XI - Codó - Maranhão
30 de novembro de 1925, Codó-Maranhão
Com movimentos circulares a colher de pau raspa o fundo metálico da caçarola de ferro. Conceição adiciona ao borbulhante mingau de arroz o leite de coco babaçu, feito a partir das castanhas que as cunhadas recolheram na mata de cocais. Balança o abano feito de palhas trançadas, atiçando o fogo que arde no forno de barro. Piedade, de cabelos revoltos e usando apenas uma calcinha de algodão cru, está sentada no meio do cômodo, com o olhar fixo nas labaredas que lambem a panela metálica marcada pela fuligem, hora ou outra a criança tosse forte, evidenciando os espaços entre as costelas.
Com a mão em concha, Conceição joga água sobre o chão de barro compactado. O cheiro de terra molhada, cinzas, querosene e afeto marcam o início de mais um dia. Abre a janela de madeira, os primeiros raios de sol produzem um espetáculo multicolorido no céu azul. O galo canta, as curicas e passarinhos fazem algazarra no cajueiro, bicando os frutos vermelhos e amarelos que enchem os galhos e preenchem o chão.
— Bom dia, cumadi — Tonico, sentado sob o cajueiro, amola a enxada.
— Dia, cumpadi.
O homem robusto se aproxima da janela.
— Cumadi, deixa te falar: Nós têm que consertar tua casa, o barro tá velho demais, tem muito buraco e as chuvas já estão começando.
— Carece não, cumpadi.
Tonico se afasta, ciente de que Conceição é teimosa como uma mula e não adianta argumentar. A mulher corre os olhos castanhos pelas paredes cheias de frestas, as varas envelhecidas estão à mostra. Toca a estrutura, sentindo a aspereza reconfortante e fria da argila moldada pelas mãos de seu falecido marido. Tem estranho apego a tudo que pertenceu a Firmino: o caneco de alumínio, as camisas dobradas e manchadas que cheiram a sabão e lixívia, o colar de contas, o patoá atrás da porta e o altar onde está a imagem de Santa Bárbara, tudo permanece exatamente onde ele deixou, como se aguardasse seu regresso. Mexer em algo seria como sepultá-lo de vez e ainda não está preparada para isso.
Na mesinha no canto do quarto está um envelope amassado e suado. Uma carta de Irma Tereza, que recebeu no dia anterior. Não teve coragem de abrir. Desde que partiu de São Luís, apenas com a roupa do corpo e muito desejo de viver, não voltou a ter contato com a freira. Ao longo dos últimos oito anos recordou muitas vezes de sua quase-mãe. Essas lembranças sempre vinham acompanhadas de vergonha e culpa, por sentir que, de alguma forma, traiu a única pessoa que, além de Firmino, lhe devotou afeto.
— Mã, mã, mã ti pã, pã, pã — Piedade cantarola em linguagem infantil e incompreensível, entre um acesso de tosse e outro.
Conceição observa a filha, que sentada balança para frente e para trás hipnotizada pelo fogo. Um calor reconfortante a envolve. Não se arrepende de ter partido, tudo que sempre quis e buscou foi ter um lar, amor e propósito e, bem ou mal, Firmino lhe proporcionou isso. Chama a criança para seu colo, olha de soslaio para a janela, como se estivesse cometendo um crime e precisasse garantir que não há testemunhas. Piedade se aninha na mãe, que usa a barra da saia para assoar o nariz catarrento.
A maternidade e viuvez se entrelaçaram de modo caótico na vida de Conceição. Não teve tempo para chorar a morte do esposo, pois, estava empenhada em manter viva a derradeira herança de Firmino. Noites insones, seios rachados, a hemorragia que quase a levou para junto do marido, foram problemas reais demais que a impediram de viver o luto.
O coração de Conceição se espessou como couro e seus olhos secaram. Não havia tempo para lágrimas, luto e reparação. Se permitir sofrer seria como entrar no mar alto sem saber nadar. Não queria se afogar, não podia se afogar. Toda sua atenção, preocupação e afeto se focaram na criança escandalosa que saiu de seu ventre e dependia dela para permanecer existindo. Piedade berrava dia e noite. Ninguém conseguia dormir nos arredores da casa da família. A recém-nascida vomitava em jatos sempre que mamava, as costelas eram visíveis na pele ictérica e ela gorgolejava buscando ar. Os sintomas pioravam quando Conceição tomava do leite que Seu Pipo, o leiteiro, diariamente entregava de casa em casa.
Nas primeiras semanas pós-parto, a puérpera se arrastava insone e adoecida, com os seios empedrados, latejantes e sangrentos. O vazio deixado pela ausência de Firmino ecoava gritos de solidão. A falta da mãe, que não conheceu, pulsava mais forte do que nunca. Ansiava por colo, quando seus próprios braços precisavam ser o novo refúgio de uma vida. Sentia os pés afundando em um rio de lama e desespero. Não possuía mais o consolo da fé ou a esperança de que há propósito no sofrimento. Sem outra jangada possível, se sustentava com a força visceral que brotava de seu útero.
Na época, Dona Joana interveio, temia que a nora tomasse o mesmo caminho de Luzia. Não compreendia os motivos de Firmino despertar afetos tão intensos por onde quer que passasse. Joana não ocultava a mágoa que tinha de Conceição, atribuía a ela o destino fatal de seu favorito. Porém, ciente de que Piedade, a quem chamava Bárbara, era o desejo de seu filho, não permitiria que a morte dele houvesse sido em vão. Iria salvá-la da maldição, da mãe e da inanição. Chamou Meroca para rezar a menina, que claramente estava com quebrante.
Conceição não se opôs quando a mulher que salvou sua vida se pôs a benzer a criança com um galho de arruda. Ao término do procedimento, Meroca orientou que providenciassem uma cabra leiteira para alimentar Piedade, amarrou uma fita vermelha no pulso anêmico e sugeriu que fizessem o despacho do Patuá de Firmino nas águas correntes do rio Codózinho. Desacreditada e irritada, mas exausta, a mãe decidiu seguir as primeiras recomendações, pois não perderia nada por tentar, afinal, a morte ainda parecia rondar sua casa.
Após tomar as primeiras colheradas de leite de cabra, pela primeira vez em sua curta vida, Piedade dormiu tranquila e satisfeita. Nos dias que se seguiram a bebê melhorou visivelmente, ganhou peso, ficou corada e mais calma. A aparente vitória de Joana sobre Conceição, doeu em seus seios, que secaram com dor e amargura. A peleja das duas se estendia a todos os pontos da vida cotidiana. Ao contrário do comportamento anterior, sempre obediente, Conceição se transmutou em mãe, e, em sua cabeça, a maternidade suporta tudo, exceto a fraqueza. Da limpeza da casa, a debulha do feijão, passando pelo quarar das roupas, até o nome da menina, todos eram comportamentos alvos de críticas da sogra.
Por fim, sem ter como se sustentar sem trabalho, Conceição engoliu o orgulho e voltou para a fábrica de tecidos, entregando a filha de quatro meses para que fosse cuidada pela avó. Enquanto fiava, cardava e tecia, sentia esgarçar o tecido de sua vida, sem que pudesse fazer muito mais do que apenas remendar.
As batalhas diárias seguiam e eram agravadas por não ter mais o controle total sobre o cuidado de Piedade. À noite, Conceição, que viveu privada de amor, ignorava os conselhos de não dar colo e deixar chorar, para 'não estragar a menina'. Dormiam na rede, abraçadas. Embalada no colo da mãe, a criança tinha como canção de ninar o pulsar do coração materno.
— Ô de casa... — A voz de Joana ecoa na janela, sobressaltando Conceição e a filha.
— Pode passar Dona Joana — A dona da casa convida a sogra para entrar, desvencilhando-se da filha.
Com um gancho de ferro Conceição retira a caçarola fumegante do fogo e coloca sobre um suporte crochetado por ela. Piedade pula de um pé para outro, sacudindo as mãos repetidamente, na expectativa de saborear o mingau.
— Acomoda Piedade, ainda está quente! — ralha, irritada por não querer demonstrar falta de firmeza no trato com a criança.
A presença da mulher mais velha, de idade indefinida, cabelos cobertos por um lenço florido e o rosto de quem aprendeu a ser e viver na fartura ou amargura, preenche todo o espaço, causando certo sufocamento em Conceição.
— Ceiça, hoje nós vai catar coco, Barbinha vai junto — Joana anuncia.
— Piedade não tá bem, dona Joana. Tô dando lambedor, banho de eucalipto e limpando a garganta, mas essa tosse continua. Melhor ela não pegar sol.
— Hum, tem que levar na Mãe Meroca — Joana toma o rosto da criança entre as mãos fortes, verifica a cor da mucosa dos olhos e a palma da mão — Essa menina é cheia de iziqueira — fala para si, sem perceber que fere a mulher ao seu lado.
Conceição sabe que a sogra não tem intenção de ofender, mas ainda assim as palavras são como lambadas. Apesar de seus quase cinco anos, Piedade apenas balbucia mããã e nããã e conversa de forma incompreensível com seus amigos imaginários. A avó deu água de chocalho, colocou um pintinho para piar em sua boca e dava água na concha, mas nenhumas das conhecidas simpatias para a fala surtiu efeito. Por fim, concluíram que 'Cada criança tem seu tempo'. Por vezes Conceição perdia a paciência e gritava exasperada com a menina, o que desencadeava crises em Piedade, que berrava e esperneava no chão, algumas vezes se mordia ou mordia quem estava perto, até conseguir ser contida pela mãe. Nesses momentos, o medo de que não deveria ter engravidado voltava a assombrar Conceição.
— Ceiça, assim tu bota Bárbara a perder.
— Dona Joana, com todo respeito, mas da minha filha cuido eu.
— Bem se vê como cuida — vira as costas murmurando — não sei o que meu filho viu nessazinha, pior foi morrer por conta dela.
— Como é a conversa Dona Joana? — Conceição alteia a voz surpreendendo a sogra, que estaca na porta —Tem cinco anos que eu ouço essa ladainha de que Firmino morreu por minha causa. Mas eu pergunto da senhora, por acaso fui eu que puxei o gatilho da espingarda que matou meu marido? Se fosse por mim, ele teria ficado aqui do meu lado, eu bem que pedi pra ele ficar, mas ele foi, assim mesmo!
As lágrimas que não foram vertidas em público escorrem naquele momento.
— Eu não aguento mais! Dona Joana, deixa eu lhe dizer bem aqui: quem matou seu filho foi a polícia, não eu! Quem jogou o corpo dele no rio foi a polícia, não eu! E quem aceitou a versão de que ele entrou bêbado na água e se afogou foi a senhora, não eu! Então não venha me dizer que eu tenho culpa, quando por medo vocês aceitaram uma mentira.
O tapa estala no rosto mais jovem, os dedos ficam marcados e vermelhos na bochecha magra. Os familiares, que estavam em seus afazeres no quintal, ao ouvir as palavras exaltadas correm para a casa de Conceição. Encontram as duas mulheres se digladiando com os olhos, Joana está com o indicador apontado no rosto da nora e Piedade bate com as mãos na lateral da cabeça, balbuciando nãnãnãnã. Conceição está prestes a pular sobre a sogra, disposta a arrancar com as unhas toda a raiva que lhe consome.
— A culpa é tua! Tu trouxe a desgraça sobre minha família! Tu tem a marca do demônio! — Aponta para os pés dela — Maldita hora que meu filho te conheceu. Bem tu fez amarração pra pegar ele.
— Joana não fala assim com Ceiça — Seu Fubá se interpõe entre as duas.
— Mãe! — Lindalva, uma das filhas do casal intervém — A senhora está sendo injusta com Ceiça. Se o falecido Bonito amava ela, quem somos nós para julgar?
— Vão ficar todos contra mim? — Joana lança as mãos para o alto — É assim mesmo, parece que não gerei filho, choquei foi cobra.
— Mãe, a senhora sabe que o mano foi assassinado por vingança. Por se meter com quem não deve. — Lindalva solta com um suspiro irritado.
Todos os rostos se voltam para ela, as reações variam entre consternação, repreensão, mágoa e incredulidade.
— Lindalva, agora tu vai falar mal dos mortos? Do teu próprio irmão? — Joana balança o dedo em negativa, a centímetros do rosto da filha — Não na minha casa, não na minha frente!
— Que história é essa? — Conceição interrompe, chamando a atenção da cunhada. A única notícia que teve foi que encontraram o corpo de Firmino nas margens do rio codózinho, com sinais claros de espancamento e em estado avançando de decomposição. Pelos fragmentos de informação que recebeu, intuiu que a polícia havia matado seu esposo durante a batida policial para dispersar a proibida festa de terecô em homenagem à Barba Soeira, ou Santa Bárbara.
Antes que a resposta chegue, o grito agudo e dolorido de Piedade toma o ambiente. Atordoada, Conceição corre na direção da menina, mas não chega a tempo de impedir que a mesinha e o mingau fumegante caiam sobre ela.
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