testando a umidade do ar. Ainda conseguia ver o acampamento improvisado, então tudo certo.
Em um ponto da floresta, havia uma poça d'água, as folhas da árvore brilhavam em orvalho enquanto um pequenos raios de luz as atravessavam. Uma coisa que não era tecnicamente arco-íris brilhava na poça, era suficiente.
Fiz tudo o que Aimee ensinou. Aos poucos aquela poça ergueu uma imagem na minha frente, tremulada. Eu reconhecia o lugar. Era escuro e quieto: o quartos dos meus pais.
— Mãe? — sussurrei. A mesma se levantou num susto. Não é todo dia que você recebe uma mensagem do Skype mágico às quatro da manhã. — Mãe, sou eu!
— Daphne... O que... — coçou os olhos e me encarou balançando a cabeça. — Entendi. O que aconteceu? Onde você está?
— Eu meio que não posso contar porque fugimos do acampamento e Helena vai descobrir logo, mas não se preocupe, estamos bem! — falei rápido e franzi a testa. — Cadê o papai? Você cortou o cabelo?!
— Daphne, o Sol nem nasceu direito. Fala uma coisa de cada vez — insistiu limpando a baba das bochechas. O cabelo agora estava na altura dos ombros.
— Eu, Aimee e Mike — falei explicando toda a situação. Ela cruzou os braços e não disse nada. Ainda bem que não dava pra atravessar essa coisa, se não teria pulado no meu pescoço na mesma hora. Mesmo no escuro dava pra ver o rosto ficar tão vermelho quanto o cabelo.
— Se eu não estivesse tão fraca te localizava e buscava agora. Isso é perigoso, sabia? Você tem ideia das coisas horríveis na floresta? Mas não posso fazer nada agora, vocês já saíram. Infelizmente. Só quero que fique segura.
— O que quer dizer com "fraca"?
— Eu tô doente — fungou e esfregou o nariz. — Nunca me senti assim tão fraca. O Peter foi dormir no seu quarto caso seja contagioso. Começou quando você foi embora, desde então não consigo ter força pra nada. É só dar um espirro que o tempo para por um milésimo.
— Não consegue controlar mais?
— Não é isso. Como vou controlar algo que não está dentro de mim? Eu não consigo sentir a força de antes.
— Tá dizendo que seus poderes estão sumindo? — falei comigo mesma e ela assentiu.
— Eu devia saber. É difícil eu ficar doente. Já aconteceram umas três vezes, mas isso é pior. Antes foi só gripe e alguns desmaios.
Olhei para as barracas, nada ao nosso redor fazia barulho. Perguntei-me se desmaiaria também, mas em todo o tempo que treinei nada aconteceu.
Estalei os dedos na frente da tela. As faíscas voltaram. Lydia arregalou os olhos e se inclinou. Consegui ver seu nariz vermelho na ponta. Ela parecia fraca até em se mexer.
O brilho se condensava na ponta dos dedos e pingava no chão. Minhas mãos tremiam.
— Isso é novidade — disse por fim, tentando analisar o que era. — Transborda.
— Como eu controlo? Como você faz isso?
— Essa coisa nunca me aconteceu. Mas, se quer um conselho: não tente conter o tempo, ele é mais forte que nós, mais forte que Cronos. Tem que controlar a si mesma. Canalizar as emoções, pensar no que quer fazer e como, só então deixar a magia agir por si só. O tempo não pode ser controlado, apenas manuseado. Entende o que quero dizer?
Olhei no fundo de seus olhos. Minha mãe tremia. Lembrei—me do que ela me disse quando arrumamos as malas, ainda lá em Nova Iorque: "O tempo é um fardo, use-o com sabedoria, senão ele se revolta contra você". Naquela hora ela havia perdido o brilho dos olhos, parecia um fantasma. As duas estávamos assustadas com o que poderia vir. Agora ela ficara do mesmo jeito.
Essa falta de cor... Pessoas morreram por sua causa. Monstros. Mesmo assim era errado até mesmo para mim. Tinha muita responsabilidade nas mãos e, se era o certo, deveria aprender a conviver com isso.
Assenti brevemente. Minhas mãos já não tinham brilho.
— Obrigada.
Ela sorriu.
— Me liga mais vezes, tá? Agora eu preciso dormir, tenho coisas pra resolver... — disse com olhar perdido e tossiu. Estava escondendo algo? — Boa sorte. Cuidado pra não fazer nenhuma besteira.
A ligação de dissolveu. O sol iluminava toda a floresta agora. Voltei caminhando para as barracas e me sentei no chão.
Não cometa os mesmos erros, disse a voz grave na minha mente, dessa vez você vai fazer o certo, como deveria ter sido dezoito anos atrás.
— Não vou — confirmei. Meus dedos passaram pelo bolso, tocando a superfície fria do relógio.
Tic.
Tac.
Tic.
Tac.
• • •
— Estamos chegando em Maryland — falei enquanto caminhávamos. Apenas duas horas e minhas pernas ficaram esgotadas. Eu só queria me sentar.
— Calma aí, gente — Aimee disse e jogou a mochila no chão, depois se sentou nas folhas e grunhiu de alívio. Fiz o mesmo e Mike imitou o gesto. — Que horas são? Sete da manhã?
— Quase.
Mike tirou duas garrafas de água da mochila e nos entregou. Depois de olhar para o céu, nervoso, e esfregar as mãos, disse:
— Gente, eu preciso fazer xixi.
Enchi as bochechas de água. Aimee ergueu uma sobrancelha com o sarcasmo de sempre.
— Legal — deu de ombros. — Ali tem uma moita e aí embaixo um passarinho, é só deixar a natureza fluir, cara.
— Mas eu não quero ir sozinho — disse nervoso e contive a risada. Senti que a água iria parar no nariz. Aimee revirou os olhos.
— Tá de brincadeira, Mike! — disse incrédula. Se tivesse gritado mais alto, o moreno teria caído.
— Vai lá, Aimee — insisto e ela me lançou um olhar assassino. — A gente tem intimidade mas é limitada.
A menina resmungou e os dois se levantaram.
— Anda logo, bundão — disse dando um tapa no traseiro dele. Mike ficou vermelho e pulou. Ela deu uma gargalhada. — Se eu ver seu pinto vai desejar não ter tido um.
Ri e rolei os olhos. Aimee parecia durona, mas devia ser tão sensível quanto Mike.
Terminei a água e guardei. Depois de alguns minutos os estranhei não voltarem. Não ouvi nenhum barulho sequer. Fiquei de pé e olhei ao redor, arrumando os óculos.
E, como sempre, aquela cena de alguma coisa se movendo na floresta e me assustando. Dessa vez, eu era rápida e segui o vulto branco por mais rápido que parecesse.
O que é você?
— DAPHNE! — ouvi o grito de Mike. Segui o som.
Os dois estavam presos no tronco de uma árvore. Nada os prendia, mas Aimee se contorcia e xingava tentando sair. Um tipo de corda invisível e forte os prendia.
— Alguns anos atrás, Lydia Kristall me deu uma flechada bem na costela e levou parte do meu sangue... — disse uma voz masculina e suave, porém ameaçadora. Encolhi—me. — E olha só quem está aqui agora, bem na minha frente.
Olhei ao redor e fechei o punho. Um brilho de olhos vermelhos me encarava.
Ele se aproximou. Pensei que fosse um centauro, mas não. A parte cavalo era branca e brilhante. Uma cicatriz na costela estava escura e profunda. A parte de cima — homem — tinha o peito nu. Era o rosto mais lindo que já vi, com uma pele macia e bronzeada, parecida com a de Charlotte. O cabelo era loiro e bagunçado, mas na testa havia um único chifre.
— Você devia ser um unicórnio?
— Eu sou. Eu era... Até sua mãe tirar parte do meu sangue — disse olhando para a cicatriz. — Resumindo, eu tentei capturar Lydia, mas ela me lançou uma flecha e morri. Antes de ir para o Tártaro ela roubou um pouco do meu sangue.
— Tem poder curativo — Mike disse. — Eu li em algum lugar, tem em Harry Potter, mas não lembro se...
— Cala a boca! — disse o unicórnio. — Eu tô tentando explicar minha vida difícil, com licença. Desde então, demorei meses até voltar à vida. Nós unicórnios somos diferentes de monstros comuns. Nosso sangue nos permite voltar rápido, mas então, quando tentei virar humano... Isso aconteceu. Acabei voltando rápido demais
— Não conseguiu voltar por completo — confirmei e segurei o relógio no bolso. A cicatriz dele era feia que só. — Minha mãe fez isso?
— Seu pai também — disse com olhar mortal escarlate. Suas orelhas ficaram iguais às de um cavalo e ele tentou escondê—las sem sucesso. — Acontece às vezes. A propósito, meu nome é Boris.
— Cara... — Aimee falou com um sorriso largo. — Você é muito gay.
— Não sou nada! Podemos mudar de assunto? Eu estou prestes a matar vocês três, garota insignificante!
Aimee mordeu o lábio. Ela estava tentando sair da armadilha e distrair Boris para irmos embora. Entendi o que precisava fazer, mas devia ser rápida.
— Olha pra você — apontou com o queixo e deu um sorriso de lado. Mike assentiu. — Ah, eu super te apoio. Olha só a Daphne, ela também é e não tem problema nenhum nisso.
— O que tem a Daphne? — Mike perguntou e senti minhas bochechas corarem. Aimee deu um sorriso sagaz.
—If you like Piña Coladas — a menina cantarolou e Mike não pôde evitar o sorriso.
— O que você quer de mim, Bóris? — desviei o olhar dele para a menina e tentei dizer algo como "vamos!"
— Senti seu cheiro de longe e já soube que era parente de Lydia. Só quero uma vingança e levar você comigo. E depois te matar, claro.
— É sensato — assenti tirando o relógio do bolso, até Mike gritar:
— Espera! Não tem que levá-la. Eu posso ir ao lugar dela, pode me matar!
Bóris riu e balançou a cabeça como se pensasse "que inocente".
— Unicórnios levam apenas garotas bonitas e puras — disse. Quase protestei dizendo "não sou tão pura, mas obrigada pelo elogio". — Você, garoto, é puro de coração, mas é menino.
— Ata, como se você não quisesse — Aimee tossiu nada discreta. O unicórnio se aproximou dela e ergueu seu queixo com a unha encravada na pele, quase afundando. Ela engoliu seco, mas ainda firme. Estava pronta para apertar o botão.
— E você é suja por dentro — disse firme com os olhos reluzindo. Aimee engoliu seco, magoada. — E o pouco de amor que tem não é o bastante.
Ele a largou e segurou meu pescoço. Continuei segurando firme o relógio dentro do bolso, e era como se ele me chamasse. Só esperava a hora certa.
Balancei minhas pernas no ar, pois ele era muito forte até para eu tentar me soltar. Boris realmente estava apertando meu pescoço e a sensação não era boa.
— Não é capaz de me matar, eu conheço esse olhar de desespero — disse e respirou fundo como se o ar fosse uma droga. — Não é bom esse cheiro? O medo?
Apertei os lábios com raiva. Bóris quase me erguia no ar.
Você precisa fazer isso, disse a voz grave na minha mente, é o único jeito. Vamos, Daphne, você consegue, está no seu sangue.
— Há tanta coisa que não sabe sobre Cronos, ou sua mãe — continuou sorrindo. Bóris tocou minha testa com a outra mão.
Uma breve visão do meu pai, com o rosto alegre dizia "É uma menina!". Depois, uma visão minha com Mike, ainda pequenos, brincando com bonecos de Star Wars em seu quarto. A terceira visão foi da minha mãe, os olhos brilhando dourados como faróis acima da colina do acampamento.
Só lembrei da última: minha mãe sentada na sala, falando sozinha com as mãos na cabeça.
"Escuta, ela pode ser boa e gentil, mas não eu! Você não pode ficar na cabeça das pessoas e controlá-las!".
"Pelo contrário", disse a mesma voz na minha mente, "Ela é diferente de você. Ela é como eu. E a escolha certa".
Dei um grito de dor, eram muitas lembranças, iam passando rápido demais e nem sequer lembrei de alguma com clareza. Uma sensação passou pelo meu peito e apertei os olhos.
Vamos!
Pressionei o botão do relógio. O bronze da espada desembainhada zuniu e parou. Só tive o tempo de sentir o metal atravessando a carne, mas não a minha.
Abri os olhos. Era como acordar de um pesadelo. No início não senti nada, apenas sei que a mão de Boris me largou e caí de joelhos no chão, olhando para seu corpo à minha frente sem semblante.
O tempo parou. Literalmente.
A cena: o unicórnio com a espada enfiada na barriga e sangue escorrendo. Arranquei a arma e Bóris se dissolveu em poeira. Observei ela se dissipar aos poucos e tentei processar o quão rápido tinha feito aquilo.
Eu havia parado o tempo, só queria parar com aquelas visões na minha cabeça, e então...
— Eu não tive escolha — falei.
Pelo contrário. Fez mais do que bem.
Fiz um arco com a mão e o tempo voltou. Mike e Aimee caíram no chão, incrédulos. Estavam livres.
— Para onde ele foi? — o moreno perguntou, enquanto segurava Aimee pelo braço. Havia marcas em seus braços.
— Ela o matou, Mike — confirmou. — E dessa vez foi pra valer. Vamos, precisamos comprar umas passagens de ônibus.
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